[cena do filme montanha dos gorilas | 1988]
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

vida amorosa dos grandes primatas

 

 

A caminhonete verde entrou na rua sem saída e parou em frente ao paredão coberto de pichações. Um rapaz magro, com cabelo afro e camisa florida, desceu e retornou em direção a um prédio baixo, de cinco andares. Olhou o relógio de pulso e apertou uma tecla no porteiro eletrônico. Eram quase seis da tarde.

Uma voz irritada tentou repelir o intruso:

— Quem é?

— É teu irmão. Abre aí, mano.

A porta destrancou, o visitante subiu rápido os vários lances de escadas até o quarto andar. O prédio não tinha elevador. A porta do apartamento estava entreaberta.

— Entra, Zé Roberto — o irmão falou lá dentro.

Estava largado no sofá, de roupão preto, lata de cerveja na mão, vendo um filme na tevê. A cara, cada vez pior. A sala fedia a cigarro. Na mesinha de centro, três cinzeiros transbordando de guimbas. Uma dúzia de latas de cerveja amassadas. Pratos e talheres empilhados, uma embalagem vazia de pizza, com manchas escuras de gordura na tampa de papelão.

— Vamos ventilar isso aqui — Zé Roberto abriu o vitrô que dava para o corredor.— Cê tá parecendo um homem da caverna, Anselmo. Não lava mais o cabelo? Parou de fazer a barba?

— Pra quê? Não tô mais trabalhando.

— Desde quando?

Ele respondeu sem tirar os olhos da televisão:

— Faz quase um mês. Não tinha mais cabeça pro trabalho. Eles perceberam e me mandaram embora.

— E você não tá procurando outro emprego?

— Não consigo mais sair de casa. Hoje, troquei de roupa três vezes, queria sair, mas não consegui.

— Que conversa maluca é essa, rapaz? — o tom de Zé Roberto foi de irmão mais velho, embora fosse treze anos mais novo.

— Semana passada, um amigo quis me levar num puteiro, veio me buscar de carro. No meio do caminho, me deu um ataque de pânico, comecei a chorar, pedi pra ele me trazer de volta.

Zé Roberto exalou o ar entre os dentes, sem achar o que dizer.

A causa daquela fossa medonha estava ali, na parede, no pôster fotográfico: Maria Alice, a ex, na praia, de biquininho, ombros e coxas tostando ao sol. Cinco meses antes, ela havia dito a Anselmo que o casamento estava acabado, que tinha outro. Ele reagiu de modo muito sensato. Ajudou a mulher a alugar uma quitinete, pintou o novo ninho, cuidou da mudança. Deu um tempo para que ela pensasse melhor. Ainda estava esperando. O retrato dela continuava na parede.

— Você não viu mais a Maria Alice?

— Não. Faz mais de quarenta dias. Da última vez, ela disse que não está mais com o outro, que foi uma coisa sem importância, mas que a nossa situação não tem retorno, que acabou mesmo.

Zé Roberto chiou de novo entre dentes, sem palavras. Hesitou um pouco, mas perguntou:

— Você alguma vez pegou ela com o outro cara?

— Não. Andei seguindo ela um tempo, mas ela é esperta, entrava no metrô de repente, pegava um táxi... sumia.

Falava sem desviar os olhos do filme na tevê. Na tela, Sigourney Weaver recolheu alguma coisa no mato e disse em tom alegre, em português: "É bosta de gorila".

— Que bosta de filme é esse, Anselmo?

— É a história de uma pesquisadora que viveu e morreu na África, defendendo os gorilas dos caçadores.

— Deve ser meio chato.

— Não é. Já vi cinco vezes. Gravei da tevê. Não tô saindo de casa, só posso ver os vídeos que eu tenho. Pega uma cerveja pra você na geladeira e senta aí.

Zé Roberto foi à cozinha, voltou com a lata na mão. Removeu uma pilha de revistas e jornais de uma poltrona, largou a pilha no chão e sentou-se. Depois de uns goles, deixou a lata na borda da mesinha.

— Não posso beber muito, vou dirigir hoje à noite.

Meteu dois dedos no bolso da camisa, puxou um cigarro, tirou um isqueiro dourado do bolso da calça preta, risca de giz.

— Bom, mano, eu vim dizer uma coisa a você — puxou uma tragada, expeliu a fumaça.— Tô de mudança pro Rio. Já tenho emprego lá. Vou embora hoje, logo mais. Minha tralha tá toda aí na caminhonete. Vim aqui pra me despedir.

Anselmo apertou "pausa" no controle remoto. Congelou um gorila adulto que golpeava o peito com os punhos.

