©milad safabakhsh

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

QUESTÃO CRUCIAL           

 

 

A noite fria

e a fonte está seca.

Não dá mais e preciso

retroceder ao ponto

de onde parti.

 

Mas será possível

voltar atrás após o

desmonte de pontes

e das possibilidades

de travessia?

 

Lá embaixo o rio precário

me dizia que sim e que não

e eu não sabia no que acreditar,

vendo as suas poucas águas

indiferentes e convidativas.

 

 

 

 

 

 

PEDÁGIO

 

 

sou muito desaparelhado para a vida:

nunca sei como funciona,

onde que se liga,

se as partes são desmontáveis

e nem como se faz pra ser feliz.

 

 

 

 

 

 

ISOLAMENTO

 

 

A lua na casa de saturno

saturno na casa da lua

todo mundo em casa.

A casa de todos no mundo

todo mundo na casa de

todo mundo e eu que não

encontro o meu lugar

em lugar nenhum,

no escuro.

 

 

 

 

 

 

A LUMINOSIDADE ATRAVÉS DA JANELA

 

 

Faz alguns anos

que eu estou

do lado de fora

observando o

movimento.

 

Do ponto de

onde eu estou

vejo a luminosidade

de uma janela

no 2º pavimento.

 

Todos os dias

de um ponto neutro

de observação

eu vejo o que seria

a rotina da família.

 

Percebo os vultos

que se locomovem

dentro da casa

numa harmonia

pressentida.

 

Tarde da noite

alguém chega

até a janela

e fecha as cortinas

de persianas.

 

Minutos depois

a lâmpada foi

apagada dentro

do casulo de seda

visto pelo lado de fora.

 

Faz alguns anos

que eu estou

observando

a luminosidade

do ângulo externo.

 

E quando eu subo

as escadas encontro

a porta fechada.

 

 

 

 

 

 

REIVINDICAÇÕES

 

 

Eu sei que eu mereço

(embora talvez eu não venha a

ter) o meu nome num nome de rua.

 

Eu sei que eu mereço

uma estátua de bronze

na praça de Ervália.

 

Eu sei que eu mereço

denominar a Casa da

Cultura como o poeta que sou.

 

Eu sei que eu mereço

casar com uma mulher

negra, que é o meu sonho

de consumo.

 

Eu sei que eu mereço

ter um aumento de salário

para poder sobreviver.

 

Eu sei que eu mereço

ganhar um prêmio literário

para pagar as dívidas.

 

Eu sei que eu mereço

pescar um peixe grande

nas águas do tanque.

 

Eu sei que eu mereço

nadar como quem voa

pelos céus de outro país.

 

Eu sei que eu mereço

cavalgar uma égua

enfiando o dedo no seu cu,

para ela andar depressa.

 

Eu sei que eu mereço

empinar uma pipa gigante

que nunca será alcançada.

 

Eu sei que eu mereço

formar uma banda de rock

e fazer muito sucesso.

Eu sei que eu mereço

ser aclamado e lido como

nunca antes na história

deste país.

 

Eu sei que eu mereço

receber uma homenagem

de adeus e logo ser esquecido.

 

Eu sei que eu mereço

uma catacumba digna

para descansar os meus ossos.

 

Eu sei que eu mereço

tudo isso, mas desconfio

que não terei nada.

 

 

 

 

 

 

CRAZY

 

ninguém, em sã

consciência me

considera.

 

ninguém, em sã

consciência sabe

quem eu sou.

 

eu, em insana

(in)consciência

pratico um voo

 

sem plumas,

noutra direção.

 

 

 

 

 

 

BOTÂNICA E AS VARIAÇÕES DA FLOR

 

 

botão de ouro

primavera

dente-de-leão

rosa

ervilha

cicuta-menor

campainha azul

dulcamara

orquídea

junquilho

narciso

lírio amarelo

flor-de-lis

sépalas

pétalas

androceu

gineceu

ela e eu.

 

 

 

 

 

 

A MIM ENSINOU-ME TUDO

 

 

                            "... e a monotonia da vida será para mim

                            como a recordação dos amores

                            que me não foram advindos,

                            ou dos triunfos que não haveriam

                            de ser meus". (Fernando Pessoa)

 

 

O pouco que sei,

sei de o não saber,

mas só o de sentir

e nunca poder alcançar.

 

Tudo passou por mim

como as águas de enchente,

mas vi tudo fluir e o vazio

de nada reter nas mãos.

 

Se escrevo é só uma fórmula

de sonhar possibilidades

enormes, como se fossem

passos de uma criança deitada.

 

 

 

 

 

 

O ELIXIR DA LONGA VIDA

 

 

Agora eu era o lendário

Juan Ponce de León que,

já naquela época, andava afoito

atrás da Fonte da Juventude.

 

Também como ele e todos os demais

homens, eu sentia que a minha vida tinha sido

desbaratada até então no mais puro equívoco,

e que eu precisava de uma segunda chance.

 

Consultei todos os compêndios e manuais

antigos onde eu pudesse encontrar a fórmula

do Elixir da Longa Vida, pois eu já havia

nascido doente da alma e com fome no estômago.

 

Eu precisava portanto e com a máxima urgência

de uma panaceia qualquer para me dar um

pouco de acalanto depois de tantas decepções

durante minhas expedições e jornadas perdidas.

 

Equipei um laboratório no porão desativado e

nele instalei minha alquimia de sábio ancião

a partir do cinábrio, enxofre, arsênico e mercúrio,

conforme as lendas urbanas desde os espanhóis.

 

Entretanto antes de eu alcançar qualquer

sucesso ou lograr algum avanço científico

em minhas pesquisas, fui atingido por uma

flecha envenenada disparada por uma tribo.

