QUESTÃO CRUCIAL
A noite fria
e a fonte está seca.
Não dá mais e preciso
retroceder ao ponto
de onde parti.
Mas será possível
voltar atrás após o
desmonte de pontes
e das possibilidades
de travessia?
Lá embaixo o rio precário
me dizia que sim e que não
e eu não sabia no que acreditar,
vendo as suas poucas águas
indiferentes e convidativas.
PEDÁGIO
sou muito desaparelhado para a vida:
nunca sei como funciona,
onde que se liga,
se as partes são desmontáveis
e nem como se faz pra ser feliz.
ISOLAMENTO
A lua na casa de saturno
saturno na casa da lua
todo mundo em casa.
A casa de todos no mundo
todo mundo na casa de
todo mundo e eu que não
encontro o meu lugar
em lugar nenhum,
no escuro.
A LUMINOSIDADE ATRAVÉS DA JANELA
Faz alguns anos
que eu estou
do lado de fora
observando o
movimento.
Do ponto de
onde eu estou
vejo a luminosidade
de uma janela
no 2º pavimento.
Todos os dias
de um ponto neutro
de observação
eu vejo o que seria
a rotina da família.
Percebo os vultos
que se locomovem
dentro da casa
numa harmonia
pressentida.
Tarde da noite
alguém chega
até a janela
e fecha as cortinas
de persianas.
Minutos depois
a lâmpada foi
apagada dentro
do casulo de seda
visto pelo lado de fora.
Faz alguns anos
que eu estou
observando
a luminosidade
do ângulo externo.
E quando eu subo
as escadas encontro
a porta fechada.
REIVINDICAÇÕES
Eu sei que eu mereço
(embora talvez eu não venha a
ter) o meu nome num nome de rua.
Eu sei que eu mereço
uma estátua de bronze
na praça de Ervália.
Eu sei que eu mereço
denominar a Casa da
Cultura como o poeta que sou.
Eu sei que eu mereço
casar com uma mulher
negra, que é o meu sonho
de consumo.
Eu sei que eu mereço
ter um aumento de salário
para poder sobreviver.
Eu sei que eu mereço
ganhar um prêmio literário
para pagar as dívidas.
Eu sei que eu mereço
pescar um peixe grande
nas águas do tanque.
Eu sei que eu mereço
nadar como quem voa
pelos céus de outro país.
Eu sei que eu mereço
cavalgar uma égua
enfiando o dedo no seu cu,
para ela andar depressa.
Eu sei que eu mereço
empinar uma pipa gigante
que nunca será alcançada.
Eu sei que eu mereço
formar uma banda de rock
e fazer muito sucesso.
Eu sei que eu mereço
ser aclamado e lido como
nunca antes na história
deste país.
Eu sei que eu mereço
receber uma homenagem
de adeus e logo ser esquecido.
Eu sei que eu mereço
uma catacumba digna
para descansar os meus ossos.
Eu sei que eu mereço
tudo isso, mas desconfio
que não terei nada.
CRAZY
ninguém, em sã
consciência me
considera.
ninguém, em sã
consciência sabe
quem eu sou.
eu, em insana
(in)consciência
pratico um voo
sem plumas,
noutra direção.
BOTÂNICA E AS VARIAÇÕES DA FLOR
botão de ouro
primavera
dente-de-leão
rosa
ervilha
cicuta-menor
campainha azul
dulcamara
orquídea
junquilho
narciso
lírio amarelo
flor-de-lis
sépalas
pétalas
androceu
gineceu
ela e eu.
A MIM ENSINOU-ME TUDO
"... e a monotonia da vida será para mim
como a recordação dos amores
que me não foram advindos,
ou dos triunfos que não haveriam
de ser meus". (Fernando Pessoa)
O pouco que sei,
sei de o não saber,
mas só o de sentir
e nunca poder alcançar.
Tudo passou por mim
como as águas de enchente,
mas vi tudo fluir e o vazio
de nada reter nas mãos.
Se escrevo é só uma fórmula
de sonhar possibilidades
enormes, como se fossem
passos de uma criança deitada.
O ELIXIR DA LONGA VIDA
Agora eu era o lendário
Juan Ponce de León que,
já naquela época, andava afoito
atrás da Fonte da Juventude.
Também como ele e todos os demais
homens, eu sentia que a minha vida tinha sido
desbaratada até então no mais puro equívoco,
e que eu precisava de uma segunda chance.
Consultei todos os compêndios e manuais
antigos onde eu pudesse encontrar a fórmula
do Elixir da Longa Vida, pois eu já havia
nascido doente da alma e com fome no estômago.
Eu precisava portanto e com a máxima urgência
de uma panaceia qualquer para me dar um
pouco de acalanto depois de tantas decepções
durante minhas expedições e jornadas perdidas.
Equipei um laboratório no porão desativado e
nele instalei minha alquimia de sábio ancião
a partir do cinábrio, enxofre, arsênico e mercúrio,
conforme as lendas urbanas desde os espanhóis.
Entretanto antes de eu alcançar qualquer
sucesso ou lograr algum avanço científico
em minhas pesquisas, fui atingido por uma
flecha envenenada disparada por uma tribo.
