Recebemos convite para responder a questões específicas sobre a poesia e participar de uma nova edição ampliada de um livro sobre o assunto. Enviamos os textos e descobrimos, pelo Facebook, que nos incluíram fora dessa. Por isso, fugimos com a musa e a trouxemos para cá, para um déjeuner sur la page. Aqui estão as nossas respostas: a quem interessar possa. Nunca se sabe o que vai acontecer na posteridade. [Ademir Demarchi, Adriane Garcia, André Ricardo Aguiar, Silvana Guimarães]

 

 

Ademir Demarchi

 

1. O que é poesia?

 

Pensamento. Uma experiência de pensar e escrever a contrapelo. Lirismo calculado, riso desbragado. E, para mim, inspirada no ideário da antropofagia, um intenso exercício de regurgitação alcançado após a devoração compreensiva e crítica do outro em suas diversas formas de manifestação. Ler primeiro, escrever depois. Escrever, como ler, tem o sentido de buscar uma forma de pensar e agir contra o estado de coisas em que estamos desde sempre. Isso significa que escrever é um ato carregado de potência pois vai contra a sociedade que se ordena para que não se saiba mais de onde se veio, para não saber mais para onde se vai, e, como nunca, fazer crer que tudo é produto comprável e cambiável, formatando os indivíduos para não pensar, criando massas cada vez mais infantilizadas, brutalizadas e banal e espetacularizadamente copulativas (já somos mais de 7 bilhões, para que mesmo?) transformando a arte em esvaziado bem de consumo e ordenando o mundo pelo mercado.

 

 

2. O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?

 

Um escritor é, antes de mais nada, um leitor. Ler muito, traduzir, publicar revistas (como espaço de experimentação ou "cozinha", como dizia José Paulo Paes), formar uma biblioteca pessoal e não acreditar em nada, em ninguém e até nem em si mesmo e nas certezas estapafúrdias que cada um cria para si; antes duvidar, contra, portanto, toda idealização que pode ser mesmo aplicada a esse meio, o literário, que acredita demasiadamente em sereias idealizadas fantasiosas e cantarolantes como O Escritor, O Poeta, A Obra, O Livro, O Poema, O Crítico, A Editora, O Editor, O Estado, como excrescências de Deus e Deus Ele Mesmo etc.

 

 

3. Cite poetas e textos referenciais para seu trabalho poético.

 

Poetas: Oswald de Andrade, Augusto de Campos, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, porque eles e suas obras são exemplos práticos de todas as ideias aqui expostas; Joan Brossa.

 

 

Livros referenciais:

 

- Estrutura da lírica moderna (da metade do século XIX a meados do século XX), de Hugo Friedrich - "A tensão dissonante é um objetivo das artes";

- Inútil poesia, de Leyla Perrone-Moisés;

- "Antagonismo à sociedade" e Os filhos do barro, de Octavio Paz. Do romantismo à vanguarda, a tradição da ruptura.

- Tudo sobre antropofagia, a começar por Oswald de Andrade e seu Do pau-brasil à antropofagia e às utopias.

 

 

Por que estas escolhas?

 

Depois do legado do alto Modernismo, em seu empenho de discussão estética que atingiu fortemente a poesia, não se pode mais querer fazê-la sem uma mínima consciência crítica do que seja, impondo-se ainda ao escritor aquelas primazias que caracterizam a poesia da modernidade, que são as categorias negativas, tal como apontadas por Friedrich, somadas ao antagonismo à sociedade, assunto caro a Adorno e outros estudiosos do assunto, como Barthes (leia-se Inútil poesia). Somam-se a esses o legado de Oswald de Andrade e da antropofagia, formulação original da nossa cultura e modo operante e eficiente de pensar e de lidar com a literatura e a cultura em geral, pressupostos esses essenciais para que um poeta faça juz ao tempo em que vive e tente responder à altura às indagações feitas por seus antepassados, ainda que assuma uma eficiente postura anacrônica.

 

 

 

 

Adriane Garcia

 

 

1. O que é poesia para você?

 

A poesia é aquilo que se pode captar mais profundamente do instante, um alumbramento, uma revelação. A linguagem, mais especificamente, o poema, é o meio pelo qual esse instante pode vir a ser comunicado.

 

 

2. O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?

 

Não creio que haja receitas prontas que sirvam igualmente à diversidade ímpar dos indivíduos, mas creio que um poeta, iniciante ou não, deve perseguir o silêncio, coisa difícil num mundo de puro ruído, onde há muitas palavras e pouquíssima comunicação. Perseguir o silêncio, olhando, sentindo, lendo (porque ler nos dá ferramentas para escrever); tentando não obstruir a voz mais profunda que há por trás de tudo, de todo acontecimento e que o poeta transformará em poema, ou seja, escrevendo. Acho que para um iniciante - os veteranos já devem saber - também é aconselhável não confundir a literatura com o meio literário.

