©tiffany bozic
 
 
 
 
 
 
 

O lamento de Ingrid

 

 

A julgar por nossos desejos inconscientes,

nós mesmos não passamos de um bando de assassinos

Sigmund Freud

 

 

Em parte porque estavam no norte de Bergen, hospedados numa pequena casa de madeira de noventa anos que lembrava vagamente a do compositor norueguês Edvard Grieg, em parte porque terminar de escrever um romance num país estrangeiro dava aquela deliciosa sensação ilusória de sucesso, às nove horas da noite os Müller decidiram comemorar com drinques e música clássica. Enquanto Ingrid apanhava mirtilos e framboesas dos amentos que flanqueavam o terreno para preparar duas taças de clericot, Ernesto levou o gramofone do quarto para a varanda, pôs um disco com a melhor seleção dramática de Grieg e escolheu a cadeira mais confortável antes que a esposa voltasse com as bebidas. Também não quis esperar para ouvir a música e depois de espiá-la atravessando o gramado com as mãos cheias de frutas vermelhas, fechou os olhos e sorriu.

Antes de voltar para dentro da casa, Ingrid pôde ver aquele sorriso. Na cozinha, abriu uma garrafa de seu Riesling francês preferido, encheu duas taças até a metade, mergulhou nelas os mirtilos e em seguida as framboesas. Com o cabo de uma faca, apertou suavemente as frutas e viu com prazer os tons sanguíneos se rompendo no álcool como fiapos de fogo. Na varanda, Ernesto arrastou sua cadeira. Ela imaginou o corpo do marido aberto e deformado no jardim após cair lá de cima, enquanto ele vislumbrava a mulher asfixiada por um escapamento de gás.

Tudo isso aconteceu às nove horas e oito minutos, mas sete minutos depois, quando o sol ainda se punha na Noruega atrás de grandes nuvens que lembravam colheradas cremosas de suflê de laranja, Ingrid ainda sorvia seu clericot em goles epicuristas e a taça de Ernesto estava quebrada no chão, as frutas esparramadas como coágulos de sangue, o vinho formando uma pequena poça na madeira e o escritor inerte com a cabeça tombada, os braços ligeiramente tortos, a mancha da morte vazada em seus olhinhos entreabertos.

Do gramofone se desprendia a doce e curiosa "I Dovregubbens hall".

Embora Ingrid não tivesse virado a cabeça quando a taça explodiu no chão, ela soube. A despeito da música, o silêncio — silêncio humano, cujas raízes são sempre ruidosas enquanto há um coração batendo e pulmões inchando — era tão frágil que caso fosse tocado, se fecharia num grito, como o movimento nástico de uma flor. Por isso permaneceu imóvel, sentindo cada gota  da bebida e chupando as framboesas que nadavam no vinho como balas. Seus olhos haviam pousado além do murete que dividia os terrenos, na ponta de Flatøy, a ilha onde estavam, e diante da qual passava uma grande embarcação que ela desejou por um segundo que a levasse para o calor de uma lareira e a empanturrasse com pão de nozes, Jarlsberg e manteiga.

"I Dovregubbens hall" começou sua lenta ascensão ao mesmo tempo em que o sol desaparecia por completo. Com mais nuvens, o céu acendrado aumentou a sensação de frio que trespassava as tranças de lã do suéter de Ingrid. Eram 21:17h quando ela se permitiu um longo e satisfeito suspiro seguido do primeiro olhar sobre o marido morto.

Nem morto Ernesto parecia relaxado. Foi com muito desagrado que Ingrid viu seu maxilar ainda saliente. Como psicanalista, ela acreditava que o prognatismo mandibular do marido era mais um desejo inconsciente de estar à frente dos outros — embora sua barriga tratada à base de Malzbier já fizesse isso – do que uma desordem genética desfigurativa. Era como se aquilo lhe desse um ar de sabedoria, mas Ingrid não entendia como. Assim como não entendia aquela estranha obsessão por Hemingway, ainda que tivessem o mesmo nome, mas isso não justificava o uso das calças largas, da barba branca ou o estilo literário semelhante que ela tanto invejava. Talvez fosse outro desejo inconsciente — e Ingrid desejou, conscientemente, que ele também tivesse uma espingarda.

