mínima elegia

 

 

se se ganha ou perde

a vela soçobra

monturo de cera

Jamesson Buarque

 

 

proteja-me ó tempo dos males de depois

dos males de que não sei

dos males escondidos

dos males maiores.

 

só podemos contar com a sorte

se a lâmina atravessar primeiro

e descer à morte a luta.

 

mesmo que apolo ou atena

de posse de corpos travassem

mesmo que eneias vertesse

para o pacífico sul

proteja-me ó tempo de todos os males

e não me deixes ficar à mercê de mim mesmo.

 

 

quando da primeira colheita

que os camaradas estejam bem fortes e dispostos

mesmo que a praga das pragas assole

o solo de todos os povos.

 

como entristece a praga nos

solos de todos

os povos.

 

 

é como a praga da noite inquieta

em rancho de baia

demais hilário

um rancho para todos os nossos reis.

 

 

dois santos estendam-se a nós

e guiem-nos pela labuta;

 

 

protejam-nos de todos os males

agora e na hora de nossa morte.

 

 

[In: poemas de minimemórias. Caminhos: 2015. p. 79]

 

 

 

canção para todos os povos

 

 

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal?

Pessoa

 

 

dous ou três versos para que todos

chorem

para que todos na angústia estejam

brilhem

no raio imenso de estrela em pó.

 

ela tremeu suas mãos sobre o peito

recolheu cada parte em mementos

e os manteve nas estações de outono a inverno.

 

passados os seis meses

guardava ainda o rancor das horas.

essas horas que não mais passavam

e apenas se acumulavam pelos ramos do tempo.

e eram apenas ramos de tempo.

 

 

as mesmas horas tristes das minas de itabira

ou do ouro escondido em goyaniagoyaz.

 

elas não descansam. não param

de carpir. os rostos úmidos

lembram os semblantes da memória.

 

da minha memória

da minimemória

 

todos os povos se abraçam em consolo.

a multidão se espalha e toma conta do tempo

aquela sensação suspensa.

 

 

está por vir um homem

a abraçar seus irmãos e levantá-los:

 

a abraçar milhões

como se verdadeiros camaradas.

 

 

[In: poemas de minimemórias. Caminhos: 2015. p. 77]

 

 

 

às horas de.

 

 

e dessas horas ardentes

ficou esta cinza fria.

Bandeira

 

 

e como eu palmilhasse

os monstros da planície

 

do cerrado e invadisse

o planalto em seguida

 

e de quebra levasse

um sorriso devasso

 

quase um ocaso coração

gelado pétreo frigidez

 

 

e como um jeito bobo

perfizesse alguns lábios

 

e eu tateasse todas

as carícias do mundo

 

ou seguisse ribeiras

bem abaixo do norte

 

fingindo toda a rigidez

que não esconde a aflição

 

 

e como eu invertesse

a ordem dos sentidos

 

e em duzentos e vinte

volts me ligasse à terra

 

quebrando os olhos d’água

imersos nos meus rios

 

tristes rios em minha tez

tristes rios nesta canção

 

 

e como eu não soubesse

do outro lado das coisas:

 

estamos sempre às horas de.

 

 

[In: poemas de minimemórias. Caminhos: 2015. p. 85]

 

 

 

antimaio

 

 

i

 

 

nesta época

mais do que em maio

as notas das damas-da-noite

sequestram

minha memória.

 

 

é o óbvio da primavera:

a cada ciclo

a cada cio inefável

respiro de mim o que sempre fui

daquilo que nunca

jamais serei.

 

ademais

se entre dentes

dirá de novo seu cântico de certezas.

 

 

 

 

ii

 

 

quem quiser maio que

fique com o outono.

derrube a flor

o calor

a presença contida.

 

quem quiser maio

que padeça de seu próprio corpo.

das cinzas, só se retomam as horas.

o tampo longo

segurando um pó sem vida

um pó — guardas porque pensas

e é somente símbolo.

 

quem quiser maio

que rompa a esfera de geadas e labaredas:

maio não existe

nem nunca

existiu.

 

 

 

 

iii

 

 

duas voltas para ciclo —

um só.

 

se quisesses maio, era só apertares o botão

 

RESET

 

 

e tudo por lá recomeçaria.

lembrarás os arroubos da memória:

 

chegou dois meses depois

já era estação geada

 

outono em cinzas coberto

e o povo a recolher-se.

 

eu não pensava — matéria

se tira lapida pila

para então se fazer corpo

pele carne sangue_änima.

 

eu pensava: da matéria

só terei o do teu ventre

filho robusto, parece

comigo, e sou eu mesmo

 

quando a luta corporal

me chama. aqueço as mãos

engendro para o futuro

um batalhão de saudades.

 

na vida, há aqueles colecionam tristezas

e colocam-nas lado a lado

para que sempre se atenuem

no seu vazio pendular.

 

eu coleciono saudades —

uma ou duas ou três ou quatro

coisa que insiste

 

saudade.

 

 

 

 

iv

 

 

muitos já disseram sobre

maio.

o outro do inglês, prefiro.

mas este maio é meu:

antimaio, pra ser preciso.

 

é meu maio que afaga

tudo de aquilo torto

aquele quase ranço

de solitude, seca

nuvem sobre o deserto:

goyaniagoyaz.

