Um aspecto da literatura que sempre me chamou a atenção é o diálogo. Por diálogo, entendo duas instâncias distintas e que se deixam contaminar reciprocamente. As provocações entre os saberes, mesmo entre aqueles a princípio incomunicáveis podem ser intensas. Nesse sentido, quando se dialoga com alguém, quando, enfim, um saber dialoga com outro, uma prática com outra, não espere entender como que por encanto a visão de mundo da pessoa com que se dialoga, mas tão somente, empaticamente, leve-a em conta. Dialogar não é falar pelo outro, é falar com o outro ao mesmo tempo em que ele também conversa. E nunca se entende completamente o que o outro tem a dizer, o que passa na sua cabeça, se é que o próprio sabe. Seria ingênuo acreditar que conseguimos "olhar de olhos claros", a cada aventura, como na primeira vez. Não tenho como abrir mão de mim mesmo. E as leituras, mesmo quando equivocadas, talvez ensinem alguma coisa. Além do mais, dialogar não é simplesmente falar sobre. Quem fala de uma obra presume ser capaz de dizer o que ela é. Essa é a pretensão da crítica. Da minha parte, espero menos. Continuo agarrado aos meus instrumentos. Diante de um objeto artístico, o filósofo não retira a teoria de dentro do objeto e nem de fora; antes, ele a roça. O que existe nele encosta no que está na obra. Dialogar ocorre sempre na superfície. Se quero dialogar, devo estar disposto às armadilhas da sensibilidade. Diferente da fala, que sempre começa a partir de um determinado ponto, o diálogo ocorre no meio, depois de outros diálogos e a anunciar outros. Uma palavra que traduz esse exercício antigo iniciado nos banquetes é 'intervir'. Intrometer-se na conversa alheia é da natureza do diálogo. Leia Platão. É impressão minha ou ele não parece estar sempre escrevendo entre? Por mais que os seus textos tenham um começo e um tema, sejam classificados em etapas e períodos, sempre deixam a impressão de um início cuja fonte é uma conversa anterior, assim como terminam com a sensação de que alguma coisa foi deixada para trás.

Como o artista, o filósofo busca a originalidade. Ao contrário do que a princípio se possa pensar, não abre mão do instinto em benefício da reflexão. Da minha parte, penso por curvaturas e imbricações... Por exemplo, as relações que eu encontro em um poema, estão ali no poema, mas também acho elementos que não são do objeto em questão, mas que de alguma forma o objeto toca. Uma obra artística não é um objeto qualquer. Está mais para alguém que se ama ou odeia. Pode-se inclusive conversar com alguém sem se dirigir à pessoa. Em geral, não é essa a epopeia do amor? Amar, sofrer, vibrar e não vibrar sem que o outro saiba? Eu não sei conversar se não dando voltas. Queria muito falar de um livro de poemas que acabei de ler por esses dias, da sorte que o poeta teve em achar aqueles versos, do quanto me tocou, na impenetrabilidade própria do que é alheio. O livro em questão é o opúsculo de Jardel Dias Cavalcanti, Seis poemas de Praga, uma plaquete, a quinquagésima primeira da Espectro Editorial, selo criado pelo também poeta Ronald Polito e que, pelo menos há dez anos, divulga obras que passariam despercebidas num mercado cada vez mais restrito ao vendável. Nele estão ingressos elementos a princípio díspares, mas que, visto com cuidado, integram-se como camadas de uma experiência única. O livro narra as impressões do poeta e professor em viagem a Praga. Ter como tema uma cidade é em si mesmo uma questão. A cidade tem sido desde o século XVI o principal lar de nossas vidas e de importância enorme na produção literária. Das artes, será a literatura, em especial o romance, que mais se desenvolveu, nas palavras de Ronaldo Costa Fernandes, com o "capitalismo incipiente e [...] o processo de fortalecimento das cidades como núcleos promotores de cultura"1. A cidade determinou então "o comportamento dos personagens"2.

No caso de Cavalcanti, ele entra em contato, quando viaja a Praga, com aquele que talvez seja o autor mais admirado pelo poeta: Franz Kafka (1883-1924). Como leitor, concedi a Seis poemas o relato de alguém que escreve um poema por dia e mesmo que não tenha acontecido dessa maneira, prefiro me ater à mitologia que quero ler do que com o que efetivamente ocorreu. O exercício da crítica não precisa se envergonhar da quiromancia que faz. Como n'A metamorfose, Praga age no poeta lhe alterando a imagem:

 

 

"Ao espelho em Praga"

 

Minhas mãos, reconheço-as e

Minha face é a de um estrangeiro?

Minha boca fala ainda uma língua?

As rugas um mapa de minha alma?

 

 

E assim termina:

 

 

Sei que estou pronto para me olhar

E não me reconhecer

 

 

Comparado com o clássico de Kafka, se o Gregor de Kafka acorda de manhã à revelia transformado em um inseto, Cavalcanti prepara-se, por outro lado, para a transformação ("sei que estou pronto para me olhar/ e não me reconhecer", grifo meu). Trata-se de tema espinhoso. O quanto fazemos parte de uma geração enredada por uma cultura do entretenimento? Como turista precavido, a metamorfose de Cavalcanti talvez já fizesse parte do pacote. Mas, antes que me critiquem, com razão, quero deixar claro que não estou criticando os poemas ou mesmo a viagem de Cavalcanti, apenas destacando a marca de uma época, presente em todos os nossos gestos, mesmo nos mais autênticos. Imagino que Praga tenha sempre habitado o imaginário de Cavalcanti, como Paris habitou o meu quando lia os romances de Sartre ou Minas nos poemas de Drummond. Sei que nessas viagens a gente mais revisita do que visita a cidade e a condição de flâneur escapa às leituras insipientes que se costuma fazer de Baudelaire. E ainda que as férias promovidas pelas agências de turismo se sirvam de um destino programado, não conseguem desfazer do seu concomitante clandestino. O impacto de Praga sobre o poeta está na própria descrição corporal feita por ele. O corpo insere-se signicamente no poema acima citado reorganizando as divisas entre a alma e a cidade.