Ela voltou os olhos para aquele início de noite e lembrou — embora nunca tivesse esquecido — do romance do marido.  Eles haviam alugado aquela  casinha  porque lembrava a de Grieg, mas também porque pareceu o melhor lugar para terminarem seus livros, no gélido silêncio da ilha, além de ela cometer seu primeiro e último crime. Naquela quinta-feira ele escreveu as últimas oito páginas do seu romance sobre uma pianista que se isola numa floresta depois de enlouquecer, enquanto ela escreveu as últimas três páginas de uma novela para crianças. Eram confusos os seus sentimentos sobre o próprio livro, afinal uma psicanalista não deveria escrever livros risíveis para um público que abominava enquanto o marido conseguia espancar maravilhosas narrativas em sua velha Royal – idêntica a de Hemingway. Esta era outra característica que Ingrid detestava no marido: o gosto irritante pela máquina de escrever. Enquanto ela digitava quarenta palavras por minuto, Ernesto podia escrever um longo parágrafo como se metralhasse o objeto.

Ingrid virou o resto do clericot e mastigou todas as frutas de uma vez. Precisava se acalmar. Ainda tinha de voltar para o escritório ocupado pelo marido egoísta e terminar seu plano. O efeito dos três últimos goles de vinho foi rápido, de repente seus braços ficaram mais pesados e o resto do Riesling na cozinha pareceu tentador. Apesar do frio, sentia-se leve e quente como um prato raso de sopa.

Era bem verdade que ela também tinha terminado seu romance estúpido sobre cachorros falantes que planejam fugir de um canil, que havia sido um trabalho belicoso encarar aquele enredo por uma quantia de dinheiro que não comprava nem a porta de uma doceria de luxo no coração de Paris, mas não estava satisfeita, por isso daria seguimento ao plano. Para isso precisava levantar, mas sentia-se sonolenta. E começou a questionar o próprio talento quando sentiu o silêncio inchar.

Assim como o livro era ruim, e sua vontade de escrevê-lo tivesse tido a mesma intensidade emocional de um passeio de barco numa banheira de hidromassagem, ela não podia negar que as últimas páginas eram as melhores que escrevera em toda a sua vida — e isso incluía seus seis livros sobre psicanálise na arte enquanto estética. Era inegável o  poder  criativo  que  aquele  lugar  lhe  despertava, por  isso  podia  apreciar, conforme seus humores mais ácidos de apreciação, aquelas três últimas páginas. Porque não poderia escrever daquele jeito em sua própria casa. Não quando o vizinho de quase setenta anos com mal de Parkinson gostava de usar o antigo cortador de gramas movido à gasolina a cada cinco dias. O pior de tudo era o barulho da máquina, uma terrível oscilação sonora que parecia uma extensão do problema motor e neuronal do dono. Mas Ingrid sorriu ao lembrar-se das vezes em que sua bradicinesia, uma lentidão anormal dos movimentos, o impedia de atormentá-la.

Então ela colocou a taça no chão e fechou os olhos para ouvir a intensa ascensão da música. Logo o sorriso desapareceu porque a lembrança do outro vizinho encobriu a composição. Lembrou-se de quantas tardes perdera em seu escritório ouvindo a filha mais nova dos Holst brincar na cama elástica que ganhara nas férias. Muito próxima da piscina e da cerca que separava as casas, a cama elástica era usada por quase duas horas de forma ininterrupta. Ingrid tentava fechar parágrafos impossíveis ao som da menina se jogando na lona como se propositalmente. Tchucunti. Tchucunti. Tchucunti. Tchucunti. Tchucunti. Tchucunti. Tchucunti. Sua imaginação involuntária geralmente fazia Talita cair na piscina depois de abrir o crânio na quina de granito ou ser dilacerada pelas pontas de aço inoxidável da cerca, embora os tchucuntis continuassem ecoando em sua mente como um anátema.

Ingrid pegou a taça outra vez e arremessou-a. Ouviu o som de vidro se espatifando ao longe.  Afundou na  música de  seu  compositor preferido, agora  mais  grave, mais potente, prestes a explodir o gramofone. Quando o eco da cama elástica começou a voltar em ondas sutis misturadas aos acordes da música, decidiu que era hora de entrar, porque já fazia mais frio, escurecia e precisava terminar seu plano.

