autorretrato, 2009

 

 

 

 

 

 

 

Rodrigo de Souza Leão – Neuzza, você é uma artista multimídia. Existe alguma arte pela qual tenha preferência?

 

Neuzza Pinhero - A música. A música sempre me transporta muito além da minha insignificância, é minha ascese. Penso no mito de Orfeu, o Mago, que com sua voz enfeitiçava os pássaros e as feras, era seguido pelas árvores e pelas montanhas, adormecia os dragões cantando ao som de sua cítara (da qual foi inventor...). Eu, do meu lado, comprei há pouco uma viola caipira encantada. Quando pequena me refugiava na igreja da cidade (Cambé, no Paraná, onde vivi a infância e adolescência). Havia um grande órgão de madeira escura. Uma beata estranhíssima, muito alta e corcunda, entrava em silêncio envolta em véus negros e tocava peças de música sacra. Assim como chegava, desaparecia. Eu amava toda aquela fantasmagoria. Depois, ganhei uma bolsa de estudos num colégio religioso (salesiano) e ali ouvi Haendel e Bach pela primeira vez. Aprendi a cantar em latim durante a missa, no coro de meninas. E amava. Queria ser pianista, cantora lírica. Cheguei a ter algumas aulas de piano (Tereza Knoll, era o nome da professora), que foram interrompidas por falta de dinheiro. Fui me desviando pra música popular, já que meu pai, grande violonista, me iniciou como crooner aos 14 anos. Sim, me tornei cantora de bailes pelos clubes do interior do Paraná e cantava também em festas regionais. Vieram os festivais universitários de Londrina. As mulheres reinavam absolutas, sempre levavam o prêmio máximo como compositoras ou intérpretes. Foi ali que conheci Arrigo Barnabé, Itamar e Denise Assumpção.

 

 

RSL - A sua poesia é uma poesia simples, mas muito forte. O que a simplicidade traz ao poema que a complexidade tira?

 

NP - São sons, são sons... O poema começa com a voz do vento e os tambores, com a voz humana querendo denominar as coisas, mostrar as coisas, o crepúsculo, as estrelas, o raio ("tudo claro / ainda não era o dia / era apenas o raio...", Leminski); e as diferentes línguas se espalhando  pelo mundo.  O simples não é fácil... Sinto que carrego dentro de mim — todos carregamos — esse processo de invenção, milênios e milênios. Você sabe, as palavras e depois a escrita, os pergaminhos, o registro das primeiras histórias... Talvez a poesia seja aquele ponto em que se consegue ouvir, sentir de cada palavra a sua história, que é a minha, a nossa ("minha pátria, minha língua"...). É como sentir a pulsação de quem se ama; como se eu roçasse o dorso da minha mão na pele da palavra e ela me olhasse nos olhos contando a sua intimidade, os seus segredos.  Penso que o poema deve ser claro como o raio; um modo tão único, tão inusitado de falar sobre a chuva, por exemplo, que lendo, é como se nunca tivesse chovido antes. O livro Pele & Osso apareceu quando comecei a questionar profundamente se eu era real, se tudo que via não passava de delírio. Um momento de pânico literal, de suores, taquicardias violentas, um sentimento de morte iminente, enquanto os acontecimentos se desenrolavam sem trégua, independente do ritmo convulsivo ou não do meu coração. Eu me via absolutamente só, frágil e sem sentido. Pensei em abandonar tudo, sair pelo mundo... Pele & Osso surgiu naqueles dias de pesadelo. Surgiu assim, seco, trêmulo, andrajoso. E foi se construindo tal como eu me sentia, em choque (lucidez fabrica espelhos / repletos de eletrochoque / os sinais ficam vermelhos / não há mistério / que volt...), poemas assim como esse, convulsivos e outros, quase que se desmanchando, num deboche de mim mesma (um dia ainda viro éter / esvazio tudo / só deixo o suéter...). Foi meu De Profundis, eu me explicava, e assim me sentia quase curada. É possível que a simplicidade represente o cúmulo do Mistério, essa fusão de espelhos.

 

 

RSL - Quais são as suas principais influências artísticas?

