Tempos atrás corria um debate em torno de uma nova estética na qual estava inserida a poesia contemporânea: uma intensa produção dispersa, fragmentária — mas não ingênua, sem fixar-se em linha programática facilmente apreensível que, sem tanta reserva crítica, desenvolveu a prática da autoperformance em que o autor é também ator de seus produtos poéticos. Embora, hoje, tal classificação deva ser tomada com cautela — talvez por negligenciar poetas que já demonstraram grande capacidade de afirmação e superação de vícios metalinguisticos (cito Diego Vinhas e Virna Teixeira como exemplos de poéticas descoladas de mimetismos gregários e ceticismos de elite), eu diria que essa nova produção transita entre o apuro estético refinado decorrente do invejável arsenal de informação técnica e midiática disponível e acessível a um clique, e o equívoco de não tentar mais qualquer desvio de um caminho "poeticamente correto" que se reproduz de forma quase unânime como um "hipertexto": logo, sentia-se falta de uma poética que cometesse erros, deslizes, transbordes, que fosse a fundo nos seus projetos discursivos, explorando radicalmente a imagem "como uma consciência degradada de saber" (Sartre).

Embora não haja UMA obra que represente fielmente o fenômeno contemporâneo, mas MUITOS processos estéticos implicados nessa linguagem, no centro dessa efervescência, eu destaco a escrita de Carla Diacov, poeta que há mais ou menos uma década tem vivenciado essas tensões estéticas e, por outro lado, não parece reproduzir aquele gesto fetichista que compõe os torneios narcísicos pseudoperformáticos centrados na autorreferência, como dito atrás. Como exemplo, cito a sua obra de estreia (Amanhã alguém morre no samba. Portugal:  Douda Correria, 2016) e seus recentes livros lançados no Brasil, que primam por uma desmesura não pedante, na qual a autora encara a linguagem como um campo de contra/versão, esmerilhando, com requinte, identidades e noções. 

Acerco-me por ora ao Amanhã alguém morre no samba e me chamam logo a atenção seus procedimentos de desconstrução e desacato: o livro, dividido em livros narrativas (Incumbência, Educação Artística, Enlouquecer então nascer, Ser o bicho e Voltas aos montes), parece valer-se do grotesco, tomado aqui como agenciamento de estruturas sintagmáticas e outros elementos desestruturantes, díspares, nomes e figuras compondo uma cosmogonia doméstica — "uma vaca bordada no guardanapo novo/uma mulher e um homem e uma roda de tortura/uma vaca bordada na cara da mulher" (imagens que associo de imediato a quadros de Füssli — O Pesadelo, p. ex.), menos dócil que agressiva, espelhos de uma graça não fabulatória, jocosa às vezes, que visa mais à desconfiguração de um estado de coisas, um por a nu corrosivo e desestabilizador de uma casta inteira de arremedos e satisfações postiças – enfim, uma inconformada desconstrução radical dessas obviedades abruptas tidas como milagres. No caso, parece que a autora, a cada investida nas imagens, aguça seu tino de, pela linguagem, reverter as dobras do real em proveito de um mundo estranho de tão próximo. Por consequência, é possível afirmar que o flerte surrealista de sua linguagem contabilize as cifras de um mundo em desagregação, uma vez que Carla Diacov parece estimular a gramática a atender os traços intersticiais de um irônico "mundo à parte".

Wolfgang Kayser, através de uma visão até certo ponto figurativa, classifica o grotesco como "deformação nos elementos, mistura dos domínios, a simultaneidade do belo, do bizarro, do horroroso e do nauseabundo". Na presente obra, a autora é ácida diante das práticas enfadonhas do desejo, quase como uma tática de distorção premeditada da docilidade. Uma epi/gramática levemente licenciosa, aniquiladora e diabólica à Hilda Hilst.

Edgar Allan Poe, citado por Kayser, por sua vez, destaca assim o primeiro plano do grotesco: "para designar uma situação concreta, na qual a ordem do mundo saiu fora dos eixos". Em que pese não ficar tão claro o alvo de suas projeções (e a rigor nem precisaria), algo nos permite sentir que para a poeta há sim uma ordem "fora dos eixos", a que ela autora se nega a se submeter e, via de consequência, anular-se como vivente (vide a agonística da palavra SER repetida em vários poemas).

Também à revelia de sua configuração original, vejo ali o grotesco sublinhado na e pela despersonalização zoomórfica dos agentes, personagens de uma vida que, não raro, se dá em confinamentos (sala, cozinha, ninho, mesa, cama), ou outras praças onde se dá o empilhamento do poder. Afora tal enquadramento — insuficiente — destacaria também como gesto agudo a disposição do rosto da autora em certa altura do livro: na contracapa do livro Carla nos presenteia sua figura faceta — a mirada fixa de quem presencia a toda hora a morte prematura das delicadezas — esse rosto nu, que nunca mais vai "chorar dentro das mãos". Eis aqui a face como insurgência, estase acintosa, em pelo, sem pós, às bordas de um "choro de fúria". Essa fixidez de acuada nos enquadra e como que nos convida, entre muda e loquaz, para viver sua perplexidade e para observar o mimo dos bichos ou onde houver ternura. Outra narrativa. Depois desse breve descortinamento, o fluxo dos textos vai de novo romper a imobilidade resistente do senso e da ordem, desafiando outra rijeza inercial — a dos significados. Logo à frente descobrimos uma vocação háptica do grito, ditada pelo corpo em composição ("gritar pelos dedos/vontade de rescindir em líquidos").