A casa estava misteriosamente quente. Abriu a porta com um último sorriso para Ernesto e entrou.  Quando visitou a casa pela primeira vez, na quarta-feira, Ingrid praguejou sobre o carpete branco que recobria todo o chão do segundo andar. Era estranho e pouco prático um carpete tão claro. Mas agora, tirando os sapatos e se dirigindo ao escritório, agradeceu pelo calor nos pés e pela quietude dos seus passos.

O escritório ficava num pequeno quarto que lembrava um depósito. Tinha o teto baixo e uma lucarna redonda sob a qual Ingrid sentou diante da máquina de escrever de Ernesto. Lá estavam no carpete as marcas dos pés do marido, cinco horas escrevendo sem mudar de posição. E lá estava a máquina sem nenhuma folha, pois o bloco com o romance datilografado havia sido simetricamente arrumado. "O lamento de Ingrid" fora escrito à mão no centro da primeira folha, e abaixo do título havia um traço feito com grafite. Seu nome no título não era o verdadeiro problema, ela sabia que o marido não tivera aquela ideia, mas que a "pegara emprestado" de uma das composições de Grieg; o verdadeiro problema fora o dislate da justificativa: "É uma homenagem para uma linda mulher". Asco. Ela sentiu a boca amarga. Até para inventar uma desculpa ele tinha de recorrer a um filme de Julia Roberts, chamando-a indiretamente de prostituta.

Seus olhos brilharam sobre o pedaço de grafite. Lá fora, "I Dovregubbens hall" ia para os momentos finais, acelerada e intensa como seu único pensamento. Oscilou sobre aquelas centenas de folhas marcadas pela odiosa criatividade do marido, saboreando com alguma náusea o que mais a irritava. Não eram só os pelos das mãos e dos braços, que a certa distância faziam com que o marido parecesse sujo – de modo que qualquer um pudesse sentir vergonha por ela. Mas a mania de limpar os dentes com fio dental como se dançasse uma dancinha particular, agitando as mãos para frente e para trás, e em seguida fazendo aqueles ruídos irritantes com a língua para tirar os últimos pedaços de casca de pipoca. Ou quando batia a porta e culpava o vento. Ou quando tomava o café da manhã com o prato afastado, sujando a mesa com migalhas de pão que não recolhia. Ou quando mexia demais na comida antes de colocá-la no prato não para ver o que era, mas  para  averiguar  se  ela  havia  colocado  pedaços  de  pimentão  no  ensopado,  ou temperado a salada com cominho, ou encharcado qualquer prato simples com seu azeite preferido de trufas brancas.

Num suspiro mais entediado que conformado, Ingrid pegou o grafite. Sentiu uma pontada no estômago ao lembrar de que na outra manhã, quando faziam compras no centro de Bergen, Ernesto havia confundido uma garrafa de água Voss com um vidro de perfume, dizendo em alto e bom som que nunca vira uma fragrância tão barata. Por sorte, ninguém entendia a língua deles. Mas isso não diminuiu o calor que subira em seu rosto, fazendo com que fugisse do marido antes que ele confundisse pedaços de brie com alguma sobremesa coberta de açúcar refinado.

Ernesto tinha outra mania: assinar os originais dos seus romances com aquele pedaço de grafite. E como Ingrid o tinha em mãos, o que ela fez foi colocar o próprio nome sobre o traço cinza, planejando publicar o romance que dedicaria ao tão saudoso marido.

Porque o carpete do escritório abafava o som dos passos, e porque Ingrid estava tão nauseada com o veneno que tomara quando Ernesto trocou as taças de clericot, ela não ouviu o marido entrar nem o viu parado às suas costas.

O corpo caiu pesado ao lado da escrivaninha, empurrando a cadeira e as pernas de Ernesto. Antes de afundar na escuridão, ela viu o marido balançar a cabeça e pegar o grafite. Com ele, desenhou o contorno do corpo no carpete, e quando na varanda a música acelerou nos instrumentos de percussão para finalmente estilhaçar-se, bem ao lado da cabeça escreveu a palavra "fim".

