GÊNEROS

 

 

O anátema

A abusão

O apêndice

A gênese      

O telefonema

A aluvião

O decalque

A ênfase

O teorema

A análise

O eclipse

A entorse

O trema

A cataplasma

O eczema

A decalcomania

O edema

A dinamite

O gengibre

A apendicite

O dó

A alface

O eclipse

A comichão

O sósia

A matinê

O guaraná

A couve-flor

O lança perfume

A aguardente

O fibroma

A derme

O estratagema

A omoplata

O grama

A usucapião

O ágape

A bacanal

O caudal

A libido

O champanha

A sentinela

O alvará

A hélice

O formicida

A laje

O plasma

A cal

O clã.

 

 

 

 

 

 

ZERO

 

Somos todos uma

sequência de pequenas

tragédias, assimiladas

e diluídas no cotidiano.

 

Somos todos uma

síntese precária

de contradições.

 

Somos seres

dilacerados por

princípio e no cais

aguarda-nos o caos.

 

Somos o resultado

desta digestão difícil

de acontecimentos

diários, e a nossa vida

é uma enorme engenhoca

a moer nossos sonhos.

 

Sentimo-nos no final

quando nossos corpos

escaldados já não produzem

mais substância.

 

Quando somos restolhos

de nós mesmos e já não

é mais possível nenhuma

reciclagem de nossas carnes

cruas, nuas de significação.

 

 

 

 

 

 

SÉTIMO ASSALTO DE UMA LUTA IMPREVISÍVEL

 

Não tiro as luvas

porque já nasci com elas,

mas estou pensando

seriamente

em jogar a toalha.

 

 

 

 

 

 

ÓDIO

 

Ódio de tudo:

de ti, de

mim, da

sombra no

asfalto, das

conversas

dos vizinhos

comendo

churrasco e

arrotando

bobagens,

dos barulhos

no telhado,

da televisão

ligada em

programas

de auditório,

dos ruídos que

vem das ruas,

do ambiente

de trabalho, das

necessidades

fisiológicas dos

governantes, da

inteligência

pedindo

esmolas

aos agiotas,

dos restaurantes

abarrotados

(que raiva das

pessoas perfi-

ladas mastigando

qualquer carne),

ódio de tudo

e de todos,

neste momento

em que faço

uma análise

antes de deitar

o meu cansaço.

 

 

 

 

 

 

GERAÇÃO

 

Atravessa nossas

vidas a ideia

de fracasso. Como

um Rei Midas ao avesso

transformamos em merda

tudo o que tocamos.

 

Acalentamos nossos

sonhos como quem

(inocente) acalenta

um monstro, apesar

da ternura que temos

com o que não somos.

 

Já sentimos tudo

sem ter vivido nada

e percorremos o mundo

sem sair do lugar.

 

 

 

 

 

 

EXPLICAÇÃO DE UM SILÊNCIO

 

Fala em meu cérebro

o projeto de uma fala

que arquiteto em segredo

de não saber falar.

 

Levei muitos anos

para decifrar

meu código interior,

mas como não fiz anotações,

hoje não sei reproduzi-lo

em caracteres humanos.

 

Então falo comigo em silêncio

como se eu abarcasse em mim

toda uma plenária em murmúrio.

E aquilo que escrevo é o resultado

desse diálogo numa sala vazia.

 

 

 

 

 

 

DELÍRIO

 

A porta fechada

escondia a fúria

do outro que em mim

se debatia.

 

Ouço passos na escada

e me contraio todo

no silêncio nervoso,

para que não percebam

a silhueta de minha desgraça.

 

O vento nas cortinas

me transmite

(na sua dança impetuosa),

a agonia de dentes e o sangue

no grito das carnes das vítimas.

 

Os jornais já trouxeram

em suas manchetes

o rastro de minha maldição

estampada na contagem de mortos.

 

Agora os passos se detiveram

no alpendre da casa,

onde a lua e os seus fantasmas

esculpem meu sortilégio noturno.

 

Dominado pela febre compulsiva

me arrasto pelo assoalho até a sala,

onde arfante e desfigurado

aguardo o girar da chave.

 

 

 

 

 

 

A VERDADE SOBRE A MENTIRA

 

Tenho dito mentiras

sem tomar consciência

de sua contextura falsa.

 

Não tenho desmentido o que digo

pois tenho a concepção de que minto

sobretudo para mim mesmo.

 

Sendo assim as minhas mentiras

não podem acarretar

na perda de qualquer afeição.