 

 

[Do livro O Jardim Simultâneo, 2013]

 

 

 

 

NA AUSÊNCIA DE UM LAR

 

Um corredor sombrio

que se estreita

e através do qual

venho retrocedendo.

 

Uma única lâmpada

tenta iluminar

meus passos dentro

da mais absurda solidão.

 

É carga demais

e as decepções

criando sulcos

de sangue no caminho.

 

O tempo míngua

enquanto a noite desce

e ainda faltam 9 poemas

para eu terminar meu livro.

 

 

 

 

 

 

SHOPPING DOS DEFUNTOS

 

 

Leio as notícias do dia e uma em especial me estarrece e diverte. Cemitério vertical. E enquanto leio a notícia que abaixo se transcreve, fico pensando que este é o último ingrediente que faltava para o nosso cardápio de misérias. Eis a notícia breve, tirada da internet: "A infraestrutura é de primeiro mundo. São 17 mil metros quadrados, divididos entre praça para shows de música gospel, cafeteria, loja de conveniência, capelas ecumênicas para velórios, climatizadas, elevadores modernos e garagem com capacidade para 150 veículos". As vantagens são inúmeras, afirma o artigo, "além de projetar a cidade como a primeira a ter um cemitério vertical em Minas, ele trará benefícios para o meio ambiente, porque o chorume cadavérico não estará em contato com o solo e resolverá o problema de espaço, que atualmente tem sido o maior problema enfrentado pela administração pública. Além disso, geraria mais de 150 empregos diretos e indiretos". Fecho a página e já me vejo nesse shopping entre ossadas, cervejas e praça de alimentação livre do chorume cadavérico. Como se sentir morto num lugar desses?

 

 

[Do livro A Sentinela em Fuga e Outras Ausências, 2011]

 

 

 

 

TEMPO DE MANGA

 

 

Contemplo os pomares

em fruta e flor

no tecido das folhas

e nas fibras da tua roupa.

Saudade e manga temporã.

 

Nas árvores as frutas

estão ainda verdes,

mas maduras em tua boca

escorrem o caldo espesso

de manga amor maduro.

 

Na porta de uma loja

que dá para o quintal

de minha vida, de mãos

dadas com os sonhos

antigos e sob a chuva.

 

 

 

 

 

 

CONSIDERAÇÕES À BEIRA DO SONO

 

Não pretendo o mar,

esse oceano líquido

no turbilhão das ondas,

quero antes as minhas sombras

com suas silhuetas de medo.

 

Ouvi dizer de terras,

partes distantes no mundo

com outros nomes e modos de vida.

Mas quero mesmo é saber da terra

em que (vivos) estamos a morrer.

 

Conheço relatos sombrios

de náufragos que se disseram

salvos na chama quente do amor.

Entretanto veio a chuva e eu

fiquei encarregado das cinzas.

 

Vejo as naves que cruzam céus

e sei que interceptar nuvens

é também um desejo dos homens.

Eu prefiro estar quieto e contemplar

de longe o esfacelamento das rotas.

 

Há aqueles que sonham o mundo

e eu não pretendo conquistar nada.

Eu, por mim, dou-me por satisfeito

se conseguir atravessar a vida

sem embaralhar as pernas e cair.

 

 

[Do livro Inventário de Sombras, 2012]

 

 

 

 

MARIA

 

O céu desaba sobre mim

com sua cara de fogo

e nuvens de cores,

num movimento frenético

no compasso do amor.

Quando terminarmos

e o sol e a lua e as estrelas

forem embora nas alturas,

eu voltarei a ser noite

ou terei incorporado luzes

suficientes para esperar

até a próxima vez?!

 

 

[Do livro Uma Escada que Deságua no Silêncio, 2009]

 

 

 

 

 

 

SALDO

 

 

De cotidianos resíduos

arrancados na solidão de prisioneiro

em que todo o meu ser se devora,

tento compor uma imagem humana

que me faça aceitável a mim mesmo.

 

No silêncio da morte aparente

na qual me recolho ao túmulo previsto

não sei com que ânsia mórbida de calma,

procuro juntar os cacos de culpa diária

que reunidos formam um apelo ao suicídio.

 

E não é só o remorso das manhãs doentias

pelo que na noite se desfez em delírios

de humana fraqueza cansada de si mesma,

é todo um saldo de perdas que tenho que fazer

e lançar no cômputo geral das misérias minhas.

 

De cotidianos resíduos

recolhidos no isolamento mental de indivíduo

em que todo o meu ser se liberta,

tento compor uma imagem poética

que se faça de ideias e despreze a vida.

 

 

[Do livro O Acaso das Manhãs, 1986]

 

 

 

Milton Rezende nasceu em Ervália (MG), em setembro de 1962. Viveu grande parte da vida em Juiz de Fora (MG), mas atualmente reside em Varginha (MG). Escreve em prosa e poesia e a sua obra se divide entre inéditos e publicados. Entre estas últimas encontram-se: O Acaso das Manhãs (Edicon, 1986), Areia (À Fragmentação da Pedra) (Scortecci, 1989), De São Sebastião dos Aflitos a Ervália — Uma Introdução (Templo, 2006), Uma Escada que Deságua no Silêncio (Multifoco, 2009), A Sentinela em Fuga e Outras Ausências (Multifoco, 2011), Inventário de Sombras (Multifoco, 2012), Textos e Ensaios (Multifoco, 2012), O Jardim Simultâneo (Penalux, 2013) e A Magia e a Arte dos Cemitérios (Penalux, 2014). Possui inédito o livro Mais uma Xícara de Café.

 

Mais Milton Rezende na Germina

> Poesia