 

 

 

 

Perfeição

 

 

Para chegar à biblioteca era preciso atravessar um pequeno cemitério cujas lápides datavam da época em que Jane Austen editava seus manuscritos com uma tesoura. Talvez por isso, porque os retângulos e as cruzes se erguiam da terra como dentes cariados, manchados pelo verde musgoso do tempo, o dono do restaurante Ming tivesse deixado cair os cinco pratos que levava no braço esquerdo. A louça branca se abriu no chão como uma série de crânios de porcelana chinesa. (Embora o nome do lugar remetesse imediatamente à dinastia, nada ali era tão valioso quanto o perfeccionismo desse homem, hoje nervoso e trêmulo como uma folha laranja de outono prestes a cair no leito dourado de suas irmãs ressequidas pela morte.)

Tudo começou com a sueca. Ela falou em inglês com um forte sotaque britânico quando se conheceram no extenso píer que dava no restaurante Ming. Levava dois cachorros nas coleiras: um com a cor do pão da região, que sorria sempre que tentava abocanhar a manga da blusa do chinês, e outro preto, reluzente, mais baixo e mais novo. Ele não se identificou com nenhum, no entanto enxergava essa possibilidade caso a sueca viesse a gostar dele, o que de fato acabou acontecendo em menos de dez minutos. Ele quase não falou enquanto ela contava que o marido era caçador, que viviam num antigo sobrado azul entre outros coloridos criados por um famoso arquiteto sueco, que uma filha morava na Austrália e a outra na Coreia do Sul, e que o calor desses lugares a impedia de fazer visitas porque quase morrera de insolação uma vez "num inesquecível e tórrido verão francês, porque a França é o máximo que posso suportar". O encanto que crescia à medida que ela falava obliterou um pensamento que podia numa outra ocasião ser facilmente projetado em sua mente: o fato de que aquela senhora, de cabelos grisalhos e óculos escuros italianos, não gostava das filhas. Certo, seria um julgamento bastante mordaz, até incomum, de sua parte, mas que não ocorreu porque ele tinha toda a atenção voltada para aquela inesperada onipresença.

Ainda assim, a palavra "marido" escureceu um pouco a luz que vinha se alargando em seus olhos. Um marido caçador. Enquanto ele recebia suas carnes prontas, mortas, temperava o bicho para disfarçar a falta de sabor que um cadáver sempre tem. Não tinha tempo (talvez não tivesse estômago ou ousadia) para vestir botas e carregar uma espingarda até uma floresta a fim de furar um animal ainda quente. O chinês gostava de afundar os dedos no que era frio, e isso incluía os legumes que tirava de sua despensa climatizada todas as manhãs. Não sabia se gostaria de afundar naquele momento as unhas no próprio coração, gelado com a possibilidade de que a sueca simplesmente fosse embora para sempre com seus cachorros — e que, inevitavelmente, um deles escapasse de suas mãos, lançando-a para o clichê do atropelamento e, enfim, a morte, sem que nunca tivessem trocado um beijo. Foi todo o medo trazido pela ideia de um marido que finalmente fez com que ele falasse. Qualquer coisa. Desde que ela esquecesse a própria vida e se interessasse pela dele.

Os dois não combinavam, apesar de um primeiro diálogo caloroso. Ele não gostava de cachorros, ela os amava. Ela não gostava de pepino em conserva, ele cobria suas duas fatias de pão preto toda manhã com oito rodelas suculentas do legume perfumado. Ele não gostava de ler, ela ia todos os dias à biblioteca municipal, embora tivesse a própria coleção de brochuras e capas duras em casa, espalhadas em estantes de carvalho por 36 metros quadrados. Foi dela a ideia do encontro na biblioteca. Outro fato que deve ser considerado: ele detestava cemitérios e árvores desfolhadas, ela tinha um fascínio ancestral por eles e nunca vira problema em atravessar nenhum com seus cachorros por simples prazer.

