Asa de um Corracia garrulos| Albrecht Dürer | Aquarela e Guache sobre
Pergaminho | 19,7x20 cm | 1512 | Graphische Sammlung Albertina, Viena
 
 
 
 
 


 

A novela histórica

 

 

Todavia, hestes brutos que captivamos pera N. Senhor sam como crianças grandes, que hé mister guiar e proteger contra as artes do Ymigo, que acá tem campo amplíssimo pera cegar hos espíritos e dilatar suas trevas. Hé isto porque heste gentio anda desnudo, e tem herdado de seos antiguos muy maos custumes, scilicet, hos peccados da carne — porque sam de seo natural muy dados aa luxúria —, e ho amancebar-sse com varias molheres. Hé tamanha a sensualidade destes brasis que faz escandolo ver como teem tamtas palavras pera nomear as pudendas da molher, scilicet, sua feição e té seo cheiro! Aynda que seja comum pernície do gênero humano, faz piedade ver como heste gentio hé escravo do demonio yguiron — palavra delles que senefica ho apetite da carne, proh dolor!

 

Pesar do aguilhão da luxúria, ho principal herror destes brutos aynda hé ho de comer carne humana, porque creem que matando e devorando hum seo contráiro gainhão sua força e suas calidades de guerreiro. Asy hé que fazem guerra antre elles soomente por honrra e por "tomar nomes" de seos sumarán, inimigos; quamtos mais inimigos mattão, mais nomes teem, e mayor soberba, porque teem ho guerrear por melhor vida e passatempo que há.

 

Hos brasis aynda yrredemptos e ynfideles nam creem aver no céo hum Deos que fez todalas cousas, porém julgão que hos céos e a terra existem des que existe mundo. Nem mesmo teem hum nome pera Deos, mas chamão "Tupan" aos rayos e trovoadas, polo que aproveytamos pera lhes ensinar que Tupan hé Deos, que Tupancy é N. Senhora, e que Tupantahyra, o filho de Tupan, hé Jesus Christo N. Único Senhor. 

 

Asy hé que lhes vamos mettendo medo mortal de Anhangaratan, a terra do diabo, e a pouquo e pouquo hos persuadimos de que precisão purificar-sse de Angaypabypy, ho peccado original, e dar largos passos no caminho da salvação. Perseveramos sempre em tirar estas almas de seos maos custumes e herrores, e damos infinitas graças que vemos frutificar a vinha do Senhor, pois hesta terra hé a nosa empresa.

 

 

[TRECHO DE O MAMALUCO VOADOR / Luiz Roberto Guedes

Travessa dos Editores / Curitiba / PR]

 

 

Razão

 

 

Confissão de um falsário - Ali por 1992, achei num sebo um precioso livraço de oitocentas páginas, editado em 1954, com a vasta correspondência dos jesuítas em ação no Brasil, no século 16: Manuel da Nóbrega, José de Anchieta e muitos outros. Fiquei fascinado com essa crônica da colonização, reportagem em cima da hora, tipo "crucifixo na mão e uma missão na cabeça": ganhar almas para o céu.

 

Essa leitura fez germinar a ideia de uma noveleta histórica sobre aquele encontro assimétrico: de um lado, os jesuítas, imbuídos do fervor evangélico do apóstolo São Paulo; de outro, os "yndios brasis", pobres brutos nus que "não criam haver hum Deos no céo", e aos quais cumpria salvar, nem que fosse a poder de "espada e vara de ferro", como postulou o Irmão José de Anchieta, em uma de suas missivas.

 

O que contribuiu primordialmente para que eu me empenhasse no projeto foi a saborosa grafia quinhentista da "lingoa portoguesa". Elegi como narrador o padre Manuel da Nóbrega, administrador secular ativo e determinado. A novela epistolar seria um "manuscrito perdido" de Nóbrega, dando notícia da existência de um aeronauta pioneiro na Terra Brasilis, o noviço "mamaluco" Anrrique Braz. Tratava-se de forjar um documento consistente e criar "a lenda perdida de Guirapaxé", registrando as "desaventuras" de um herói proto-indianista.

