Dois poemas para Cris

 

 

I

 

 

Chove em Copacabana.

O que dobra são os sinos da Igreja ao lado

abafado à buzina dos carros

e o vermelho das maçãs. A padaria

estava aberta, ia quase me esquecendo.

Que bom que te encontrei

ainda de manhã.

 

 

 

II

 

 

Ela me invade

quando menos se espera

mesclado

ao chocolate

que nossos corpos amassavam

à milanesa

na cama:

pernas

que depois de enroscadas

a natureza revela:

cai a noite

a gente coloca uma música

será que a música abafa o som

do que rola

 

nesse conjugado

em Copacabana?

 

 

 

 

 

 

Outros poemas

 

 

III

 

 

Os galhos secos nascem virgens, brotam mortos no verão. E um menino socorre o mundo num primeiro berro. Mal sabe berrar. Força nem tem. Os galhos secos embelezam a paisagem numa coroa onde os espinhos não ferem os que abrigam; por cima de todos, o chão abre fendas maiores do que cova; dentro dessas covas, um esterco esfolado pela pata de um boi anuncia: a chuva falta pouco. Os galhos secos nascem virgens, a vida mal respira, o ar é inflamável. E os filhos de seus filhos ainda vão suar uma água que nem Deus sabe de onde vem.

 

 

 

 

 

 

IV

 

 

A queda do mar anula

a ideia de chuva.

Águas invadem a seca

tísica mensagem do espelho azul

naufragam a certeza

do chão, o pão

na moenda que moem as mãos

dos que moem açúcar

dos que colhem os dedos nos laranjais.

A chuva retrai o senso

de coisa perdida.

A chuva não perdoa

permanece o cristal

de sangue na tina.

Um corpo vem conhecer

nos bueiros

o cheiro de ferro das vigas

as estrias da cidade

a carcaça do bandido

enquanto a chuva segue o crepúsculo

precoce do sol

no exílio.

 

 

 

 

 

 

Justificativa

 

 

Eu plagio

porque não inventaram

coisa melhor.

 

 

 

 

 

 

VI

 

 

12:20h – Agora é tão cedo que posso morrer. As galhardias

do corpo. O menos um. Peso a combustão mais

adiante. Não me nutro com tantos sequestros.

Quero. Quereis um dia a solução desse impasse.

Nada lhe responde. Verdadeiros rompantes de

fúria, sombra,escaninho. Chorei como lembrança.

A noite foi azul como a dor dos passarinhos.

E se peço desculpas, justamente ficaria

em mim a dosagem seca desse encontro.

Toda lona alinhada contra o espaço. Plantações

de maconha acompanham hortaliças. A velha

dama pede para ajustar os degraus. Enfermeiro

ontem, fumante amanhã. Não devo constranger

os visitantes desse caderno. Nem atrapalhar

aqueles que passam ao largo. Mas a noite (como ronca

a noite!) me entrega os motivos de discórdia.

Em situação de crime, aconselho a sorte. Saio

sua e sempre.

 

 

 

 

 

 

VII

 

 

Que importa

sangrar do mesmo

destino

berne ou raiz?

Do extraviado olhar

a essência me cai bem

desertor.

Fico na escuta

sem metáforas

de plantão.

Um cão morde a isca

agora é infalível.

 

 

 

 

 

 

VIII

 

 

Talvez essa imagem

grave do vazio

suas lâminas de costura

detalham sombras

definem-se luas

firme ao destino

que segue, cada passo

estribilho

de ostra, precipícios

foram abertos

restando-me

loquazes e suores

joia ou escarlate

a cada segundo.

 

Talvez possa dizer

sem propriedade

mantenho decerto

em primeira pessoa

frutas que jazem

libélulas de troia

outros ímpares

da palavra verbo:

este calendário

de metáforas

decidindo

os lábios, as texturas

os furacões

a imprimi-los. Apenas

isso me contempla

e distrai: essa

palavra meio

boca de mulher

que os torna

leves (espessos

com seus medos)

mínimo que consiste

sem estratégias.