 

 

3. Cite 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que estas escolhas?

 

Cito Cecília Meireles, Rainer Maria Rilke e Carlos Drummond de Andrade.

 

Cecília com seu Isto ou aquilo, foi o meu encontro com a poesia, aos seis anos de idade. Ficou marcado para sempre em mim que a poesia era musical, e que à delicadeza se aliava força. Claro, eu não entendia assim, apenas descobria a beleza. Talvez tenha sido o fator determinante para que eu, que começava a ler e escrever, ousasse sempre o poema.

 

Rilke com Cartas a um jovem poeta, poeta que li muito mais tarde, já na casa dos trinta anos, primeiramente com Elegias de Duíno (quando descobri o assombro de ler alguém que escrevia como se fosse o próprio anjo), mostrou-me o quanto poderia haver de comunicação sobre a própria escrita e, de certa forma, ensinou-me que poderia haver generosidade entre poetas. Rilke me emociona profundamente.

 

Carlos Drummond, eu poderia dizer de sua obra completa. Foi o poeta que carreguei na bolsa, vindo sempre da biblioteca da escola (eu não tinha livros em casa). Drummond me acompanhou em minha solidão. Sua poesia falava de tudo, todos os temas da vida estavam ali. E havia ironia, humor, profundidade e, sobretudo, melancolia. Os livros de Drummond são daqueles livros que leem o leitor. Eu nunca parei de lê-lo. São os livros dele que ficam mais próximos, no meu quarto. Abro ao léu, sempre me surpreendem. Não envelhecem jamais.

 

 

 

 

André Ricardo Aguiar

 

 

1. O que é poesia para você?

 

Poesia é ir em todas as direções com a linguagem. É cortar caminho para o maravilhoso. O poema é um objeto cantante, mágico, um aparelho lírico cujo funcionamento eu desconheço, mas que ordena todos os mundos possíveis, dentro e fora da alma. O poema é uma solidão de portas abertas e janelas insondáveis.

 

 

2. O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?

 

O iniciante tem que brincar em constante vigilância com os mecanismos da linguagem. Tem que olhar cada palavra com carinho e tirar dela todos os materiais. E fazer as combinações sempre visando o humano. E ler sempre, como quem inaugura o mundo. Só assim a verdade poética começa a dar sinal de vida.

 

 

3. Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que estas escolhas?

 

O continente Drummond, porque dele eu tomei o gosto da busca existencial, da variada fauna dos seres e porque ele cantou o amor em diversas formas. Com Drummond soube como entender um pouco o bicho humano com um refinamento de quem olha, vê e desvê. Por isso que leio e releio Claro Enigma. Da safra recente, a poeta Wislawa Szymborska e sua obra: eu sinto necessidade de uma narrativa poética que deixe ao avesso o que se passa aqui com a gente, de personagens a teorias do mundo. E Wislawa conversa com o leitor já perguntando, querendo que a gente saia do conforto. E diz isso com a linguagem mais límpida possível. Com ela, sinto uma companheira de sala, alguém que divide o café e os bolinhos - e damos grandes risadas. Não largo desta amiga polonesa de linguagem universal. De onde eu venho, um poeta querido, um amigo presente, um dos grandes e ainda pouco explorados, o poeta Sérgio de Castro Pinto. Sua grandeza vai para o minúsculo com ares de inventor lúdico. Pega qualquer coisa, de objeto a bicho e recria segundo seu evangelho ilógico com tal destreza que o caminho dá voltas e voltas para nos mostrar uma paisagem inusitada. Sua obra reunida é uma consulta constante para maravilhar-me. E aprender que com a palavra se brinca de modo muito sério.

 

 

 

 

Silvana Guimarães

 

 

1. O que é poesia para você?

 

Poesia é arrepio e assombro. O poema pega na minha mão — e me leva — quando me surpreende ou me faz pensar. Nos mistérios do que diz ou do que esconde. Mas a poesia nem sempre está no poema (às vezes, não está). Pode surgir quando vou pagar um boleto no banco ou colher cebolinha na horta. Como um raio que me parte em muitas. A poesia é um susto. É o meu modo de ver a vida. Vou andando pela rua e ela aparece ali, na minha frente:

 

Um cão de três patas

saltita sob a chuva.