 

A gênese do mamaluco - Creio que esse projeto arrevesado deve muito às minhas leituras adolescentes de José de Alencar (Iracema, O Guarani, Ubirajara), e até de James Fenimore Cooper (O último dos moicanos), autor que teria inspirado Alencar em sua visão de fundar uma literatura nativista. Alencar continua sendo para mim um herói literário: meu gozo em glosar o ‘portoguês’ quinhentista está em paralelo com a luxuriante prosa alencarina, que sempre me deslumbrou.

 

Hoje, parece haver quem considere o gigante Alencar "fácil, menor, desimportante". Grande bobagem. Fosse assim, o poeta e escritor Glauco Mattoso não teria escrito sua novela A planta da donzela (Lamparina, 2005), em que parafraseia A pata da gazela, de Alencar, e põe em cena novos personagens, afeitos a folias sado-masoquistas.

 

Portanto, eu tinha o tema, a oportunidade e o prazer literário de produzir uma obra "intertextual", pastichando a escriptura quinhentista, pirateando cartas de Nóbrega, de Anchieta e outros, e inserindo uma lenda pré-fabricada no corpus de um texto rigorosamente histórico.

 

"O mito é o nada que é tudo" - O crítico Manuel da Costa Pinto, numa breve resenha do livro (Folha de São Paulo, 16/12/2006), considerou que o "mamaluco" poria em xeque o fracasso da "miscigenação", nosso estimado mitema brasílico. Contudo, não tive jamais essa intenção demolidora: o anti-herói que moldei é, a um tempo, apolíneo e dionisíaco, um proto-brasileiro, filiado, avant la lettre, à tese oswaldiana da "devoração" da influência estrangeira. Escrevi o primeiro esboço em 1994, e finalizei o livro em 1998, na expectativa de que a efeméride dos 500 anos de Brasil, no ano 2000, seria a ocasião perfeita para o "mamaluco" levantar seu voo. Pois sim: colecionei cartas de editoras com a mensagem "estamos devolvendo o seu original O maluco (sic) voador".

 

Entretanto, mesmo ainda inédito, o manuscrito perdido de Nóbrega foi amplamente lido e apreciado, por escritores e poetas, em vários estados do Brasil. Imagino que o cipoal linguístico do Mamaluco só tenha atrativo para poetas, escritores, eruditos, estudantes de história e ratos de biblioteca. O livro só seria publicado em 2006, pela ousada Travessa dos Editores, de Curitiba, graças ao visionário editor Fabio Campana. Para o poeta Sebastião Nunes, "lá pelo ano da graça de 2500 [O mamaluco voador] será tão verdadeiro em nossa História quanto a carta de Caminha". E, no prefácio, o escritor Nelson de Oliveira declara que "O mamaluco voador já nascerá clássico", mas estou moralmente obrigado a creditar esse mérito ao padre Nóbrega.

 

De resto, eu não saberia esmiuçar o que mais possa ter confluído para essa escritura em patchwork. Mas desconfio que o espírito de Darcy Ribeiro — grande pajé da brasilidade e auto-proclamado profeta de nossa futura "Roma Tropical" —, assistiu ao parto pachorrento desse texto.  Principalmente o Darcy que nos ensinou que a palavra indígena "sururucatu" — cumprimento polivalente entre os Urubu-Kaapor —, significa, ao pé da letra, "Foda gostoso". Pois "o pecado da carne", praticado alegremente pelos brasis, era o que mais escandalizava os castos soldados de Christo.

 

Por fim, agradeço nunc et semper ao bom padre Manuel da Nóbrega, sem cuja colaboração involuntária esta obra jamais teria vindo ao mundo. Deos seia loado!

 

junho, 2010
 
 
 
 

Luiz Roberto Guedes. Poeta, escritor e tradutor, nasceu e sobrevive em São Paulo. Publicou, entre outros, Calendário lunático — erotografia de Ana K (Ciência do Acidente, 2000), a novela O mamaluco voador (Travessa dos Editores, 2006), Alguém para amar no fim de semana (Annablume/Demônio Negro, 2010) e organizou a obra Paixão por Sâo Paulo — antologia poética paulistana (Terceiro Nome, 2004).

 

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