[Do livro O Jardim Simultâneo, 2013]
NA AUSÊNCIA DE UM LAR
Um corredor sombrio
que se estreita
e através do qual
venho retrocedendo.
Uma única lâmpada
tenta iluminar
meus passos dentro
da mais absurda solidão.
É carga demais
e as decepções
criando sulcos
de sangue no caminho.
O tempo míngua
enquanto a noite desce
e ainda faltam 9 poemas
para eu terminar meu livro.
SHOPPING DOS DEFUNTOS
Leio as notícias do dia e uma em especial me estarrece e diverte. Cemitério vertical. E enquanto leio a notícia que abaixo se transcreve, fico pensando que este é o último ingrediente que faltava para o nosso cardápio de misérias. Eis a notícia breve, tirada da internet: "A infraestrutura é de primeiro mundo. São 17 mil metros quadrados, divididos entre praça para shows de música gospel, cafeteria, loja de conveniência, capelas ecumênicas para velórios, climatizadas, elevadores modernos e garagem com capacidade para 150 veículos". As vantagens são inúmeras, afirma o artigo, "além de projetar a cidade como a primeira a ter um cemitério vertical em Minas, ele trará benefícios para o meio ambiente, porque o chorume cadavérico não estará em contato com o solo e resolverá o problema de espaço, que atualmente tem sido o maior problema enfrentado pela administração pública. Além disso, geraria mais de 150 empregos diretos e indiretos". Fecho a página e já me vejo nesse shopping entre ossadas, cervejas e praça de alimentação livre do chorume cadavérico. Como se sentir morto num lugar desses?
[Do livro A Sentinela em Fuga e Outras Ausências, 2011]
TEMPO DE MANGA
Contemplo os pomares
em fruta e flor
no tecido das folhas
e nas fibras da tua roupa.
Saudade e manga temporã.
Nas árvores as frutas
estão ainda verdes,
mas maduras em tua boca
escorrem o caldo espesso
de manga amor maduro.
Na porta de uma loja
que dá para o quintal
de minha vida, de mãos
dadas com os sonhos
antigos e sob a chuva.
CONSIDERAÇÕES À BEIRA DO SONO
Não pretendo o mar,
esse oceano líquido
no turbilhão das ondas,
quero antes as minhas sombras
com suas silhuetas de medo.
Ouvi dizer de terras,
partes distantes no mundo
com outros nomes e modos de vida.
Mas quero mesmo é saber da terra
em que (vivos) estamos a morrer.
Conheço relatos sombrios
de náufragos que se disseram
salvos na chama quente do amor.
Entretanto veio a chuva e eu
fiquei encarregado das cinzas.
Vejo as naves que cruzam céus
e sei que interceptar nuvens
é também um desejo dos homens.
Eu prefiro estar quieto e contemplar
de longe o esfacelamento das rotas.
Há aqueles que sonham o mundo
e eu não pretendo conquistar nada.
Eu, por mim, dou-me por satisfeito
se conseguir atravessar a vida
sem embaralhar as pernas e cair.
[Do livro Inventário de Sombras, 2012]
MARIA
O céu desaba sobre mim
com sua cara de fogo
e nuvens de cores,
num movimento frenético
no compasso do amor.
Quando terminarmos
e o sol e a lua e as estrelas
forem embora nas alturas,
eu voltarei a ser noite
ou terei incorporado luzes
suficientes para esperar
até a próxima vez?!
[Do livro Uma Escada que Deságua no Silêncio, 2009]
SALDO
De cotidianos resíduos
arrancados na solidão de prisioneiro
em que todo o meu ser se devora,
tento compor uma imagem humana
que me faça aceitável a mim mesmo.
No silêncio da morte aparente
na qual me recolho ao túmulo previsto
não sei com que ânsia mórbida de calma,
procuro juntar os cacos de culpa diária
que reunidos formam um apelo ao suicídio.
E não é só o remorso das manhãs doentias
pelo que na noite se desfez em delírios
de humana fraqueza cansada de si mesma,
é todo um saldo de perdas que tenho que fazer
e lançar no cômputo geral das misérias minhas.
De cotidianos resíduos
recolhidos no isolamento mental de indivíduo
em que todo o meu ser se liberta,
tento compor uma imagem poética
que se faça de ideias e despreze a vida.
[Do livro O Acaso das Manhãs, 1986]
Milton Rezende nasceu em Ervália (MG), em setembro de 1962. Viveu grande parte da vida em Juiz de Fora (MG), mas atualmente reside em Varginha (MG). Escreve em prosa e poesia e a sua obra se divide entre inéditos e publicados. Entre estas últimas encontram-se: O Acaso das Manhãs (Edicon, 1986), Areia (À Fragmentação da Pedra) (Scortecci, 1989), De São Sebastião dos Aflitos a Ervália — Uma Introdução (Templo, 2006), Uma Escada que Deságua no Silêncio (Multifoco, 2009), A Sentinela em Fuga e Outras Ausências (Multifoco, 2011), Inventário de Sombras (Multifoco, 2012), Textos e Ensaios (Multifoco, 2012), O Jardim Simultâneo (Penalux, 2013) e A Magia e a Arte dos Cemitérios (Penalux, 2014). Possui inédito o livro Mais uma Xícara de Café.
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