Por isso os pratos tinham caído. O encontro marcado na biblioteca o empurrava insistentemente para a aterradora ideia de atravessar o cemitério quando o céu já se mancharia de roxo por volta das três da tarde. O restaurante fechava às duas, portanto ele ainda teria uma hora para se preparar, vestir sua melhor camisa, pentear as grossas sobrancelhas, arrumar o sorriso que andava meio nicado por uma ou outra lembrança pontiaguda, o tempo para pensar também em desistir de tudo, permanecer no escuro do Ming, abraçado ao próprio medo. É claro que havia dois caminhos alternativos para chegar à biblioteca, mas ambos estavam fechados para uma restauração no encanamento subterrâneo, o que havia causado uma trombose no trânsito da cidade. Mais um motivo para temer aquele passeio: ao redor do cemitério o silêncio teria o peso de todas aquelas lápides empilhadas — sobre seu peito.

Quando os pratos caíram naquela manhã, chamando a atenção de todos os casais enfiados em seus jornais, xícaras de café e fatias de melão, o chinês não se atreveu a agachar-se entre as mesas para recolher os cacos. Suas três filhas vieram correndo da cozinha, brutalmente chocadas. O restaurante estava amaldiçoado. Suas vidas e quase quarenta anos de dedicação do pai tinham sido maculadas pelo som da explosão da porcelana que ainda reverberava no ambiente, fazendo com que uns infelizes clientes deixassem seus lugares para nunca mais voltar, porque, aquilo era inaceitável diante de tantos anos de ensaiada perfeição.

Diligentemente, as filhas guardaram os cacos numa caixa que seria lacrada e arquivada para a história da próxima geração, enquanto ele voltava cabisbaixo para a cozinha. De lá, através da pequena janela branca que emoldurava um quadrado de mar riscado de luz, ele viu a sueca de óculos escuros sorrindo no píer. Tinha as mãos enfiadas nos bolsos do casaco, a postura infantil de uma espera ansiosa, e observava deslumbrada algo que talvez ele nunca viesse a enxergar: a perfeição das pequenas coisas que o amor era capaz de acender.

 

 

 

 

Pitangas

 

 

Um delicado minueto das cortinas. Um movimento seguro, plumoso, como se o segredo do tecido fosse o voo de um pássaro, ou de mil pássaros, ou de suas asas, de anjos costurados entre argolas de madeira, velando o sono desbotado do quarto. Um perfume de cedro, macadâmia e qualquer coisa oriental que espirala contra a luz enquanto a manhã se acende e o travesseiro gira para refrescar a face como a superfície de um lago branco. Outro movimento qualquer, mais tímido, entre pernas delgadas e os pelos eriçados, atiçados como que por segredos de gelo, quando tocados pela memória. Eu ainda não sei que as nuvens exumaram o sol de seu limbo. O leite vazado coalha dessas nuvens, cai no calor da terra e se espalha com alguma alegria, um pouco de esperança. Eu não sei de nada disso, continuo no breu macio dos lençóis, tentando esconder em suas dobras o que lateja de ontem. Ontem. O gramado. O gramado verde e brilhante como o eco de um sino ou o tilintar de duas esmeraldas lambidas de frio e névoa. O gramado de ontem que já não é mais o mesmo, mas que repica no cérebro e quebra ovos entre os dedos e goteja deles a gosma de que é feita a memória. Uma gosma que eu quero deixar escorrer. O gramado assusta. Quero dormir. O minueto das cortinas não deixa.

Quero esquecer o que vi, nem que para isso eu incinere os olhos com um estalo de fogo. Há fósforos ao lado da cama, uma caixa de fósforos sob um abajur de cúpula encardida — como um sonho feito de juta esticada. E há uma garrafa de água suando por dentro. Há uma vela nova, branca, lisa como a morte. A vela é um embrião de luz. Minha intenção de queimar sua espinha, o feto. Desses devaneios que tenho enquanto observo o silêncio exangue da vela, minha memória repica, quebra outros tantos ovos como conchas esmagadas por dentes. A boca da vida sangra e assim o sol nasce num tom de vermelho que aperta o peito de tão lindo, de tão inteiro. É emocionante ver o dia sangrar. Mas ainda não estou vendo. Depois de tanto medo do gramado, das cenas que incomodam, eu ainda não sei da exumação solar. Não ouso deixar a segurança da cama. O abraço nublado que me acompanhou por tanto tempo. Por milhares de dias o planeta girou de uma forma teimosa, ou foram só as nuvens teimosas, e o sol tornou-se oculto e precioso como uma pérola de luz atrás de tantas camadas de veludo branco. Vimos sua luz, seu contorno misterioso, mas não sentimos seu calor nem enxergamos seu corpo produzindo sombras. Em seu lugar habitou uma pintura, um sonho cinzento de Turner, um pincelar desmanchado como quando a água, tocada pelo reflexo da lua, vibra, rompida, perturbada em miúdas ondas de vidro que se alinham até as profundezas da noite.