 

NP - No início foi minha avó materna, Gercina Placidina de Campos. Gercina era filha  de uma negra bonita dessas que depois da tal "alforria", permaneceu ali, sem ter pra onde ir; e sinhozinho, já de olho, se apropriou do corpo. Daí resultou minha avó; cresceu sem mãe (minha bisa "desapareceu" sem deixar rastro), foi educada por sinhozinho, um solteirão dono de muitas terras no interior mineiro. Com 14 anos, Gercina fugiu com um cigano que tinha aparecido por lá procurando trabalho: meu avô Ezequias Marques. E foi deserdada. Era uma mulher silenciosa, sarará, cabelos imensos e armados, presos num coque com presilha de osso. Convivi com ela desde muito pequena. Gercina Placidina vestia um mantô marrom (perto do outono se agasalhava), sentava-se no quintal no início da noite, quando tinha lua. E eu me sentava do lado, no chão, perto do banquinho de madeira onde ela se acomodava. Então, começava o ritual: ajeitava a palha de milho, "alisava" com o canivete (era um canivete muito antigo) cortava o fumo de corda cheiroso e apurava na palma da mão; ficava ali num meio sorriso olhando as estrelas enquanto curtia o fumo, esmerilhava entre os dedos... Preparava o cigarrinho numa calma prazerosa, e lânguida, levava até à boca, os lábios grossos... Tinha uma binga prateada, que trazia sabe-se lá desde quando. Aspirava fundo, dava aquela baforada e ia soltando as espirais de fumaça... Eu, sentada aos pés dela, via as estrelas se movendo, dançando em meio à fumaça do cigarro de palha; e aquele perfume suave achocolatado... No inverno ela esquentava no fogão à lenha um tijolo, embrulhava num saco de algodão e vinha aquecer meus pés (eu sempre fui como ela, sempre senti muito frio...). Aos domingos ia com vó Gercina na Igreja Batista, ia só pra ouvir ela cantar no coro da igreja. Tenho o timbre rouco igual. Mas a textura e o banzo, era coisa única, ancestral, de uma grandeza que nem ela percebia. Eu, sim... E teve meu pai que nasceu músico, aprendeu a ler e escrever sozinho, aprendeu a ler partitura, tocava tudo que lhe caísse nas mãos, principalmente cordas. Era barbeiro durante o dia. J. Pinheiro tinha  muito bom gosto, a gente ouvia Mário Reis, Noel Rosa, Lupicínio, ouvia Gardel, Orlando Silva... Ah, e nos fins de tarde ele pegava o violão e fazia solos absurdos como Abismo de Rosas... Som de Carrilhões... Depois a gente ficava cantando, ele, eu e minha mãe, que amava Dolores Duran e Ângela Maria. Foi uma coincidência mágica e também trágica, o encontro dos dois; mas isso é uma outra história... Enfim, eu cresci solta, no interior, subindo em árvore, roubando manga, comendo melancia quente pelos cafezais, ouvindo berrante, passarinho, vendo boiada passar toda manhã rente à cerca de casa. A Natureza era outra. Acordava com rádio ligado, Cascatinha e Inhana, Alvarenga e Ranchinho... Depois a Bossa Nova, a Tropicália, e Janis, Hendrix, Beatles... E Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção.... E Satie, Billie Holiday... Sempre achei que Satie e Billie Holiday fossem do mesmo planeta.

 

 

RSL - Como a internet ajuda a criação e a reprodução de seu trabalho?

 

NP - A internet é uma ferramenta poderosa, indispensável, em divulgação, em pesquisa de sons, imagens, sites, links, revistas virtuais em múltiplas áreas, trabalhos acadêmicos, a Wikipédia, o Google aí, o Myspace [www.myspace.com/neuzapinheiro], as comunidades orkutianas. Vivemos a era dos blogues, esse meio de interação planetária, análise, ombro, desabafo, produção, descoberta, enfim... A poesia tem se manifestado, bem ou mal, através de milhares de blogues: o blogue acaba sendo um termômetro do que se passa no mundo. Criei um há pouco tempo, o Spirituals do Orvalho, verdinho ainda, mas vai se tornando já bem frequentado e lido. Editoras maiores por aí, a gente sabe, se especializaram em livros de auto-ajuda, que vendem aos montes e nos ensinam a ser "pragmáticos": querer mais, conseguir mais, e mais rápido. Aos poetas resta a boa vontade das pequenas editoras e, sobretudo, os blogues.