Parece alegria.

 

 

2. O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?

 

Creio que ele deve persistir na forma de trabalhar a linguagem — o rigor poético — e a invenção. Isso exige muita dedicação e um esforço pessoal de inteligência, de criatividade. Aliar o formalismo à imaginação. Ler muito, ler mais do que escrever. Insistir no ritmo. Definir suas noções de estética sem subestimar o valor da técnica. Não abusar da técnica (manter a liberdade que não o exponha ao risco de escrever bula de remédio). Vagabundear. Resistir. Fugir do confessional, do convencional, das velhas fórmulas. Não é fácil: todo cuidado com a palavra é pouco.

 

 

3. Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que estas escolhas?

 

Minhas referências são bastante heterogêneas. Vou escolher, então, o meu feijão com arroz de todo dia: Carlos Drummond de Andrade, Alberto da Cunha Melo e Luci Collin: três poetas que leio com espanto e encantamento. A escrita dos três tem o poder de me transformar em qualquer coisa entre vaga-lume, passarinho e estrela, qualquer coisa que voa e brilha. Bem alto. E isso é uma espécie de amor.

 

 

Canção Final

[Carlos Drummond de Andrade]

 

 

Oh! se te amei, e quanto!

Mas não foi tanto assim.

Até os deuses claudicam

em nugas de aritmética.

Meço o passado com régua

de exagerar as distâncias.

Tudo tão triste, e o mais triste

é não ter tristeza alguma.

É não venerar os códigos

de acasalar e sofrer.

É viver tempo de sobra

sem que me sobre miragem.

Agora vou-me. Ou me vão?

Ou é vão ir ou não ir?

Oh! se te amei, e quanto,

quer dizer, nem tanto assim.

 

 

 

Casa Vazia

[Alberto da Cunha Melo]

 

 

Poema nenhum, nunca mais

será um acontecimento:

escrevemos cada vez mais

para um mundo cada vez menos,

 

para esse público dos ermos,

composto apenas de nós mesmos,

 

uns joões batistas a pregar

para as dobras de suas túnicas,

seu deserto particular,

 

ou cães latindo, noite e dia,

dentro de uma casa vazia.

 

 

 

Deveras

[Luci Collin]

 

 

o poeta finge

e enquanto isso

cigarras estouram

pontes caem

azaleias claudicam

édipos ressonam

vacinas vencem

a bolsa quebra e

o poeta finge

e enquanto isso

vagalhões explodem

o pão adoece

astros desviam-se

manadas inteiras se perdem

a noite range

o vento derruba ninhos e

o poeta finge

e enquanto isso

vozes racham

veias entopem

galeões afundam

medeias abatem crias

turvam-se as corredeiras

o sapato aperta e

o poeta finge

que as mãos cheias de súbitos

não são as suas

 

 

dezembro, 2017

 

 

 

 

[imagens ©kristina varaksina]

 

 

 


 

 

 

 

Ademir Demarchi (Maringá/PR, 1960). É escritor e editor da revista de poesia Babel. Publicou, entre outros, Os mortos na sala de jantar (2007); Pirão de sereia (poesia reunida, 2012); O amor é lindo (2016), de poemas; Siri na lata (crônicas, 2016); Espantalhos (ensaios, 2017). Blogue: babelpoetica.wordpress.com. Site: babel.org.br

 

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Adriane Garcia é poeta, nascida em Belo Horizonte/MG. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (Armazém da Cultura, 2014) e Só, com peixes (Confraria do Vento, 2015). Em 2016, participou da Coleção Leve um Livro (org. Ana Elisa Ribeiro e Bruno Brum) com o livreto Embrulhado para viagem.

 

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André Ricardo Aguiar, escritor e jornalista, é autor de A idade das chuvas (poesia) e Fábulas portáteis (contos) ambos pela Patuá. Também escreve literatura infantil, como O rato que roeu o rei (Rocco) e Chá de sumiço e outros poemas assombrados (Autêntica).

 

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Silvana Guimarães (Belo Horizonte/MG). Escritora e socióloga, participou de algumas coletâneas, entre elas, duas que organizou: 29 de abril: o verso da violência (Patuá, 2015), Dedo de Moça — Uma Antologia das Escritoras Suicidas (Terracota, 2009), Hiperconexões — Realidade Expandida Vol. 2 (Org. Luiz Bras, Patuá, 2014) e 1917-2017 — O Século sem Fim (Org. Marco Aqueiva, Patuá, 2017). Editora da Germina — Revista de Literatura & Arte e do site Escritoras Suicidas. Vive em Belo Horizonte.

 

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