Quebrada 

 

Hora da alcateia na praça.
Sigo
o hálito transbordante
da desordem.

Uma lua de cobre
em sua órbita pedestre
poderia.

Inscrito na linhagem
do círculo,
salto possibilidades e geometria.

Invado a zona secreta
da casa de intolerância,
turva escrita de decretos
para burla e tédio.

Encurralado no escuro,
derrubo o rumor de qualquer traçado.

Órbita pessoal possível:
à deriva, ao léu, ilegível,
apenas o imprevisto por caminho.

 

 


 

 

 

Nau urbana

 

Sombras sonoras piscam
na cidade,
esse charco aceso de segredos
onde anjos boêmios dissolvem
— com palavras e copos plásticos —
os muros do paraíso.

Noturnas,
as vias respiratórias da urbe
— dutos de perversões e desvios —,
em sístole e diástole,
marcam o ritmo veloz
das aves que migram do inferno.

Bairros,
manchas de lixo e entulho
impermeáveis à luz
exibem lúgubres
a miséria de domicílios inviáveis.

Arquitetura e tautologia,
as fibras dessas construções
recusam passagem ao júbilo.

Ausência de música e catedrais;
apenas a pauta das máquinas
na mímica das mercadorias.
encena insana dramaturgia.

O Armagedon não armou a paisagem.
A cidade é mesmo jogo sem regras,
sem sentido, sem finalidade.

 

 


 

 

 

Residual 

 

Cardume de verbos
na piscina da página
funda
manhã submersa:
o que se vê
não é o que se pesca;
o que se ouve
é o peixe que escapa
em águas indescobertas;
o que se guarda
é a acidez da memória
oxidando gestos incompletos.

 

 


 

 

 

Poeta


Amanhã da linguagem,
guarda em sua bagagem
gás e miragem.

 

 

 
 
 
 
 

Ar, margens, dons    tríptico pós-apocalíptico

 

 

α

 

Mãos desirmanadas entre infelizes

olhares, entre substâncias e acidentes

aristotélicos, bebuns em bandos;

dizer de vozes a se cortar com navalhas e sílabas,

dizer de pedintes penitentes,

dizer de olhos injetados de paraísos.

 

Poetas e párias desrimam escrita e assepsia

voam contra vanguardas e ventos

nos sambas suntuosos de velhos malandros,

agora fantasmas varrendo silêncio.

 

Nem de Antíloco nem de Madame Satã

nem de heraclitiano ou homérico dizer

o devir entre mesas e cadeiras,

no chão, a caminho do ralo.

 

Sombras assentadas em infames

panos poentos

(por baixo dos quais

insones defuntos anacreônticos

libam nostálgico sabor de boêmia)

desfilam indiferença olímpica;

hedonismo e catatonia,

o código de barras da classe média

em sua forma líquida.

 

 

 

β

 

Surgem os seres-do-fim-dos-tempos;

saem de tocas, antros, esconderijos,

de covas, talvez, ou de cisternas

clandestinas, jardins demoníacos,

fáb

     ricas de misérias.

 

A noite é víscera exposta,

intestinos nas calçadas,

insólito animal sangrento

a exibir, alucinado e repetitivo,

seus mais sujos dentros,

a mecânica macabra da vida

— gangrena guardada em rugas.

 

 

 

Ω

   

As ruas então em festa:

códigos, circuitos, câmaras de vigilância,

verbiequívocovisuais controles anêmicos

acadêmicos  políticos  policiais

— um mundo de múmias —

alimentam  as hienas noturnas;

o capital contabiliza todos os excessos,

a mais-valia compra corpos e felicidade

plastificada, no cartão ou no paraíso.

 

A escória

— resíduo do humano liquefeito —

escorre de guetos, górgonas e esgotos,

invisível licor a invadir becos e portas secretas

contido apenas por gps e algemas.

 

Negra beleza bailarina nas calçadas,

grafita de vermelho muros e asfalto

antes da travessia irrevogável.

 

Invisíveis da mais espessa invisibilidade,

figuras goyescas lançam rajadas e granadas

contra as estrelas.