 

 

RSL - O que é necessário para que exista o fenômeno poético?

 

NP - Seria necessário estar bem vivo e bem conectado consigo mesmo; nu, descalço e  apaixonado, beirando a lucidez do abismo. Seria preciso desejar o imponderável, buscar nas coisas algum compartimento intacto. Desmontar e reconstruir o mundo de uma perspectiva única, inusitada. Isso carece de poderes sobrenaturais, como diria Jairo Pereira, o Abduzido. A palavra é uma outra nave, uma outra mãe, um outro útero. A gente queria retornar quantas vezes fosse necessário. E começar sempre do início. Começar não sabendo. A magia em ser poeta é encarar uma folha em branco sem a mínima ideia do que pode acontecer. Mas sempre queima uma pergunta: o que posso dizer eu? Que poesia oferecer aos meus contemporâneos desterrados no tempo e no espaço, aos que vivem como eu os mesmos eventos desconexos, instantâneos, como se cada instante fosse o último? Poetas, já se disse, foram mensageiros entre deuses e homens. E agora?

 

 

RSL - Quem é o cantor brasileiro hoje? Como vive?

 

NP - O cantor brasileiro perdeu o glamour de ídolo, de modelo, de ponto de referência para milhões. A era das divas, dos reis da voz, se foi. A música, arte mais democrática e mais libertária criada por nós (não se segura a música, ela se espalha pelo ar...), está, enfim, mais liberta do que nunca; com a internet e o acesso a tecnologias de reprodução/apropriação (tudo pode ser "baixado"...), vem se modificando inclusive o conceito de direitos autorais. A humanidade, quer queira, quer não queira, assim caminha. Os acontecimentos se interligam, tudo está no "ar", foi-se a chamada privacidade, há uma devassa pela intimidade das pessoas, as câmeras estão por aí. Tudo virou palco. O artista brasileiro comprometido com a invenção, com a pesquisa, tornou-se um trabalhador como outro qualquer, batalhando por espaços oferecidos pelo poder público e/ou organizações empresariais que acabam por dar sustento à maioria, em todas as áreas (subvencionar artistas não seria uma forma de controle?...). Um cantor/compositor tem múltiplas funções: planeja, produz, toca, canta, chupa cana e assobia ao mesmo tempo... E na maioria das vezes exerce outra profissão. Eu, por exemplo: sou funcionária pública. Não somos divinos, nem maravilhosos... E a Arte, nunca foi tão aviltada. Somos meros passatempos. O Brasil queria estar todo em Floripa vendo o corpo sarado e as acrobacias da Beyoncé.

 

 

RSL - O que falta para você fazer na arte poética? Quer seguir alguma trilha?

 

