| hierarquia relativa, de marcantonio |
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Céu abaixo

 

 

A três palmos do chão

miro

manchas demoníacas no céu

em desmonte.

 

O caminhão de mudanças

levará o azul

para o outro lado da cidade.

 

Em gigantescos sacos plásticos

embalam manhã e nuvens.

 

Nenhuma informação dos indivíduos

em uniformes ocres.

 

As mesmas escadas

para marcas em outdoors

usadas

© Jacó.

Tapumes púrpuras impedem

a leitura de novo anúncio

na velha pele do planeta.

 

A três palmos do chão

piso

pedras despidas do céu

em demo/lição.

 

 

 

 

 

 

Lúmen

 

 

Um lance de laços

sem estrelas

estreita um jogo

de fartos espelhos.

 

Os dados amarrados

não saem das pontas dos dedos

viciados

em apontar falhas e fiascos

lançados ao acaso.

 

As palavras recicláveis,

reutilizáveis,

descartáveis

boiam nas vitrines do shopping

— mercado de sentidos em liquidação.

 

O jogo segue

cego e célere,

mas os jogadores sabem muito bem

que não há vocabulário

nem poetas-faxineiros

para limpar a sujeira de nossa miséria.

 

Jogam para sujar as mãos;

talvez do lodo uma estrela.

 

 

 

 

 

 

Residual

 

 

Cardume de verbos

na piscina da página

funda

manhã submersa:

o que se vê

não é o que se pesca;

o que se ouve

é o peixe que escapa

em águas indescobertas;

o que se guarda

é a acidez da memória

oxidando gestos incompletos.

 

 

 

 

 

 

Limite

 

 

A cem metros de qualquer encontro

perco a pressa

e o encanto

desfia-se ponto a ponto.

 

Não vou chegar

à parada mais próxima,

descerei na última

palavra

a cem metros de qualquer encontro.

 

 

 

 

 

 

Fuga

 

 

O hábito não faz o monge

nem sei se habito um tempo

perto de abismo

ou longe

do exorcismo de palavras

em atrito

no palco portátil do mundo.

 

A poesia,  o que nos escapa

— a rima imperfeita do infinito.

 

 

 

 

 

 

Desacontecimento

 

 

Até então

se podia

seguir

na contramão

do mesmo

ou a esmo.

 

Havia

vidas fora do

ar,

em vias de rumo

qualquer;

câncer de avidez

em vidros-galerias.

Talvez naufrágio,

talvez poesia.

 

Pouco a pouco

os gestos gotejam abstratos

como zeros gastos

ou carros abandonados

em fuga.

 

Sem caminho

na cidade,

sem espessura,

volume,

densidade,

o mundo se desloca,

o eixo da Terra muda.

 

Tudo se turva,

tudo se nubla,

tudo se apaga,

agora,

com a faca da sua ausência 

cravada na garganta.

 

 

 

 

 

 

Sétima lua

 

 

Percebida apenas pelo que afeta

outras órbitas no universo opaco,

sem brilho, pele esculpida no escuro,

astro solto, oculto demônio cósmico

semeia insensatez sobre outros rumos.

Como peso nas costas, lua inóspita

e áspera afasta afeto, afago e luz.

 

 

 

 

 

 

Separação

 

 

Vinha depois da chuva

a sombrinha lilás

dizia então "um lago

na rua"

a voz tão baixa

que lustrava os tacos

 

Depois pernas cruzadas

sentada

óculos como calças arriadas

lia revistas de decoração

"vamos reformar nosso apartamento".

 

Soube-me então

pelo tom cinabre das sílabas

peça de mobília fora de moda.

 

 

 

 

 

 

Helena Destróier

 

 

A Vênus do telemarketing

sai apressada da sala no sexto

andar

de leveza e vulgaridade

acesa.

 

Sem medo,

largo a longa fila de emprego,

perco de vista a entrevista

e me atrevo um Páris.

 

O coração sai em disparada.

A perco de vista

entre a sala 610 e a escada.

O ascensor me escapa.

(Bem que li no horóscopo

que esse dia não daria em nada).

 

Desafio os deuses e a idade,

recordista de velocidade

mas chego tarde à Ítaca.

 

Vejo a Vênus de crachá

girar a roleta do adeus.

 

A Vênus de tênis e fones

some no meio da multidão,

essa maldita invenção de Baudelaire.

 

Eu, Heitor hilário e exausto,

acabo arrastado por um carro

no centro do estacionamento

Aquiles Park.

 

Um transeunte afirmou convicto:

o morto parecia drogado.

 

 

 

 

 

 

Percurso

 

 

Do útero

ao túmulo

tudo

é tumulto.

 

 

 

 

 

 

Soneto do enforcado

 

 

(acusação)

 

Coloquemos a corda no pescoço,

quebremos logo a empáfia e os ossos

desse vil vagabundo inveterado;

num único poema mil pecados,

temas sujos, rimas desarrumadas

em decassílabos rasos, covardes,

n acordes do caos na cidade.

 

(defesa)

 

Preguem-me por tantos desregramentos

entre grafia, garrafa e gafieira,

cresci fora da área de controle,

dei rasteira em Herodes, mijei em Nero,

atirei em Hitler, bebi alambiques,

comi quem quis. Posso bater no peito

e gritar bem alto: morro feliz.

 

 

 

 

 

 

Espera em branco

 

 

acumulam-se camadas

de amor em lacunas

no tiramisù

 

vejo

lesmas no pão de ló

ácaros na colher

e olhos mais amargos

do que o chocolate

 

alarme

quase vazando

a calda

 

 

[Do livro Anarquipélago. Rio de janeiro: Ibis Libris, 2013] 

 

 
 
março, 2014
 
 

 

José Antônio Cavalcanti. Poeta, contista e ensaísta carioca. Ex-professor de Língua Portuguesa do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Publicou Anarquipélago (Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2013) e participou de Vinagre — uma antologia de poetas neobarracos (Org. Fabiano Calizto, 2013). Sua tese sobre as narrativas de Hilda Hilst será transformada no livro Palavra desmedida: a prosa ficcional de Hilda Hilst, a ser lançado pela editora Annablume. Tem publicações em Cronópios, Cult, Zunái, Mallarmargens, Eutomia, Periódico de Poesía, entre outros sites e revistas. Divulga seus textos regularmente no blogue Caosgraphia.
 
Mais José Antônio Cavalcanti na Germina
> Poemas