 

 

 

 

 

 

Habitar

   

Onde o sol guarda o fogo

e gargalha, amarelo-amargo.

 

Onde o mundo rumina ameaças

e ruínas; funda mina de vilanias

finas; dissemina insânias.

 

Onde a casa indizível

(agora cofre e casamata)

desaba, cínica e porosa,

percurso, discurso e demência.

 

Onde a nudez da escrita

gesta aguda e grave escuta;

música urbana confusa,

ópera de acordes absurdos

 

Onde a palavra é muralha,

cartucho, faca ou navalha;

o ponto em que se encerra

conversa, festa, encontro.

 

Onde te vejo colada à parede

do outro lado da calçada,

pálida, a cabeça inclinada

como uma lua devastada.

 

 

 

 

 

 

INELUTÁVEL  

 

Vou atravessar,

mas não agora.

 

Vou esperar

Hermes passar

com o caduceu,

o chapéu de Aidoneus,

sandálias de mirtilo

e uma sacola de ossos

com a inscrição made in USA.

 

Vim ver o Hades,

volto mais tarde.

 

Preciso apenas de um pé-sujo,

mesinhas de mármore,

meia dúzia de cervejas,

copo lavado em mágoas

e um samba atravessado

pelos anéis dos meus anos de ouro;

não preciso de nenhuma verdade.

 

Vou atravessar,

mas não agora.

 

 
 
 

Faunosfera  

             

1.   Fauno em várzea noturna

      fortuna infausta

      o amor: funda afasia

                       corpos em urnas

      carnes, licores, bruma.

 

 

2.   Faunos e ninfetas,

      galeria de infâmias

      nos lupercais lupanares da Lapa.

 

 

3.   Sombras demoníacas nos muros,

      vítimas nas esquinas,

      tapetes afegãos na varanda.

 

 

4.   Dinofaunos furtam a ninfetas

      fragrâncias clandestinas

      sob a lua míope e devassa.

 

 

5.   Um fauno verte absinto pelos cornos

      como a lua absorve em secreta órbita,

      no cobre de crateras macedônias,

      o rubro licor de virgens tessálicas.

 

 

6.   Noturna sereia,

      no cabaré da Lapa,

      não cabe

      a indecisa nudez.

 

 

7.   Peças

      saltam ao chão

      e desenham um pecado de cada vez.

 

 

8.   Neste recinto oracular

      em vermelho soalho mofado

      blusas batas burkas

                                   bêbadas

      profanadas.

 

 

9.   Manual de instalação de desatinos,

      regras de abuso, senhas de violação:

      vírus no código da carne feita maldição.

 

 

10.   Ruínas urbanas as avenidas vênus

       plenas de ícones egípcios, bíblicos, suburbandos.

       Mover-se na parte rasurada dos mapas:

       uma odisseia de perversão e sant(c)idade.

 

 

11.   Eromágicos movimentos:

       bacantes, ninfas e hetairas,

       um balé de pólen e vento.

 

 

12.   Entrar e sair de becos, bocas, grutas.

       Invadir a cena, a festa, a fescenina

       cerimônia da câmara íntima feminina.

 

 

13.   Pã aposentou navalha e avena;

       exilado dos cenários bucólicos das colinas cariocas

       (e fugitivo de penitenciária espartana)

       inferniza damas em (in)cômodos Tiradentes.

 

 

14.   Cosmonáufrago, demônio da garrafa,

       incendeia de cachaça e carícias os corpos

       caravelas de amantes anônimas e insensatas.

 

 

15.   A plenos pulmões, fauno de camisa amarela,

       no soviete dionisíarcos da Lapa, recita

       a cento e cinquenta milhões de ninfálicas

       a desgrama amorosa para o milênio do caos.

 

 

16.   Paixão de fauno é selo no ventre;

       impregna os monossílabos do gozo

       com o fogo da fúria e da intensidade

       e crava o agora no sempre.

 

 

17.   O amor, lâmina incandescente,

        rasura, risco, rabisco traiçoeiro,

        jaula e algema nas quais a alma

        do fauno jaz sob danoso domínio.

