o amor

que o meu corpo

atravessa

pousa somente

no corpo que vislumbro.

 

(p. 19)

 

maravilhas banais é uma declaração apaixonante de amor? também. mas é uma maneira de olhar o humano pela via do humano e transportar pelos tempos uma tortura feminina, historicizando-a, como deve ser, dentro de uma visão dinâmica, que busca em momentos ignorados as contradições da situação "romã" — o amor feminino e suas torturas, sempre falando ao mundo de um modo diferenciado, o modo como lhe permite cada momento — o doce da romã reserva caroços (sementes) constantes, que aparecerão porquanto se buscar esse doce. e saber que o sabor da romã depende justamente desse debulhar de sementes 'indesejáveis' e mesmo assim buscá-lo, deve superar a tortura e garantir alguma compensação. apenas para saber da sã consciência de seus versos, em "quem amaria / a marca da morte / sobre o meu corpo": a contradição se estabelece pois aqui há serenidade; e ao mesmo tempo, chama — como todo o livro — ao delírio cotidiano; esse singelo delírio que não se encontra nas aflições desmedidas e artificializadas, senão na angústia de um botão de camisa (uma necessidade de uma voz que busca os pequenos detalhes do cotidiano de um casal uma inerência existencial), ou de uma viagem de volta para casa, ou mesmo outra voz que se vê os filhos do rei de Serendip brilharem em seus olhos.

 

este é um novo livro de micheliny verunschk. outra micheliny ou quase micheliny. quem produziu esses poemas se inscreve num momento de exceção política, numa escritura pré-exceção, mas cuja captação aponta para o tensionamento das relações humanas, para um tempo imergindo nas incertezas e o vislumbre de suas (necessárias) vias de reconstrução de sentidos (e realidades). é a mesma micheliny da potência sintético-imagética de Geografia íntima do deserto, com o cálculo incomensurável de A cartografia da noite, ou o ponto de vista do outro, do bicho, desse animal que somos nós mesmos (e o nada), e a angústia serenamente narrada pelo espectro do espelho, numa micheliny que era ainda um pouco diferente daquela que utiliza o condensamento como um de seus recursos poéticos mais potentes; isso se realiza na sua perspectiva ao ver um mundo que caminha fragmentariamente à sinergia do agora agora agora. e daí também extrai sua objetividade lírica, sua capacidade de recorte do dinâmico antes que ele se disponha à possibilidade desse recorte, gerando um movimento de antecipação da memória, uma sensação de memória que se debate entre o peso mitológico e recolhe os períodos da história, carregando uma outra memória, para chegarmos até aqui. o poema "do mal que me queres" opera na demonstração da virada para a modernidade, lembrando a formação occitânica da língua portuguesa (e de sua visão de mundo) pela remissão às cantigas (de amigo — e de amor também), e pelo recurso rímico 2/5 (ou 2/4, recortando quadras num poema de estrofe aparentemente única), por exemplo. isso foi, entretanto, um breve comentário técnico que merece ser relevado no livro, pois se expande à compreensão de sua unidade. esta é micheliny: poeta do agora agora agora. poeta do hodierno; poeta de um moderno tempo moderno. poeta que não se recusa a isso, senão se entrega à síntese total para expor as doenças, os delírios e a calmaria possível num mundo que chega para algo além da modernidade — e, por isso, um mundo num ápice de vícios e constantemente suprimido pelo imperativo da intolerância. e lembra ainda, de modo bem direto, no poema sem título que começa com a palavra "memória" — talvez o poema mais forte do livro e aquele que melhor consiga sintetizá-lo —, que algumas coisas, algumas palavras, algumas sensações, algumas experiências não se podem nunca — nem devem — se perder.

 

este volume 12 da coleção cabeça de poeta, série "contemporanea" (dedicada à produção de poesia brasileira a partir do século 20), da martelo casa editorial, cantando o amor — ou as formas prováveis / possíveis de amor a partir daquilo que é seu mais duro, para alcançar a sua seiva: o seu tutano — canta, antes de mais nada, uma espécie de resistência que poucos veem como tal, mas que todos a ela recorrem; e resistência, por assim dizer, é preservar a vida humana, preservar o humano, preservar a existência da humanidade contra seus impulsos de (auto)destruição. é preservar da loucura desmedida os relances de sanidade que nos restam e, portanto, uma serenidade séria.

