As duas bocas

 

 

Uma vez, o médico me proibiu de comer sal. A primeira semana foi desesperadora. Atos banais como sentar-me à mesa pela manhã, picar um pedaço de queijo dentro de uma xícara fumegante de café e sorver seu conteúdo como quem engole o mundo para começar o dia foram proibidos. Almoçar uma empadinha na primeira padaria que me aparecesse pela frente, fechar um dia exaustivo com cerveja, azeitonas e salaminho, comer sem prestar muita atenção no que botava na boca, tudo isso acabou-se de repente.

Era um punhadinho de nada. Mas foi tirá-lo de mim e nada mais se organizava. Minha ordem interna dependia daquelas poucas gramas de sódio e eu não sabia.

Nos primeiros dias, minha língua se agitava meio enlouquecida dentro da boca. Procurava o sabor proibido. Dava vontade de lamber tudo que via pela frente, de procurar, garimpar, conseguir. Onde, no mundo, haveria sal?

Depois de algum tempo, com algum treino, minha língua já conseguia capturar o sabor desejado num pedaço de pão, num biscoito, num dente de alho ou num peixe do mar. Era um aprendizado: o do reconhecimento. Aprender a detectar o que se deseja não porque aquilo existe em abundância, mas porque existe.

A interdição me revelou a natureza oculta dos sabores mínimos: as ervas, o limão, a pimenta, as nozes, os fungos.

Se era impossível comer galinha, figado ou feijão sem sal, nunca os peixes, os legumes, queijos, peixes e carne tinham me parecido tão surpreendentes, tocados pelo condão de misturas que eu descobria meio maravilhada. E as cores dos ingredientes, as pinturas dos pratos, a textura dos guardanapos, o peso dos talheres, o bordado das toalhas, a maciez das cadeiras, o langor da luz, o ritual dos dentes, a gratidão da boca.

Não por acaso, quando o médico me deu alta, eu tinha me tornado uma boa cozinheira.

Quando acabou o sal de meu casamento, coisa semelhante aconteceu.

No entanto, ao contrário da dieta médica, o sal foi tirado da vida conjugal tão aos poucos que mal percebi. Deixei que meu corpo mergulhasse no sono confortável dos longos casamentos. Me permiti envelhecer. Esvaziada de desejo, me concentrei no que se espera de uma boa esposa. Cuidei de casa, marido e filhos sem jamais lembrar de mim.

Até o dia.

Até que.

Meus olhos esbarraram em um par de olhos castanhos. Voltaram. Pararam. Indagaram. Responderam. Fiquei suspensa ali. No fundo daquelas pupilas brilhavam cristais de sal.

Nos tornamos amantes.

Ao longo de poucos meses, começou a acontecer com meu corpo o que antes havia ocorrido com minha boca. Subitamente consciente de cada poro, de cada sensação, minhas mucosas, meus ossos e minha alma despertaram lentamente, não de um sono profundo — o que só me devolveria à noite anterior ao adormecimento — mas acordaram um novo acordar, uma realidade epitelial e concreta. 

Quando imaginávamos que todas as delícias do sexo haviam sido gastas na pressa da juventude, vemos surgir em nós um novo corpo. Uma carne erotizada, uma sensibilidade capaz de penetrar até os ossos, uma eletricidade nova, em nada semelhante àquela que experimentávamos anos antes.

 

Nos apelidamos Fugu.

Fugu é um nome mais aceitável do que baiacu, que é como se chama, no Brasil, um peixe de aspecto medonho, capaz de inflar feito balão e ficar mais feio ainda, e possuidor de um veneno letal. No Japão, onde recebe nome de som mais delicado, o fugu é uma iguaria rara. Só os cozinheiros mais experientes podem prepará-lo. Eles não retiram todo o veneno do peixe. Deixam um tiquinho. Na medida certa para inebriar sem matar. O problema é, como sempre, a medida.

Lidar com fugus é uma experiência sensorial única, tanto para quem os prepara — e adquire um poder quase divino sobre a vida e a morte de seu convidado — quanto para quem os come — e confia ao cozinheiro a dosagem exata que separa o êxtase do envenenamento.

Preparar fugu é prova de sabedoria. Comer fugu é prova de confiança. Por isso, eu e meu amante nos chamamos mutuamente de Fugu.

Somos, cada qual, ao mesmo tempo cozinheiro e comensal, sacerdote e oferenda, veneno e remédio.

Estamos prestes a completar 50 anos — no mar onde vivem fugus não se criam iniciantes. Temos diante de nós uma descoberta extraordinária: a paixão madura.

Como todos os amantes, temos contra nós uma saudade persistente e corrosiva. Como todos os amantes, temos a nosso favor uma saudade persistente e voraz.

Tento compensar a ausência de Fugu na cozinha.

Às vezes, cozinho para mim mesma, como forma de acarinhar os sentidos. Outras, preparo comidinhas de alcova.