 

 

18.   Dos negros montes pubianos

       o fálico ser aceso vê

       a grande rota das caravanas.

 

 

19.   O tempo inclemente colheu o calor.

       O fauno, no meio da malandragem,

       sem flauta e sem cavaquinho, decanta

       a fraude amorosa, a erofágica libação.

 

20.   Torcer, retorcer, distorcer,

        conjugar o corpo crepuscopular

        no grau grisalho da queda.

 

 

21.   Ninfetas-manequins sem afeto

       em sépias lilases e magentas

       mãos hábeis na flor e no furto

       simulam caos, orgasmo e adeus.

 

 

 

 

 

 

Limite  

 

A cem metros de qualquer encontro

perco a pressa

e o encanto

desfia-se ponto a ponto.

 

Não vou chegar

à parada mais próxima,

descerei na última

palavra

a cem metros de qualquer encontro.

 

 

 

 

 

 

Exercício aéreo  

 

Sete

serpentes de celofane flutuam

sob a pele azul-pólvora

do céu em queda.

 

As linhas

que as sustentam

são minhas veias aéreas.

 

Até que o destino

abra o zíper de intempéries

e despeje,

sete pipas

voarão alto na tarde.

 

 

 

 

 

 

Quebrar  

       

Para Carlito Azevedo

 

As ondas quebram

a crista sempre sob

o mesmo impulso

com o qual cortam

os próprios pulsos

mil ordinárias ondinas atlânticas

tingindo de pânico e púrpura

as rendas de espuma

dos vestidos de ruínas oceânicas.

 

Quebrar

os ossos do amor naufragado,

as vértebras que sustentaram

abraços em navios invisíveis,

o perfume perdido dos bailes

que puxam passos e beijos para o fundo.

 

E quebrados permanecemos

desconjuntadas palavras,

verbos sem conjugação,

declinações impossíveis.

 

Quando os afetos são descartáveis

e o que se encaixa nas fraturas

é pura dissonância, dissipação,

quebramos como brinquedos inúteis

destruídos pelo destino

só para ver como desmontamos.

 

 

 

 

 

 

A vingança dos persas  

 

"O que esperamos na ágora reunidos?"

- Konstantinos Kaváfis

 

Vão-se os navios gregos

abarrotados de moedas cunhadas

nas saias de Medeias mortas.

 

Tebas, Atenas, Corinto,

estiradas em mesas de cassinos,

fecharam as sete portas de bronze.

Agora shoppings agonizam

Agamenons e Ariadnes.

 

Padece a paideia no labirinto

de novos persas.

 

Ifigênia e Ajax em transe,

Homero arremessa o escudo de Aquiles

contra os bancos de extermínio,

de sangue,

de crime.

 

Nem Diotima de Mantineia sonharia

revelar a Sócrates profecias de tamanha barbárie.

 

Helicópteros patrulham Micenas,

e Midas já mandou as suas milícias

de cães e répteis contra Hércules.

 

Efebos deserdam fábulas,

lanças caídas em filas de desemprego,

elmos abandonados,

cavalos cravados de facas e cifrões.

Édipo, Orestes e Jocasta

veem Jasão navegar para o abismo.

 

Já não há Atlântida

e as muralhas da honra e da ousadia

desmoronaram em dívidas.

 

Oh, Zeus, insufla a revolta nos lares,

ateia fogo aos tesouros,

destrona a cabeça dos soberanos

cínicos e carniceiros.

 

Que heróis anônimos tomem as ruas de assalto

e que das assembleias surja o sonho de cidades livres.

 

 

 

 [ imagens ©pulpolux ]

 

 

 

 

  

 

José Antônio Cavalcanti. Poeta, contista, ensaísta e professor do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Mestrado em Ciência da Literatura pela UFRJ sobre Cacaso e doutorado sobre a narrativa de Hilda Hilst. Tem dois livros inéditos: Anarquipélago (poesia) e Fora de forma e outros foras (contos). Edita os blogues Caosgraphia e Poemargens.