 

aqui, a poeta se arrisca mais ainda na concisão, na lição do condensamento, justo num livro cuja forma do conteúdo costuma receber pela maior parte da tradição um tratamento dictivo mais alongado (com um discurso mais extenso) — e justo por isso também este livro cede aos momentos de extensão discursiva entremeio à extrema concisão, e justo por isso é um duplo risco apostado pela poeta. uma poeta que sabe que

 

é preciso lembrar e guardar o teu nome.

ademais é preciso obsessiva

e repetidamente

é preciso escrever o teu nome novamente

 

(p. 67)

 

 

ao aplicar ao longo das suas maravilhas banais a hipermetaforização dos ossos, encadeando uma construção maior pela composição de viés contrário do princípio da metaforização comumente utilizada — a aparente denotação sugerida pela utilização do osso em sua extensa possibilidade fisiológica —, micheliny verunschk confirma que as lutas pelo amor feminino — ou diga-se pelo direito de sua plena existência — são assim dolorosas ao longo da história, e que a sobrepujança do patriarcalismo assim se faz, atingindo os ossos, e a sua dureza combativa diária, numa luta que já se tornou invisível e que novamente grita para não mais sê-lo. essa tristeza pela condição da mulher na sociedade tecnológica, que além da inicial exploração da sociedade industrial ainda enfrenta uma hiperexposição do ser feminino, e sua consequente tomada como não mais do que uma mercadoria na sociedade, busca no texto de micheliny uma de suas fundações no percurso judaico-cristão; e chamar as mulheres de Jerusalém para a cena nos faz vislumbrar o que dizemos:

 

iv

 

 

mulheres de Jerusalém

procurei o meu amado

e não o achei

 

dizem que o amor

é mais forte que a morte

mas a saudade

é pedra e sepultura

 

aloé açafrão e nardo

nada sara essa ferida funda

 

[ventos do oriente

soprem

seu perfume sobre mim

e deixem que o meu amado

me apascente

e coma dos frutos

do seu jardim]

 

(p. 28)

 

 

o quarto movimento de "outro cântico" mostra sua estrutura geral: a voz lírica chama as mulheres de Jerusalém para lhes confidenciar algo, mas, nas estrofes finais de cada movimento, sempre entre colchetes, ela arranca de sua tessitura um 'segredo' a mais, ou, digamos melhor, um anseio a mais pela condição, muitas vezes retornado como alívio/confissão. a entrega amorosa da voz poética e sua metaforização pelo confessionalismo com as mulheres de Jerusalém não fazem dessa voz, como dissemos, submissa (senão o contrário), mas contraditória e reflexiva. as mulheres [de Jerusalém] de micheliny verunschk estão ali marcadas em seu momento de existência histórica, e cedem ao "amor oásis de leite e mel / seu desejo marfim e vinho tinto", mas justamente para o contrário, não para um desbunde desmedido e inconsequente. reconhece-se a tristeza — quase melancólica — mas dessa tristeza se faz matéria para entender a necessidade de mudanças nos paradigmas sociais. e parece essa a inscrição de maravilhas banais. é um livro que adere à necessidade de mudança radical, de desfrute e mudança, mas sobretudo de mudança pelo enfretamento da condição feminina e das possibilidades do amor feminino, de paradigmas que dizem ter mudado, mas na prática, muita coisa parece parada, estranhamente cristalizada ou mesmo retrocedida nestes tempos bem mais do que modernos.

 

 

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O livro: Micheliny Verunschk. Maravilhas Banais.

Goiânia: Martelo Casa Editorial, 2017, 76 págs., RS$ 27,00

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dezembro, 2017

 

 

miguel jubé é doutorando em Estudos Literários pela UFG; editor da martelo casa editorial e poeta, autor de  minimemórias e eugênio obliterado (poesia).

 

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