 

 

 

 

 

 

IX

 

 

Olhai os atropelados da esquina.

Eles não colhem nem ceifam

e ainda te achas melhor do que eles?

Viajemos profundo. O corpo carrega a alma

que surdamente desfalece e o abandona.

Os atropelados da esquina irão para os hospitais.

Lá dormitam anjos de branco

e um suor amargo permeia toda a gravidade.

Os atropelados são atendidos, porém há tantos.

Souza Aguiar, Salgado Filho, Miguel Couto.

Bendito sejas anjo de branco

Bendito sejas onde tudo é permitido.

Só o corpo não permite a sua salvação

e a vida se dá por um fio, por uma gota.

Da veia, exige-se todo transporte.

Teu fígado é corrosivo, teu rim é ácido.

Há tendências de secura e afastamento.

Os atropelados da esquina sorriem

diante de um sono tranquilo, sem atropelados.

Lá estarão melhor.

Os atropelados são homens, lírios.

Brotam no meio do asfalto

onde toda a velocidade

retira-lhe as pétalas.

 

 

 

 

 

 

X

 

 

para Antonio Cicero

 

 

Insistir, ruminar

os passos, o luar desses convivas.

Silencio de ninguém, nada garante

o sucesso, óbvias são as dores;

mesmo assim continuo com a minha caneta

calculando erro após erro

nenhuma certeza. Pobre amor atroz

das palavras lançadas ao vento

esta é a menos pior.

Aliás, qual?

 

 

 

 

 

 

Índico

 

 

A mão fechada é o silêncio do morto

a noite navegante, o barco é um berço que embala

muitos homens ao mar, o mar pode ser o asfalto, gueto

de lâmina e assalto, pode ser do alto de um edifício

de um escritório branco, com suas falanges;

viver é uma forma de delírio, o melhor

é sempre em casa, palavras continuam ao léu

de onde se arrancam estórias

das mais fundas raízes.

 

 

 

 

 

 

 

Ainda

 

 

para Aline, in memorian

 

 

 

Aliás

quem teve

essa ideia

de enfurnar-se

em ondas

sob a jactância

do sol?

Sua última palavra

foi o nome

inteiro André Luiz

Pinto pois agora

tudo que nos cerca

silêncio e moinho

tudo que conta

        náusea e destino

cadeira cativa

a lua atravessa o mar

como que aguardando sua posse.

Prefiro pensar

que ela ainda respira

outros ares

daqueles que sonhávamos ao pé da serra

prefiro a ideia

da morte

sem ciência ou espiritualismo

a paz dos bambuzais

balançando de madrugada

toupeira

quando cava um poço.

De nossa parte

resta viver:

dar à morte

o troco.

 

 

 

 

 

[imagem ©jane fulton alt]

 

 

 

 

André Luiz Pinto da Rocha (Rio de Janeiro/RJ, 1975). Poeta. Formado em Enfermagem pela Uni-Rio, chegou a exercer essa profissão por três anos. Graduou-se mais tarde em Filosofia pela UERJ, cursando o mestrado em Filosofia pela mesma universidade. Atualmente cursa também pela UERJ o doutorado em Filosofia, desenvolvendo uma tese em Filosofia da Biologia. Publica poemas e ensaios há mais de dez anos em revistas e jornais de literatura. Com Eduardo Guerreiro, editou a revista .doc. Leciona na Universidade Estácio de Sá. Publicou Flor à margem (Rio de Janeiro: edição particular, 1999 / Prefácio de Carlito Azevedo), Um brinco de cetim/Un pediente de satén (Caxias do Sul: Maneco / Coleção Poetas de Orpheu, 2003 / Tradução de Lorenzo Pellegrin), Primeiro de abril (São Paulo: Hedra, 2004 / Posfácio de Eduardo Guerreiro), ISTO (São Paulo: Espectro Editorial, 2005 / Posfácio de Marcelo Diniz), Ao léu (Rio de Janeiro: Bem-te-vi, 2007 / Apresentação de Antonio Carlos Secchin), Terno novo (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012).