A leitura mais direta da poesia de Nina Rizzi (tambores pra n'zinga, Ed. Multifoco, 2012 e A Duração do Deserto, Ed. Patuá, 2014) talvez seja pelo seu lado performático constituído de um signo corporal afirmativo e transgressor: missal profano, casta de impropérios, verba impudíssima, etc. Opto por fazer uma leitura de seus recentes livros por outro viés, que acredito tanto quanto válida em face da malha semiótica que as obras oferecem, tendo a dor — ancoragem dos vivos — e a angústia como estofo: "preciso dessa dor que me atravessa os idos", diz a autora. Verdade que desde tambores esse texto-fatura anuncia o pathos de uma linguagem dada à ginga — arma voluptuosa de entidade — mas é inegável que há em suas minúsculas demarcações um pedido pulsante para que sejamos socorridos por algum afeto.

Observo também que Nina Rizzi, poeta de um profundo convívio com uma lírica diversa (Bandeira, Ungaretti, Pizarnik, Trakl, Akhmátova, Emily Dickinson) consegue safar-se dessa cilada contemporânea onde coisas, nomes e afetos gozam de uma sufocante similaridade e evidência: deserto da indistinção e indiferença promovida pela luz cegante da informação e da comunicação, tão vastas quanto mudas; no campo literário, um sistema cooperativo em que os autores, às vezes sem se darem conta, se revezam na feitura de um só e rarefeito texto confessional. De fato, uma visão aproximada em seu texto, vai contrariando esse viral da contemporaneidade, na medida em que se destacam peças líricas de perturbadora articulação e módulos metalinguísticos de rascante ironia. Com efeito, Nina Rizzi nega-se a usar a tradição ou a informação para comparecer a uma orgia de ventríloquos nem se propõe a uma vertiginosa repetição de sentidos "poéticos". Às vezes sua sintaxe apeia-se de um prazeroso refinamento lírico para tramar-se numa zona suja onde sua "tortographia" possui uma contundência e um timing próprio, gesto de criativa descompostura: nada de comesuras; ela sabe imprecar, sabe possuir-se e, ao mesmo tempo, apresentar-nos o tempo de uma perda. Daí, a particularidade da autora surge — sedenta, árdua, difícil, bela e o signo DESERTO — que é também verbo imbricado num lance de abandono (DESERÇÃO), apresenta-se como âmbito apropriado a esse tenso discurso insubmisso.

Vejo nessa Duração um deserto construído em partes como "espaço simbólico" (J. Baudrillard), locus convencional, ponto de início e abertura a uma saborosa errância da linguagem, seu percurso possível. Nesse livro, sob esse pré/texto solar, é possível entrever entre os traços de uma poética radical, de certa forma também performática, biografemas, vidas, rostos: despojos de uma sensível interpelação afetiva. Mas a autora não toma aquele espaço simbólico como gancho para uma atitude folclórica de "indagação esfíngica" (decifra-me ou te devoro!). Talvez em tambores pra n'zinga essa proposta sibilina seja mais notável, pelo teor afirmativo das composições. Como alguém já disse, em A Duração o deserto parece ser mais tempo que geografia, isto é, tempo que se arrasta e arrasta o leitor a um pensar sentido. Em suas faturas, a autora, em franco desnudamento lírico, logra nos lincar a fatos, nomes, leituras, paisagens, índices de uma comunhão perplexa com o mundo: às margens do potengi, todos os dias, meninos de rua me assoviam. / à zero hora, putas me tocam também ("à beira da baía", tambores, p. 106) e todos os dias tenho visto seres devorados, dilacerados // atordoada, rapinas no deserto ("polaroides urbanas", A Duração do Deserto, p. 92). É verdade que em seus livros poreja também aquele "rocio de enigmas" a que alude Lezama Lima, que a volúpia de sua linguagem constantemente nos propõe a decifrar e sentir, mas lá como aqui Nina Rizzi é mais um devorar que devoção: frutos abandonados no corpo. Cite-se o poema "tese XV" do primeiro livro (p. 105):

 

 

enfio um a um dos dedos nos dez

mil anos de história, gracejo.

 

não guardo a perícia no trato com moscas e murisókas

carapanã-pinima, sou um espanto.

 

como quem prepara o melhor vinho calabrês

pisoteio, levanto a saia, giro espelhos, vos vomito.

 

que não sou eu, mas a indiferença

o peso morto da história.

 

 

Chama a atenção na escrita de Nina esse povoamento vocálico, essa delicadeza com os nomes, como autênticas consubstanciações (nomes númens), que tomo por afáveis sínteses sonoras do outro (glória, korai, voglia, ellena, grodek, groen hondjie, aline, lilitchka, flora, suzanne...) que compõem todo um entorno tão familiar quanto estranho, dado a rapidez com que se inserem no discurso e se ausentam: ânsia de encontro, abandono, diálogo.

 

 

©Katyuscia Carvalho | Interlaken | Suíça 

 

Formalmente, está-se diante de uma poesia substantiva, vertida desde e sobre o real ou o que se diz real. No poema da página 65 de tambores ("cantiga quase, impossível") a autora reproduz o gesto tanto usado pelos curadores de encostos como de uma operação de despertar físico — assopro nos olhos, chamamento à consciência e limpeza da visão. Veja-se, também esse plástico, ágil, raro e belo atrito de significantes: abissal névoa, navalha ("auto-tempestade nº 1": pág. 97 de tambores). Ou essa peça veloz, doída, triste de tão bela, que vale reproduzir ("fuga", p. 87 do citado livro):

 

 

minha voz, quando te diz, quanto te canta:

te amo como se ama um passarinho morto

 

sabe?

