Os argonautas

Os mortos com seus sapatos ébrios.
Quem os detém? Beberam os licores
da perda e andam por corredores
com suas certezas de pó, desafagos,
suas bíblias da inércia.
Parecem dizer algo, anúncio de verme.
Às vezes, cismam e por instantes
os mortos folheiam o vento, habitam
uma fotografia, pesam uma lágrima.
Não os tivessem tocado, e o batismo
geral  ou a relva inconcebível
voltariam a arquivá-los
numa lua de esquecimento.

 

 

 

 

 

 

Da carta

Sua estrutura, seu caroço,
rio sem margens,
retreta, praça, coragem

desdobro-a pela ponta
da língua escrita:
sua rigidez de oceano,
seu susto sobre a saudade

a carta — se ridícula —
de amor respira à mão:
colheita de porões
e varandas

a carta se dá por inteira

mesmo se perene
ou passageira.

 

 

 

 

 

 

Sine qua non

Eu, que mal me escuto,
que mal consigo saber quem sou,
que os sonhos me sobram, eu nada sóbrio,
fábula de carne sem moral nem teogonias,
eu, que leio Pessoa nos intervalos
entre o que penso que sou e o que sou
verdadeiramente, (eu)
visto-me de memória, ponho uns réquiens
na saída e ensaio um fim,
quase um Sísifo a mover
a pedra de mim.

 

 

 

 

 

 

Loa para um gato

O gato, ele é todo uma antena,
um clérigo de patas, uma ponte
qualquer para atingir o nunca
de esquivez — todo ele, mil gatos.

Todo ele parte de si e nenhuma,
fácil de perder-se na sombra,
mover-se felinamente para o mistério
do quarto, que mal respiramos.

Não consigo sequer tocá-lo,
inútil é a ilha do seu nome.
Sua filosofia jamais suportaria
os gestos bruscos, as fomes.

Não o temos. Um gato tem-nos.
E sua leitura é sermos lidos
por ele, sermos menos que uma
idéia felina, um chamado.

O acento interrogativo do rabo
diz que o bicho é uma pergunta
que não quer resposta. Seus olhos
de desdém são segundas garras.

Deixá-lo ser. Respira-se melhor o ar
volátil, enquanto a lenda estremece.
Nem roca nem fuso no íntimo do lar.
Tece-se aqui um gato.

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

 

Elegia de domingo

Domingo terás toda a vida
em ruelas estreitas, bocejos de portas,
vislumbre de seio branco.

Domingo é a memória de fantasmas
fazendo pedicuro, fofoqueiros.
É uma aldeia encravada na semana,
aldeia branca.

Refestela-te com o teu domingo
como quem ouve o hino dos mortos.

Teus passos saberão a ossos,
teus caminhos estarão dormindo
no profundo domingo.

 

 

 

 

 

 

Duelo

Quem bate agora ao espelho sou eu.

Uma porta que abro e dou com esse diabo
chamado desconhecido:

um corpo sem saída,
chave secreta a destrancar
a fechadura das roupas.

Agora não sou eu: é o espelho quem bate,

inquilino sem licença,
boxe sem alarde, latido de imagem
no canil solto da manhã.

Cada ruga, dobra, flerte,
ele me rosna a mesma indiferença
fria, esse dar de ombros, essa língua
e seu palmo de iceberg.

E assim nos batemos em vidro e retina:

soco de lago vitrificado, fundura
de saber quem é quem na arena
entre códigos e runas:

reflexão nenhuma.

 

 

 

 

 

 

O ciclista

à flor veloz
colhe o tempo
(pedal)
pé ante perigo
no risco de dar consigo

centauro de rodas e aros,
meio homem, meio
de transporte

a pena da bicicleta
escreve ruas
até que uma esquina
engatilha o ciclista
e dispara —

a pólvora do instante
o ciclo da vida

tudo pássaro
e passageiro.

 

 

 

 
 
  

 

Terceira vigília

Mulher nua dormindo. O mistério em pétalas.
Os labirintos semicerrados, como se deuses
movessem a mobília dos sonhos.

A cama e uma mulher silenciosa. Gótico barco
e páginas de antigos mares na insônia
das palavras caladas, âncoras de sombra.

Noite entre mulher e vigília. O luar salta a janela
(uma lagoa) e por uma fresta mínima
a ternura sonha pequenos dragões.

 

 

 

 

 

 

Teologia

Deus visto daqui de baixo
finge que não me vê.

Eu o finjo igualmente
com um ar sem rumo, ser
ou não ser.

Posto que não há mais
o que fazer:

para todo efeito
o pacto é morto,

eu ando por linhas, torto.

 

 

 

 

 

 

Colheita

Palavra como um grão
— o debulhar, campina
ciente do geógrafo

em pleno estio, súbita
seara — maré movendo
o convés da lua.
 
Assim o poeta
— fauno entre riscos —
e estreito como um beco
 
volta ao início
das coisas
que se ferem

e pica a agulha
o seu palheiro:

toda palavra é cicatriz.

 

 

 

 

 

 

A Mario e seus cataventos

Todos temos um baú, perdido em algum
canto, na casa da avó, debaixo do tapete
do tempo... com coisas possíveis e mortais.
Quintana tinha um baú com coisas impossíveis.
Conchas, navios, cataventos, assombrações.
Retratos de antigas namoradas, os porres extremos,
a preguiça de certos telhados, ruazinhas de pó e saudade.
Um trem a passar numa estaçãozinha perdida,
e um poema no bolso do paletó, pedindo janelas.
É a este Mario, que atravessa o meu caminho,
— de pés ausentes e mãos delicadas —
que ele fica definitivamente como um grilo,
um anjo sussurrado, um passarinho.

 

 

 

 

 

 

Da imagem

Trapo de lua
dá para vestir
um poema
se uma imagem
souber o caminho
mais curto
(e surpreendente)
entre a coisa em si
e o dizer espantado

susto de um iceberg
a inaugurar sua ponta.

 

 

 

 

 

 

A idade das chuvas

Quando era infância
tive o meu caderno de chuvas:
algumas rasuradas, outras
fiéis cópias dos deveres do céu.

Quando era infância,
minhas chuvas eram as águas
do que poderiam ter sido:
fruto de rios bem cursados.

Mas herdei a chuva ancestral
que põe umidade na alma
e passa o ano a acarinhar
a palidez das poças de lama.

E é a mesma água que ainda sonha
os grandes oceanos.

 

 

 

 

 

 

Construção da chuva

Não me desfiz
nem dos pergaminhos
nem dos fantasmas.

A assombrada leveza
dos morcegos e a noite
roendo minhas insônias,

os parágrafos noturnos
da chuva a escrever o telhado
(finíssimo casulo),

enquanto o mundo lá fora
sempre às vésperas
de ser novamente lido

era a cópia eterna
dos dias já findos.

 

 

 

 

(imagens ©sikorzewska)

 

 

 

 

André Ricardo Aguiar (Itabaiana/PB, 1969) Publicou A flor em construção (1992); Alvenaria (Prêmio Novos Autores Paraibanos, 1997); de literatura infanto-juvenil: O rato que roeu o rei (2007) e Pequenas reinações (2007). Colaborador assíduo do Correio das Artes, tem trabalhos publicados na revista Poesia Sempre, Blocos (RJ), em antologias e jornais locais. Edita os blogues Fábula Portátil e Engrenagem.