Quando flexiono as pernas e sento, puxando o travesseiro como um pedaço de resgate, a escuridão gira. A janela é uma tela comprida de cuja moldura se desprendem as tintas do dia. Um Thaulow abrindo as paredes em cores de águas, regando as suculentas que, insensivelmente, me fazem pensar — não lembrar, porque nunca esqueci — no gramado. Aperto o travesseiro contra o peito e finalmente levanto. Como se fizessem parte da orquestra da qual sou refém, as cortinas param. O quarto para. Todo branco, o dia flameja lá fora. Eu sei que posso encarar o gramado, sei que posso tocar aquela cena da tarde anterior, fria e brumosa como se não tivéssemos estado nela, como se ela não tivesse passado de um sonho, mas de um pesadelo onde perder-se é uma espécie de brincadeira infantil. Corremos entre figueiras, goiabeiras, macieiras; adejamos entre flores de laranjeira que uma vez por dia, durante os verões, escaldam com seu perfume a orientação de pequenos pássaros, escalpelam minha concentração e colocam a todos nós num transe colorido que poderia facilmente se chamar Síndrome de Primavera.

Um novo sino agudo, de contas de citrino e tubos de metal e esferas de madeira, expande o ar. Sete vezes ele toca, numa fluência que me parece um poema escrito num xilofone ou numa bacia tibetana. Nada mais será como antes, não depois do que vimos no gramado. O gramado. Se me aproximo das cortinas, se ergo o tecido e me deixo cegar pela luz do sol, tão novo, tão estranho, como um viajante cujas más intenções estão enroladas numa mala cheia de mistérios de travessias a barco, horas de chás silenciosos e conversas sobre mortes inexplicáveis, se me aproximo e me entrego ao dia, ainda com medo, ainda sonolento e difuso em mim mesmo, é porque penso por um breve momento que posso esquecer o que vi desvendo. Ver novamente o que se quer esquecer não é ver novamente, mas desver, porque já não será surpresa, será como colocar o dedo na asa de uma xícara pela segunda vez, de forma natural e beber o momento. Como ler uma carta que lacera um pedacinho do corpo para esquecer sua causa não é reler, mas desler, voltando ao estado da não-surpresa, o que, por sua vez, diferente de desver, coloca o sujeito, no caso o leitor, num eterno retorno à dor original. Cabe aqui minha dor, diante do sino, diante da janela, a lembrança do gramado. No pomar não há pitangueiras, mas corremos entre as árvores, seus perfumes e sussurros folhosos, seus carinhos de copas umbrosas, até pararmos sem fôlego diante do terror. Corações de pássaros, espalhados no gramado como pitangas reluzentes. Não eram pitangas, mas como frutos disfarçados, estavam ali, entregues ao desejo do sumo que azeda a boca. Coraçõezinhos em tons de coral, mel e âmbar sentindo toda a dor do mundo, caídos no silêncio amoroso da nossa juventude.

 

 

dezembro, 2016

 

 

Alex Sens é escritor, nascido no ano de 1988 em Florianópolis/SC, e radicado em Minas Gerais. Publicou Esdrúxulas, pequeno livro de contos de humor negro e realismo mágico, seguido pelo livro artesanal Trincada. Teve contos e poemas publicados em sete coletâneas e em revistas literárias virtuais, assim como resenhas de livros, entrevistas e críticas em sites de jornalismo cultural. É autor do romance O frágil toque dos mutilados, vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2016 e semifinalista do Prêmio Oceanos 2016.

 

Mais Alex Sens na Germina