 

é lá que uma secura

segura sentimentos

e os transpõe em calor.

 

antimaio, mais que

primavera, é anti-

-matriz, antimatéria

de outono — restam cinzas.

 

 

 

 

v

 

 

se nascesse outra flor

não queria:

espero ainda

pela flor robusta de pedra

tão porosa

tão viscosa

tão

pedra

 

 

relembro quando, em

outubro passado

resolvi recolher as las-

cas.

difícil? sim.

canhestro? sim.

 

mas foi, depois polida

o melhor de todos os lírios.

abriu-me espantos e espasmos.

foi daí que veio o momento mineral:

 

 

era uma vez um pedreiro roto

e quis de vil uma alvenaria

que suplantasse sua casa forte:

mas em goyaniagoyaz não pode

alvenaria forte, pois custa

diversos olhos

braços também.

 

como no mundo quase que todo

lá em goyaniagoyaz, tão rude

se diferente: ou poderia?

 

a diferença reside, sabes

periferia mais periférica

 

periferia das periferias

 

uma cabaça que se tocava

quando mulheres que se enformavam

se resolveram como de fato:

 

entre o estilo

e o espaço

entre a cabaça

e o cabaço

 

aqueles braços aquela vista aquela charla remoída [macia charla

convergindo nosso corpo nossa pele nossa carne _ nossa änima] —

mas a pequena helena já avisara pelos seus seios em deleite

continuaria a tocar o mundo a mesma volta.

 

 

o cântico assim recomeça:

 

em terra de cego

todo rei perderá seu olho.

 

 

 

 

vi

 

 

não tem nada a ver

cismar o tempo

 

ismália ou afrodite

psique rosamaria

 

e enfim

helena

 

 

se se brinca ao véu da carne

a esposa cede o ventre

aos mil homens que a perseguem

 

sherazade nas chalanas

teceria pela noite

 

ou penélope de ítaca

numa roca de madeira

 

e não: tece pela chaga

daquilo que nem virá.

 

 

 

 

vii

 

 

volta ainda pra maio

como fosse recusa

da moenda em sopro.

ali onde estiveram

homens maturamente

preparados à morte

eu espreito uma carta

escrita a mil rebanhos

quando as vacas pastavam

sem saber de uma dor

de que mastigam seus

filhos como do sangue

nunca escorre — ante as bocas

é somente seu gosto:

o cheiro o tato as pernas:

é somente seu ócio:

 

benevolente culpa

de um sorriso apagado.

 

 

volta a maio caindo:

coração entre nuvens

e tudo o que um caroço

pode fazer por nós.

 

antimatriz, matéria

corrosiva. impulso

que segura a cabeça

mesmo num pé quebrado.

antimatéria, faca

amiúde cortante

porque sua lâmina

a paisagem que fere

 

o cabaço entornado

o vinho e uma cabra —

isso o seu bardo quis

e nunca lhe lograra.

 

uma cabra adentraria

quase dois mil desertos.

há pra cabra deserto

mas não cabra pra campos.

 

há pra cabra demais

desertos que desertos

pra cabra. como há

mais cabra pra os campos

onde sempre se concentram

um bando amontoado

de cabras. cabra é

instrumento-verrume

 

como a faca bem como

a lâmina da faca

bem como a língua a lâmina

transpõe a cabra os campos

e todo o seu deserto.

 

bem como a faca corte

a lâmina não tinge

foge e finca fundando

a reserva seca

 

de almas fugidias.

bem como o deserto cabra

carrega em si a lâmina

seca da solidão.

 

 

em vão: lâmina rota

furtiva de desejos

e valores; podada

desde o fio da meada

 

a cabra, sol na boca

seio aberto pra cura

matriz de terra. vênus:

vida quase cadente.

 

resta luz por enquanto

pois hoje logrou

a mais plena lição:

uma escolha de facas.

 

 

 

 

viii

 

 

isto de ser não poderia

dar em outra: já que só somos

os ferreiros de certa liga —

 

vil metal — nunca disse sobre

mas comungo, meu camarada

caro hefesto de ofício tênue:

 

isto de ser só poderia

e será — tal quais as nuances —

primavera em veste de outono.

 

 

 

 

ix

 

 

terminar: era tudo bem aqui.

o silêncio; o sódio descendo

pela boca, mais seca, mais lêntica.

 

 

amarro os sapatos

como se amarrasse

os serenos passos

de um infinito posto:

 

amarro à morte alento

que só pode de nó

da chuva de poeira

água que beira, lava

corpo que trava morre

mas compõe mesmo mote

da matriz de matéria —

disso, antimatéria

 

anticonsolo lêntico

devoto em vozes rasas.

 

não quero pôr o vão deste meu corpo

em cru, profundo, vão de esquecimento.

ninguém quer. ninguém quis. sempre será.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


miguel jubé é natural de Goiânia. Concentra seus estudos em poesia luso-brasileira, literatura goiana e estética e filosofia da arte. É professor de Língua Portuguesa e Literatura para os ensinos básico e superior. É editor de livros pela martelo casa editorial. Recebeu, em 2014, o Prêmio Literário Açorianidade, da Associação Internacional de Colóquios da Lusofonia, por seus poemas de minimemórias (Calendário de Letras, 2015/Caminhos, 2015), obra vencedora com unanimidade pelo júri.