— Assim, de repente? Pensei que você estava contente aqui em São Paulo. Que estivesse firme no supermercado.

— Sempre gostei de praia e sol, mano. Desde criança. Lá no interior, eu já sonhava com isso. Agora apareceu a chance.

— E vai trabalhar no quê?

— Vou me transferir pra um supermercado da mesma rede. Vou até ganhar mais.

— Bom... o que eu posso dizer? Espero que dê tudo certo. Acho que ajudei você no que pude, não foi?

— Claro. Sou muito agradecido. Você fez tudo por mim, desde que eu vim pra São Paulo. E nem tinha obrigação, a gente é só... meio irmão. Eu sei que isso é complicado, meu pai deixou vocês pra ficar com minha mãe. Mas você me tratou como família. Você é um puta cara, Selmo.

— A gente tem o mesmo sangue.

— Pois é... Não vou esquecer. Quando eu tiver me ajeitado por lá, convido você pra um fim de semana, certo? Então tá, mano. Preciso pegar a estrada. Amanhã cedo, tô entrando na avenida Presidente Vargas — fez o gesto de quem segura o volante do carro. Afundou o cigarro na grossa camada de cinzas de um cinzeiro e levantou-se:— Vem cá, Selmo, me dá um abraço.

O outro ergueu-se, pesado, o roupão abriu, deixou à vista a barriga protuberante. Abraçou o irmão caçula com a boca franzida, os olhos úmidos. Zé Roberto bateu a mão espalmada no peito dele, em cima do coração:

— Vê se te cuida, Selmo. Nenhuma mulher no mundo merece isso, porra. Você é um grande cara. Vai à luta. Corta esse cabelo, faz a barba, arruma outro emprego. Fica em pé de novo, que vai aparecer uma mulher digna de você. Pode acreditar.

Anselmo abanou a cabeça, mudo, Zé Roberto caminhou para a porta. Trocaram outro abraço. No primeiro degrau da escada, Zé Roberto parou e fez uma continência gaiata.

— Tchau, mano velho. Feliz Natal e um puta Ano Novo pra você — sua voz ecoou no corredor.

— Vai com Deus — Anselmo sussurrou.

Voltou ao sofá e acionou o controle remoto. O gorila urrou na cola de Sigourney Weaver e de um guia negro. Terminou a cerveja, pôs a lata em cima da mesinha e então viu o objeto dourado, esquecido no assento da poltrona.

Pulou do sofá e pegou o isqueiro de Zé Roberto. Tinha as iniciais dele gravadas: JRCM. Não tinha como chamar por ele, a janela do quarto dava para os fundos do prédio. Fechou o roupão, abriu a porta e desceu as escadas a toda pressa, de chinelos. Chegando ao térreo, ouviu um motor acelerando. Quando pisou na calçada, a caminhonete passou chispando.

Deu tempo de ver uma figura de mulher no banco do passageiro, e de ouvir sua risada de pura felicidade, aquela risada infantil de Maria Alice.

 

 

[in Miss Tattoo — Uma quase novela, contos, editora Jovens Escribas, 2016]

 

 

 

junho, 2016

 

 

 

Luiz Roberto Guedes, poeta, escritor, tradutor, letrista e publicitário. Nasceu e vive em São Paulo. Publicou Calendário Lunático/Erotografia de Ana K, poemário bilíngue, português/italiano (2000), Minima Immoralia / Dirty Limerix (2007), a novela histórica O mamaluco voador (2006), e a coletânea de contos eróticos Alguém para amar no fim de semana (Editora Annablume, 2010). Organizou Paixão por São Paulo, antologia poética paulistana (2004), com 72 poetas, de 1921 a 2003. É autor de vários livros juvenis, como Lobo lobão lobisomem (1997), Treze Noites de Terror (2002), Armadilha para lobisomem (2005), O caçador do arco-íris (2007), e Meu Mestre de História Sobrenatural (2008), obra selecionada pelo Proac – Programa de Ação Cultural da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Suas obras Treze Noites de Terror e O Livro das Mákinas Malukas foram adotados pelo MEC dentro do PNBE — Programa Nacional Biblioteca na Escola. Ganhou o Prêmio Escriba de Contos (1997), Prêmio de Poesia Lilia Pereira da Silva (1999), Prêmio de Poesia Helena Kolody (2001) e o Prêmio Nacional de Contos de Ficção-Científica (2007) da revista SCARIUM. Letrista sob o pseudônimo de Paulo Flexa, tem parcerias com os compositores Luiz Guedes & Thomas Roth, Beto Guedes, César Rossini, Madan, entre outros.

 

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