 

a gente quer pegar na palma na mão, levar ao rosto

afagar e chorar

 

— voa, voa, passarinho morto.

 

 

Uma enganosa melodia

 

Não se engane o leitor. O encaminhamento melódico sugerido pelos títulos de alguns poemas (cantata, adágio, larghetto, valsa, prelúdio, barcarola, berceuse, solo...) aparecem como um falso mote, uma movediça chave de leitura. Consciente ou não, essa peripécia encaminha o leitor para um intrigante contraponto: sonatas, melodias, arranjos, oboés, flautas são de cara abafados pela repercussão de uma víscera estendida ao máximo. De cara nos deparamos com o dedilhar de amarga ternura; sintaxe e lances imagéticos que eriçam a superfície da linguagem. Veja, por exemplo, esse jogo sinestésico (e cinético) de transparências: os dois olhos de ellena / giram luas luas e sóis, / todo mundo quer cheirar. / ou chorar? ("o aroma de vodka sob a neve", tambores, p. 44). E o que dizer desse delicado sumo retórico, dessa sintaxe úmida, feminina, plural de "ensaio pra transubstanciação" (tambores, p. 47):

 

 

pra ela, à distância, digo

fecha os olhos

 

ouvimos toda a poesia universal

 

detemo-nos nos mitos

sou mandona, choro, gozo. triskle.

 

ela gosta

 

rimos. morremos.

 

e entro em águas, até senti-la quando.

 

 

Poeta crítica — é Júlia Studart que adverte não ser mais possível, nestes tempos, fazer-se uma poesia ingênua — Nina Rizzi utiliza a metalinguagem como exercício crítico ao deleite "beletriste" e à sisudez de seus "ímpares". Em todo o resto, poesia que demora nos lábios como uma palavra amorosa, uma flor sobre o corte profundo, delicadeza esférica de bilro, gritos (preciso dessa dor que me atravessa os idos), um mundo resumido em caixas de música é vasculhado por uma inquietação febril, a linguagem que parece nascer de um nada, melhor, de uma pequena precipitação do silêncio, extrato dessas pequenas nódoas, manchas cotidianas, a poeta se arremete, com medo, coragem, rumo ao outro ("esse outro que também sou eu", p. 109), o cego tateio de um espaço afetivo — o corpo e seus biografemas tatuados (pp. 59, 63, A Duração do Deserto), a memória pendente como um folhoso pingente atrás da orelha, pequenas pérolas sáficas contidas nessa outra pergunta retórica (A Duração do Deserto, p. 27):

 

 

átis,

 

lhe entregasse a língua em oferenda, vulva

calava o grito, lambda?

 

 

Além de suas articulações explícitas (um deserto-dia criteriosamente dividido em três partes) e considerado o seu criativo tráfego com a tradição, A Duração do Deserto muitas vezes faz-nos passar ao largo de um sussurro oracular que pulsa em cada ruína, tomados por esse convite a seguir a vastidão, a vertigem de tudo, a entender que a poesia, como todo gesto livre, assemelha-se a um doloroso pertencimento a tudo. 

 

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Os livros: Nina Rizzi. tambores para n'zinga. Rio de Janeiro: Multifoco, 2012. Compre aqui.

Nina Rizzi. A duração do deserto. São Paulo: Patuá, 2014. Compre aqui.

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março, 2014

 

 

 

Cândido Rolim (1965, Várzea Alegre, CE). Livros publicados: Rios de Mim (1982), Arauto (1988), Exemplos Alados (1997), Pedra Habitada (2002) e Camisa qual (Éblis, Porto Alegre, 2010). Artigos sobre a poesia do autor: "O Alvo Incerto da Pedra" (Ronald Augusto, Jornal de Poesia-web), "Mais poesia em tempo de pobreza" (Ricardo Aleixo, Suplemento Cultural Diário do Nordeste — Cultura, 28/08/1988), "Arauto: mensageiro da morte que vive" (Márcio Almeida, Estado de Minas, 09/06/88), "Os tempos de leitura da poesia" (Ademir Demarchi, Rascunho, 24/10/2003), "A Ressurreição da Pedra" (Batista de Lima, O Povo, Fortaleza/CE 12/03/2004), "Uma morada para o poema" (Carlos Gildemar Pontes, Correio das Artes, João Pessoa, 8 e 9 de maio de 2004), "A poesia da pedra transfigurada" (Batista de Lima, Diário do Nordeste, 30/07/2005). Tem artigos, resenhas e ensaios sobre poesia publicados em revistas do Brasil e sites de literatura: Babel (SC/SP), Porto& Vírgula (RS), Caos Portátil (CE), Cronópios [www.cronopios.com.br], Famigerado [www.famigerado.com], Germina [www.germinaliteratura.com.br], Clareira [www.clareira.naselva.com], Bula [www.revistabula.com.br], Sibila [www.sibila.com.br], entre outros. Edita o blogue Signagem [www.signagem.blogspot.com] com o poeta e crítico gaúcho Ronald Augusto, veículo de experiências estéticas verbo-visuais. Vive em Fortaleza/CE.
 
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