TEMPO

 

Tinha dezesseis anos no retrato sobre a mesinha e sessenta na poltrona à sua frente. Se ela chegasse só mais um pouquinho para a direita, ele poderia ver as duas imagens sobrepostas e tentar descobrir por que aquele beijo jamais havia acontecido.

Mas ela se levantou bruscamente e ofereceu um café.

Ele aceitou, resignado, pensando que ser tarde demais era um destino como outro qualquer.

 

 

 

 

A EDUCAÇÃO PELA SEDA

 

Vestidos muito justos são vulgares. Revelar formas é vulgar. Toda revelação é de uma vulgaridade abominável.

Os conceitos a vestiram como uma segunda pele, e pode-se adivinhar a norma que lhe rege a vida ao primeiro olhar.

 

 

 

 

CONTO COLORIDO

 

            Quando lhe perguntaram o que queria ser quando crescesse, não vacilou: televisão.

 
 
 

 

 

 

MUITO ROMÂNTICA

 

Comparar seus olhos com um lago não só seria um lugar-comum como uma mentira enorme. Ausentes a placidez, a capacidade de refletir sem deturpar, a calma algo pantanosa — mãe dos mosquitos e da estagnação —, o que restaria ali de lago?

A comparação era um blefe.

Entretanto, estávamos ali, à beira do lago. E entardecia. Eu o amava e julgava finalmente compreender o panteísmo dos poetas românticos. Claro que o mundo era feito à imagem e semelhança do amado e seus olhos eram o lago, porque o mundo era a suprema metáfora dele.

Só muitos anos mais tarde, quando me deparei com a fria realidade daquelas duas pedrinhas emolduradas por grossos aros de plástico, lamentei: infelizmente, amado, você não era a metáfora que eu perseguia.

 

 

 

 

QUASE ERÓTICO

 

Para Victor Giudice, in memorian

 

Tinha dedos ásperos e mãos enormes, pacientes. Eram capazes de rastejar entre vestidos e lençóis infinitas vezes até se enroscarem em torno de um seio ou dentro de uma cavidade escorregadia. Não importava quais. Sempre encontrou o caminho. Jamais o sentido.

 

 

 

 

AÇÚCAR

 

            Pousou a mão no ombro dele e constatou quase assustada que era muito forte. Ofegou, ofereceu a boca escondendo os dentes, semicerrou os olhos e deixou que os joelhos se dobrassem. Era bom ceder à queda, como quem se esvai em nada. Ele aparou o corpo inerte e foi até a cozinha buscar um copo de água com açúcar. Detestava mulheres nervosas.

 
 
 

 

 

AINDA O VERBO

 

Queria bradar: faça-se a luz, e que a luz se fizesse. Gritar bom-dia e que assim o fosse mesmo. Inútil. Sua boca era uma fonte que espirrava pássaros. Belos, mas indomáveis. Assim que sentiam o ar a sustentar-lhes o vôo, sumiam como raios, deixando atrás de si um rastro que impelia à repetição e mais nada.

 

 

 

 

O SOL É VERDE

 

Desde que chegou a Primavera o ar tem esse gosto acidulado. Como se houvesse chovido suco de limão, o mundo estivesse levemente esverdeado e as bocas salivassem à toa. Na rua, as pessoas não se contêm e levam os dedos ao maxilar, massageando o músculo dolorido. Os narizes ardem e escorrem constantemente. Os olhos andam chorosos. E as crianças... ah, as crianças, que incrível poder de adaptação. Lambem o ar, felizes com um mundo banhado em limonada.

 

 

 

 

DESCOBERTAS

 

Ganhou três gravuras chinesas com fundo vermelho. Uma borboleta ladeada por dois morcegos, um peixe e um dragão. Emoldurou o presente em laca e pendurou na sala, adivinhando significados místicos nos quadros e nas intenções de quem os deu.

Eram três ilustrações para rótulos de caixas de fósforo, descobriu anos depois. E ficou ainda mais encantada com a irrupção daquela beleza. Desde esse dia, quando lhe perguntam o que querem dizer as gravuras, sorri. De que adiantaria explicar a morte dos nossos pequenos deuses?

 
 
 

 

 

 

O TELEFONE

 

Quando o telefone tocou, já sabia que era ela reclamando da solidão. Fazia isto todos os dias, à mesma hora. Chamava cinco amigos pela manhã, três à tarde e um número variável à noite. Era a solitária mais acompanhada que já se conheceu e a que melhor soube tirar proveito dos males modernos.

 

 

 

 

EM BRANCO

 

Embora eu não cresse em ti, invoquei teus pés, como o poeta. Diante da mudez da resposta, invoquei uma unha, uma unha encravada, uma lasquinha suja de existência. Nada. Não respondes. Não existes.

De onde surgiam indagações, ficou apenas o lugar. Imenso, ilimitado, fonte de toda criação e silêncio.

 

 

 

 

CARNÊ DE BAILE

 

Boa-noite minha cor recém-inventada, meu brilho insuspeitado, meu mistério novo. O que será você, uma estrela ou um alfinete espetado no céu? Saudei assim sua existência quando entrei naquela festa. Aliás, minto (desculpe, faço isso com freqüência nos começos). Entrei ali sozinha e medrosa e não vi nada. Tudo muito escuro e populoso. Avancei.

Ondulações, sorrisos, vinho. As festas fazem a gente moderna tão boa. Uma alegria generosa e eu ali, andando sozinha no escuro, sem vontade de aderir à celebração. Pensava vagamente em como seria bom se um táxi passasse pelo meio do salão quando você apareceu.

Foi aí que pensei: "Boa-noite, minha cor recém-inventada". Mas só disse o boa-noite, porque registrei na sua testa aquele sinal que avisa ao cérebro dos homens: ôba, mulher sozinha na festa! Você chegou nada originalmente, gavião cercando presa fácil. Mas seu olhar era tão incisivo que descobri em mim um brilho insuspeitado. Olhei em volta. Havia uma porção de gatas, peruas, galinhas. No entanto, você estava plantado na minha frente. Meus olhos, já acostumados com a escuridão, rascunharam as primeiras linhas de um poema heavy metal. Dizia: "Meu mistério novo/o que será você/uma estrela/ou um alfinete espetado no céu?".

Como se vê, não chego a mentir; portanto, continuo.

Em algum lugar daquele céu piscou uma luz pequena, lanterna de pilhas perdida no cosmos. Mas meus olhos — e o que não fazem olhos acostumados? — lembraram que a luz se propaga em linha reta e esta vinha direto até mim.

           De repente, muitos conhecidos se aproximaram e me cumprimentaram com a alegria sensual que caracteriza certas ocasiões festivas. Eram todos homens, o que fez com que você suspeitasse que eu era uma mulher cortejadíssima. Homem gosta de cheiro de homem em pele de mulher. Você me oferece vinho. Detesto vinho branco gelado, mas deixo que você me afaste do centro da sala e bebo em sua homenagem. Na claridade da copa você percebe que não uso maquilagem e que minha roupa é simples demais, mas uso um broche de rubis de verdade.

 

 

 

(imagens ©antoni tàpies)

 

 

 

 
 
 
 
Rosa Amanda Strausz, carioca, jornalista, ganhou o Prêmio Jabuti em 1991, com o livro de contos Mínimo Múltiplo Comum. Desde 1995 escreve literatura infantil. Edita o site Doce de Letra.