"Ser a galinha" (sem indicação de página), que se aproxima de uma simbologia de cunho transgressor, é um texto primoroso sob diversos aspectos, seja quando se submete à representação (e apresentação) do animal, seja quando opta pela sugestão zoomórfica e mundana da mulher ("Ela: Diante do cavalo cego, fingir ser a galinha que passa sem/ alisar acometimentos, sem disfarçar olho torto: Ela."). A propósito, é notável na escrita da Carla Diacov a reiteração enfática da expressão como reforço das tensões discursivas. Tome-se como exemplo, o verbo "bufar" e algumas conjugações (que repercutem uma insistência arfante e demolidora), nesse excerto de um inédito:

 

quem vê não olha deste lado bufa e vê

baça é a maneira de ralhar com

as fibras da porta

uma mulher uma leoa uma gestante

a gestora das sombras das piadas amanhecidas

daqui até ali parando e bufando até aqui rindo

na rua bufam passantes e o vendedor de espelhos

ela bufa

uns gestos conseguem atravessar a barreira

bufa

barreira bufando até aqui e chora

 

Algo semelhante ocorre com o verbo "morder" em um de seus poemas. Essa repetição vocabular parece indicar tanto um tateio semântico como um propósito de trituração semiótica desafiante — o falar mordendo. Também nesse horizonte de fuga e remordimento, noto que em muitos versos parece haver um sentido remoto e cópulas plásticas latentes entre a literalidade e um sentido outro velado, prurindo sob a textura sintática, espécie de visgo que o corpo produz e oculta como fluida desforra.

 

morder começa pela boca

mas a boca não é

morder é você rezando todo dia no mesmo lugar

morder é você ajoelhado junto ao feixe de sol

morder é você escutando o barulho de mundo que eu escuto: começa e

termina pela boca começa e termina pela boca e goza

mas a boca não é

eu chegaria primeiro e esperaria morder lá

pela linha do equador

 

Destaco também o trecho em que as torções do étimo (inversão como per/versão) da frase banal "ter sido/estar sendo" resulta quase em um curioso latinório promíscuo e atrevido, um "chiste de guerra" como o próprio poema revela mais adiante:

 

fora do lugar o nome fora de forma

Um tipinho de gente que relê tanto

ODIS RET. ODNES RATSE

 

Repito: os fluxos semânticos de Carla Diacov tomam a contramão das retóricas totalitárias e totalizantes não se submetendo tampouco ao delírio da abrangência que não raro atendem a um mero ímpeto de verbalização, desmesura ditada não por uma máquina do perceber, mas por uma necessidade autêntica; suas combinações sintáticas são incômodas e preciosas, uma gostosa irresponsabilidade não automática com o léxico. Palavras e frases que se combinam tanto para uma representação jocosa quanto para um pasmo difamatório e crítico. Operações parodísticas do "palavreado vicioso", vertiginosas distorções imagéticas no hábito ("meta na minha boca seus doze corações de abóbora").

Hilda Hilst, Ana Cristina, Piva, Clarice Lispector, Bandeira, etc. são insumos poéticos mais visíveis na "filiação" dessa escrita, mas não é tudo. No livro, dividido pelas citadas "suítes" mais ou menos temáticas em sua dispersão, observam-se linhas de resistência e de combate definidas e delimitadas pela desconstrução do embelezamento, do agradável, do que se tem como aprazível e cobiçável (o dócil mal disfarçado, o dócil à força). Escrita que parece nos colocar atentos à violência dos desejos, vide a recusa das palavras a comporem arremates poéticos "amenos" ("uma pétala de amor perfeito mas não tão perfeita/tinha de estar meio comida de bicho/a pétala"). Muito pelo (substantivo) contrário (se me permite essa imagem), em seus momentos mais contundentes (a primeira parte do livro, principalmente), os estilemas servem e são apresentados como em contrafação uterina, bem próximo à gagueira sem sentido (e com todos os sentidos) de uma voz após o amordaçamento: "tenho placas de placenta em tudo que digo ou faço".

Enfim, temos em Amanhã alguém morre no samba, uma escrita paradoxalmente lúcida e convulsiva, que nos coloca no meio de um estado entre risível e trágico: um violento voltar a si com todo esse medo inconsolável que a lucidez permite que se viva.

Marguerite Duras, em um de seus curtas de 1978 (Les mains négatives) também falava "amo qualquer um que ouça meu grito". À contraluz do poético e do poetizável, Carla Diacov, no fundo, pratica esse apelo através de tímidas propostas de mudez "não darei mais conversa ao mundo" e da sôfrega didática dos sentidos ("o cheiro dos teus dedos parte/ ao meio a janela"), quase uma autoexcitação retraída. É também sensível em seu texto os traços de uma política corporal, como projeto essencial de reconstrução de si: "quero nascer de novo apenas para pensar/perene é ser pocilga de pensamentos". Enfim, essas novas peripécias da poeta Carla Diacov, que parecem desbordar também do conceito de "obra", nos atraem para essa circularidade entre voluptuosa e agressiva da língua que, à custa de reiterações quase obsessivas, nos atrai para dentro de seus círculos íntimos explosivos — saborosa desmesura da incontida impertinência confirmada nos acessos dessa encantadora fúria verbal — entre animal e humana:

 

rasgo esse pedaço de pano e

Estou morta

Enlouqueço se não o rasgo

Rasgo esse pedaço de lençol

 

 

 

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O livro: Carla Diacov. Amanhã alguém morre no samba.

Portugal: Douda Correria, 2016.

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setembro, 2016

 

 

Cândido Rolim (Várzea Alegre/CE). Morou em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Atualmente, vive em Fortaleza. Publicou Rios de Mim (Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 1982); Arauto (Dubolso, 1988), Exemplos Alados (Letra e Música, 1997), Pedra Habitada (AGE, 2002) e Camisa qual (Éblis, 2010).

 

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