No caso, a alma surge vide a imagem do espelho, que aparece não só no título mas reforçada num de seus versos ("Vejo meu reflexo enquadrado no vidro do espelho"). Não há nada mais polissêmico que a alma. Seja entendida como sede do 'eu', à maneira dos modernos, ou como princípio vital para os antigos e medievais, a alma, desde o platonismo, responde por uma conjuntura que confere unidade; por isso, o entendimento de que o espelho nos enquadra. Enquadrar significa conferir uma forma (em termos platônico-aristotélicos, εδος). O que é a metamorfose senão usurpação da tradição de um pensamento? Como se sabe, o corpo é um dos temas chaves para a arte quanto para a filosofia. Na literatura, não poderia ser por menos. Das metamorfoses que se conhece, a mais originária que se tem notícia é a velhice. Contudo, se na literatura, o tema da velhice é recorrente, na filosofia, será mais raro de ser analisado. As razões para tal são difíceis de estabelecer, talvez por ser empírico demais; de qualquer forma, gostaria de levantar uma hipótese de trabalho: enquanto que a morte diz respeito (por exemplo, de forma explícita nos existencialistas), ao que é ontologicamente relevante (aponta para o não ser que nos espera cristalizando por conseguinte o ser que somos), a velhice será a constatação do devir; quer dizer, apesar de o espelho nos enquadrar (a dimensão do ser), sempre reflete, como na superfície das águas (e não há como não fazer referência à imagem do rio descrita por Heráclito e obviamente à tragédia de Narciso), as mudanças de quem é refletido. O corpo descrito pelo poeta mostra-se aos poucos: 'mãos' que o autor ainda as reconhece como sendo suas, a face de um estrangeiro, a boca em que já não sabe se fala uma língua; e, por fim, as rugas... signo que o poeta com certeza não comprou no pacote de viagens... o que implica: se n'A metamorfose, Gregor se transforma num inseto, o envelhecimento nos transforma no quê? Reposta difícil, porque não precisa de resposta, porque a vida, essa "arte de navegar sem bússola"3, vive e se alimenta das próprias ruínas. A velhice, mais do que a morte, está para o exercício da diferença em si... ao mesmo tempo aviso supremo da morte e redenção dos erros. Mas o movimento de diferença é também de absorção, ocorre no plano prévio da palavra, no inconsciente da palavra, no pré-escrito:

 

 

Tenho dormido profundamente e muito

Às vezes acordo e olho pelo vidro da janela —

Na bruma sempre surge uma figura

Parece querer me dizer alguma coisa —

Me aperto lentamente contra o vidro

Tento pensar em algo

Que me leve para o fundo de mim mesmo

Sou um animal silencioso

Com pretensões próprias

Mas corro de lugares onde as janelas ficam abertas

Volto para a cama

Preciso oscilar um pouco mais

 

 

Remoendo-se na cama, o corpo recusa a conhecer, a reconhecer a cidade, talvez sem se aperceber que tanta resistência já constitui aprendizado. A cidade que se visita é a que não se quer ver ("corro de lugares onde as janelas ficam abertas"). O autor prefere, pelo menos ao longo do poema, voltar para a cama, até porque, onde Kafka sofreu talvez ele sofra também. Não por acaso, o título do poema é "O inconsciente de Praga": lapsos, recusas e chistes como o relatado aparecem ao longo desse pequeno, mas caudaloso livro. E se é o inconsciente que está em jogo aqui, este está mais para o de Jung do que o descrito por Freud: a arte exige signos seculares e coletivos.

A própria cidade braveja os séculos pelos quais passou, em cada um dos pertences. Nas casas, nas igrejas, nos nomes das ruas... Estamos como que a colher a memória de fora, nas coisas. A cidade é memorialística; com ela, descobre-se que a memória trata-se muito mais de uma percepção estendida do que propriamente uma faculdade à parte. Mas há um outro verso que também chama a atenção nesse poema: "sou um animal silencioso". Seriam necessárias dezenas de páginas para explicar o que eu penso e sinto desse enigma posto pelo poeta, mas numa coisa acredito: o homem não é só o único animal que fala, mas também o único que fica em silêncio. O silêncio talvez comece quando se está pronto para ouvir... talvez só assim, em silêncio, comece o nosso destino e só então comecem as palavras. Não custa lembrar que em "Ao espelho em Praga", a metamorfose atua sobre o corpo do poeta... na face, na boca e nas rugas... exceto nas mãos. O que para mim é emblemático: é talvez o nascimento de um poeta que estejamos assistindo; para prejuízo do próprio Cavalcanti, ele agora sabe que as mãos eram as suas... Há quem chame tudo isso de nostalgia... e não existe poesia que não termine oferecendo um castelo para um mendigo.    

 

 

Notas

 

1FERNANDES, Ronaldo Costa. "Narrador, cidade, literatura”. In: LIMA, Rogério; FERNANDES, Ronaldo Costa (org.) O imaginário da cidade. Brasília: Editora Universidade de Brasília / São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000, p. 19.

2Idem.

3Título de um poema de Túlio Villaça, do livro Antifonária, ainda inédito.

 

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O livro: Jardel Dias Cavalcanti. Seis poemas em Praga.

Rio de Janeiro: Especto Editorial, 2017.

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agosto, 2017

 

 

 

André Luiz Pinto da Rocha é professor, escritor, mentor profissional e palestrante.

 

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