Assim como retornam às mesas a slow food e a confort food, forramos nossa cama com slow sex e confort sex. Um sexo que traz para a cama tudo o que aprendemos na cozinha: diferentes tempos de cozimento, combinações de cheiros e texturas, atenção concentrada.

Ao lado de novos corpos, descobrimos também uma nova culinária, as comidas de alcova e de espera.

Que ninguém se engane — não foram as nozes que mudaram, mas minha língua que aprendeu a amá-las.

 

 

 

 

 

A nota azul

 

 

É preciso termos passado por muitas paixões para reconhecer aquela que é preciosa. E quando estamos diante de uma experiência singular, quando olhamos para trás e não encontramos nada parecido, em vez de lamentar a fragilidade da vida, que mais cedo ou mais tarde vai nos tirar aquilo, inventamos truques para expandir o tempo.

O que amplia por dentro o tempo dos amantes é a devoção — o culto individual que dedicamos um ao outro.

A paixão persistente cria em nós um corpo absoluto, fenômeno similar ao ouvido absoluto dos músicos. Trata-se de um ato de cognição, alimentado pela memória. O outro absorve nossa atenção de tal maneira que, sem nos darmos conta, registramos todas as nuances que seu corpo é capaz de produzir. Mínimas alterações de tom da voz, temperatura corporal, grau de umidade da pele, aromas, sabores.

Estive consciente de tal milagre a cada instante que Fugu e eu passamos juntos. Paradoxalmente, cada minuto de felicidade foi absorvido com tanta intensidade que trazia em si a consciência de sua finitude. Era como se eu escutasse pela primeira vez uma nota azul.

 

*

 

Para os músicos, a nota azul seria aquela capaz de fascinar o ouvinte, de prendê-lo à música. A ideia foi desenvolvida pelo psicanalista francês Alain Didier-Weill de uma forma tão encantadora que não consigo deixar de citá-la.

Didier-Weill fala de uma emoção que nos acertará na mosca e devolverá ao estado de gozo e será, sem jamais ser monótona, sempre a mesma. Ela nos marca de tal maneira que seremos eternamente dependentes de seu som. Esse estado de gozo, no entanto, depende da presença material de suas ondas sonoras. Não é possível reter em nós o efeito que ela produz.

É como o beijo do amante muito amado. O prazer que ele nos dá imediatamente nos escapa. É impossível mantê-lo aprisionado.

Fugu é (foi) minha nota azul. Cada segundo passado com ele me trouxe o lamento de sua fugacidade — sem o inevitável trocadilho. A única maneira de torná-lo eterno seria repetir cada beijo, tornar a conjurar a bolha de felicidade que mal havíamos aprendido a produzir.

Mas haveria o dia.

 

*

 

Sim, haverá o dia.

Um dia.

Em que ele recusará um beijo meu. E o silêncio provocado por esse gesto me levará a uma sensação próxima do aniquilamento.

Hoje sei que a expressão silêncio mortal só pode ter sido originada pela ausência da nota azul.

E ela me deixará uma marca tão intensa que aprenderei a chamá-la de desejo.

E será ela que me moverá na busca de um novo amor.

Sim, porque também haverá um dia.

Um dia.

Em que um novo amante entrará em minha vida.

E precisarei providenciar espaços vazios para recebê-lo.

 

Um novo namorado é sempre um catálogo desconhecido que se apresenta.

O primeiro toque trará uma incômoda sensação de abismo. Nossas mãos ignoram o futuro. Buscam o que conhecem. E avisam à alma: não sei onde estou. O nariz acompanha as indagações: que cheiro é esse? O novo amado será um corpo dissonante diretamente jogado na corrente sanguínea.

Nessa hora, serei movida pelo selo que marcou todos os meus sentidos. A busca da nota azul.

Será ela que me fará romper a barreira da estranheza, que me levará a querer devorar a possibilidade de paixão que se apresenta, abrir as veias e dizer: vem, meu novo amor, porque depois dos cinquenta não há mais tempo para não sermos eternos.

 

 

 

 

 

A receita impossível

 

 

Não existem alimentos azuis. Nem mesmo as blueberries, que são roxinhas. O milho azul mexicano não é azul. E alguns fungos, empregados na fabricação dos fromages bleues, estão mais para o esverdeado.

Não dá para comer o céu, nem a Terra, nem os oceanos.

Na impossibilidade de devorar o mundo, objetivo declarado de todo glutão, nos alimentaremos com beijos.

Até que morte nos separe.

Do desejo.

 

 

[Do livro Duas Bocas, onde cada reflexão é acompanhada por uma receita culinária.]

 

 

 

 


 

 

[imagens ©sylvie adams]

 

 

 

Fugu é o pseudônimo da jornalista e escritora Rosa Amanda Strausz, autora, entre outros, de Mínimo Múltiplo Comum (J. O. Editora), Teresa, a santa apaixonada (Objetiva) e Duas Bocas (Nova Fronteira).

 

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