 

E já que é precisamente sobre a falsidade

que se alicerça o convívio entre os homens,

as palavras de mentira ou verdade que eu disser

nada significam de permanente num relacionamento.

 

Mas não posso deixar de convir

que assim fazendo, a cada dia

eu amanheço mais distante de mim.

 

 

 

 

 

 

UM SORRISO

 

Um dia ainda vou sorrir

mostrar meus dentes

para aqueles que me acham sem eles.

 

Será um sorriso assim

sem sorriso

sem graça

como o próprio ato de sorrir.

 

Mas será um sorriso

ainda que

pálido-amarelado-mofado.

 

Virá do acaso

do asco

de existir.

 

Um sorriso amofinado

para ser rido talvez

no dia de finados.

 

Um sorriso sarcástico

irônico e crônico

como o tédio de sorrir.

 

Virá do inesperado

pode ser numa festa

numa mesa de bar

numa missa ou

num velório de um amigo.

 

Não haverá contração do rosto

e muito menos

sinais de rugas nos olhos.

 

Será assim

como uma contração de parto,

nascido suado.

Expressão do estômago ao vomitar.

 

 

 

 

 

 

RETA FINAL

 

Em tese

tudo é possível

mas na prática

nada acontece.

Eu sou a antítese

de todos os axiomas

benéficos.

 

 

 

 

 

 

O TRABALHO DOS DIAS

 

Não posso dizer da vida

e de sua quantia, pois

não tenho como me reportar

a uma experiência anterior.

 

A vida, em função disto,

talvez seja mais símbolo

e espaço do interdito do

que o vivido propriamente.

 

Refugia-se em mim, no escuro

do verbo existir, a ausência

de sentido num cotidiano

excessivamente meu e nulo.

 

 

 

 

 

 

L-98

 

É preciso dar crédito

às nossas sensações,

mesmo porque elas são

o único parâmetro que

temos para apreender

as coisas.

 

o que formulamos como

forma de conhecimento

das coisas é o nosso

pensamento que temos,

o nunca o conhecimento

ele mesmo.

 

Pois conhecer as coisas

é estar sempre ao redor

delas, como um agregado,

e nunca dentro de sua

essência.

 

Da mesma forma que

a lembrança do ocorrido

não acarreta nenhuma

nova ocorrência, lembrar

das coisas significa

perdê-las ainda outra vez.

 

Dito isto, só nos resta

sonhar. E o próprio sonho

nada mais é do que uma

justaposição de anseios

pintados em minúcia.

 

 

 

 

 

 

EXORCISMO

 

Não vou mais

desenhar com dedos

o teu nome

no ladrilho do banheiro.

 

Não vou mais

esculpir com fezes

o teu rosto

no rolo de papel higiênico.

 

Não vou mais

esboçar com esperma

o teu filho

no lençol de solteiro.

 

Não vou mais

gravar com sangue

os detalhes

de nosso pacto impossível.

 

Não vou mais

seguir como bêbado

o roteiro

do encontro no cemitério.

 

Não vou mais

escrever pelo correio

a trajetória

do isolamento poético.

 

Não vou mais

dissimular em versos

a tua identidade

de demoníaca beleza.

 

Não vou mais

negar que sejas mulher

vou apenas

exorcizar o amor.

 

 

 

 

 

 

AVALIAÇÃO NOTURNA

 

Este pedaço de céu

que me foi permitido entrever

entre os edifícios,

assemelha-se a uma parte de mim

que ainda se resguarda

para nada.

 

 

 

 

 

 

A COR SUJA

 

Mil noites de sono

e o abismo intacto

A beleza da árvore

e do peixe

A máscara da maldade

filtrada pelo telefone

O sorriso do triunfo provisório

A dor latente e as pancadas na parede

A pedra que dissolve o leite.

 

 

[imagens © roel wijnants]

 

 
 
 
Milton Rezende (Ervália/MG, 1962). Escreve prosa e poesia e a sua obra divide-se entre inéditos e publicados. Entre estas últimas encontram-se O Acaso das Manhãs (Edicon, 1986), Areia (À Fragmentação da Pedra) (Scortecci, 1989), De São Sebastião dos Aflitos a Ervália — Uma Introdução (Templo, 2006) e Uma Escada que Deságua no Silêncio (Multifoco, 2009). Possui inéditos os livros: Mais uma Xícara de Café, A Magia e a Arte dos Cemitérios, Inventário de Sombras e A Sentinela em Fuga e Outras Ausências, para os quais procura viabilidade editorial. Exemplares dos seus livros podem ser adquiridos diretamente com o autor pelo e-mail: milton.rezende@yahoo.com.br.