"Li a assertiva em que se apregoa a minimização da visão poética a respeito da crise que nos assola, como se fosse para torná-la menor do que representa ou quiçá ignorá-la. Este discurso é apregoado por quem poderá tomar decisões nos rumos deste país, mal sabendo que a abordagem poética é a via mais bem acabada e civilizada para romper barreiras, cujo objetivo é o de aproximar pessoas, tornando-as maiores do que somos. Entristeço-me, pois me esforço por acreditar que o ser humano não escreve apenas versos; implementa-os". Depois de escrevê-las, há algum tempo, mal sabia que tais linhas seriam espécie de epígrafe para esta crônica/resenha sobre a coletânea de poemas Cicatriz (Ateliê Editorial, 2016) de Eduardo Guimarães. A leitura do livro fez-me cerrar os dentes, como quem chora ou revolta-se. Dividida em três partes: "Vestígios", "Corte" e "W ou V", a obra é fruto da seleção de poemas produzidos desde 1995. Professor titular do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Unicamp, especialista em semântica da enunciação e história das ideias linguísticas, Guimarães publicou outras três coletâneas de poemas Trama no Tapete (1984), Cidade (1990), Corpo (1995) e a novela O homem que tinha dentes demais (2007). Ainda que o cinzel acadêmico o tenha talhado, este se faz presente nos versos de Cicatriz, para expor os diversos olhares sobre a nossa insignificância, que só a experiência de quem maneja a textura da palavra pode identificar, feito neste poema: "O fino/corte/na palavra/é/nas entrelinhas". Sim, um poema curto, sem título, como a grande maioria dos poemas que constituem o livro. A obra é pintada nos detalhes, como na técnica do pontilhismo de Georges-Pierre Seurat e de Paul Signac, a ser apreciada neste outro poema: "A beleza/toca/quando sangra//o enlevo/estanca//qualquer vida" e neste: "E ele se depara/com a morte com olhos claros/esquece a dor da espera/esquece o gosto acre". O corte, quase seco, que Guimarães impõe ao texto faz brotar uma fonte de versos que não intenciona ser riacho nem ribeirão, apenas o mínimo para nos estancar a sede. Este corte, quando engastado à própria pele, não objetiva a sangria excessiva, todavia o que é preciso para identificar o que pulsa em nossas veias: "O nada é/o tudo/que não falta//é corte fino/na epiderme". A estratégia adotada por Guimarães insere-se na contemporaneidade da poesia brasileira, na medida em que existe a busca incansável da síntese e do balanço minimalista entre o ritmo e a escrita propriamente dita. A leitura de Cicatriz faz-me ressoar "O pulso", de Arnaldo Antunes, "o pulso ainda pulsa/o pulso ainda pulsa//.../E o corpo ainda é pouco", pois o coração é abalado quando se lê, agora de Eduardo, este poema: "Sofrimento/é sangue/sem corte/sem distância/alguma". Os poemas são cicatrizes abertas a compor o tecido do livro, finalizado no denso "W ou V", do qual recolho: "O amor é/O ponto preciso/A que nada escapa//.../A civilização a cada ano/se esquece do que disse./E ao a vítima abraçar/lhe entrega a amizade/de que se esquecerá amanhã//O meu endereço eletrônico é:/ww.volúpia.br". Mineiro, do município de Prata, Eduardo Guimarães nos oferece poemas e cicatrizes quais jabuticabas remanescentes em um pé que insiste em nos dar flores.

 

 

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O livro: Eduardo Guimarães. Cicatriz.

Cotia/SP: AteliêEditorial, 2016, 104 págs.

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dezembro, 2016

 

 

Marco Aurélio Cremasco nasceu em Guaraci (PR) e reside em Campinas (SP). Foi um dos fundadores e coeditores da Babel, Revista de Poesia, Tradução e Crítica. É autor de três livros técnicos; do romance Santo Reis da Luz Divina (Record, 2004; finalista do Prêmio Jabuti de 2005), do livro de contos Histórias prováveis (Record, 2007), das coletâneas de poemas Vampisales (Editora da UEM, 1984), Viola caipira (Edição do autor, 1995), A criação (Cone Sul, 1997), fromIndiana (Edição do autor, 2000) e As coisas de João Flores (Patuá, 2014).

 

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