NP - Já não se faz poesia contemplando as estrelas, delirando com as belezas da Mãe Natureza, sofrendo as penas do inferno pelo amor inacessível... O Mal do Século também deixou de ser o eixo da poesia. Não há água e vem secando rapidamente o poço. Não há carne e não há arcada dentária que roa esse osso. Estamos secos, estamos sem liquidez. Tudo se multiplica a uma velocidade nunca antes experimentada, o  aparato tecnológico, a ciência, enfim, despejam aparelhos, objetos, cacarecos que consumimos sem questionamento; não fazemos perguntas; queremos e pronto! Os meios de comunicação alimentam essa insanidade, toneladas de informações inúteis, tragédias terríveis transformadas em espetáculo... Enviamos uns trocados, alguns alimentos não perecíveis ao Haiti e vamos dormir tranquilos, sob uma ingerência absoluta. E os automóveis vão se multiplicando; vamos nos fundindo às máquinas, perdendo contato com a nossa vocação original  de criadores, investigadores das coisas, viramos meros processadores de informação, processadores enlouquecidos, entupidos de batata frita, hot dog e tecnologia. As artes  no decorrer da existência têm refletido as mudanças, as rupturas que se dão em determinados momentos da nossa história social, política, econômica... A Revolução Industrial, por exemplo, foi um marco explosivo, que mudou a direção de tudo o que havia se criado, a poesia rompeu de vez com o Romantismo; Baudelaire arrancou as estrelas do céu, e disse "não há paraíso, não há o que conquistar...". E tivemos Cruz e Sousa e Augusto dos Anjos que detonaram com a nossa pseudo-ingenuidade... Não seria assim? Acontece que ainda havia tempo, digamos, pra se arrancar as estrelas do céu, havia tempo pra questionar os paraísos artificiais... Agora não há tempo. Tempo esgotado. Os templos desabam sobre as nossas cabeças, estamos confinados nos shopping centers, sujeitos a todo tipo de violência, o lixo se acumula (para onde vai tanto lixo?), os cadáveres se decompõem pelas ruas, paira sobre nós a ameaça de extinção... De auto-extinção. Inventamos tanto, que as nossas invenções, as nossas armas, estão apontadas para as nossas cabeças. Pela primeira vez o fim de tudo não é um mito.... Num momento em que tremores de terra e massacres se transformam em espetáculo — com a nossa cumplicidade — a sopa de letrinhas muda de figura. Que ritmo, que ordem, que combinações, que cor imprimir às palavras? Talvez fosse preciso um outro ABC da poesia, talvez seja preciso digerir, transformar isso tudo em um outro material, outros símbolos, outros mitos... Uma mutação solar, por exemplo, por mais leve que fosse, não seria nem o mito nem o mal deste século: seria o fim. Procuram-se outras possibilidades pelo céu, outros mundos para depredar. Mas não há outro mundo: "não dê ouvidos aos adivinhos (...) não há um mundo a descobrir" (Pedro Maciel). Este mundo em farrapos é o nosso mundo. Que tipo de poesia sairia de um processador completamente saturado? E à beira da destruição? Que trilha seguir?

 

 

RSL - Como o canto influencia a poesia e vice-versa?

 

NP - No meu caso, tem acontecido um fato estranho: eu venho me afastando do canto, da música, das pessoas, tenho sentido uma necessidade absurda de silêncio, de solidão, uma necessidade de ler, ler sobre muitos assuntos e ver melhor, tentar compreender ao menos um pouco de mim mesma, essa vertigem. É como procurar um outro combustível, trocar os óculos, tentar gerar uma outra perspectiva... Mas fica tudo sem direção...

 

 

RSL - Tem algum mote?

 

NP - No momento, este poema é o meu mote: mantenho o sentimento ainda quente / como quem carrega um coração ainda vivo / um fígado / um filho / pássaro miúdo na concha do ouvido /vagarosa / ralentando o passo / ao menor ruído... Tenho me sentido assim,  pisando em alguma coisa pegajosa, procurando oxigênio, levando entre as mãos um pássaro agonizante... Que tento reanimar a qualquer custo. Sou eu...

 

 

RSL - Que pergunta gostaria que fosse feita a você?

 

NP - Do livro Pele & Osso: "homens não são o que pensam / quem eles pensam que são? / não sabem de onde vêm / nem sabem pra onde vão"... De Augusto de Campos: "Somos viventes e vampiros  / a sug ar / até o último suspiro / a vida / vírus a sangr ar / poetas e papiros".

 

 

RSL - A invisibilidade é uma ambição do poeta? Quem deve falar mais alto a obra ou o poeta?

 

NP - Não é preciso ambicionar,  já nos tornamos invisíveis, estamos sem luz. Itamar Assumpção tem um verso que diz: "você está sumindo!"...

 

 

RSL - O que deve ter um poema para que você o admire como obra-prima?

 

NP - Ele deve ter o poder de me causar febre, calafrios, medo e uma vontade incontrolável de desaparecer. Por exemplo: "se as coisas fossem como tu queres / seriam só como tu queres. Ai de ti e de todos que levam a vida / a querer inventar a máquina de fazer felicidade". (Fernando Pessoa)

 

 

 

[Essa foi a última entrevista realizada por Rodrigo de Souza Leão, iniciada em junho de 2009]

 

 

 

março, 2010
 
 
 
 
 
 

 

Neuzza Pinhero (Arapongas/PR). Poeta, compositora e cantora. Socióloga com especialização em saúde pública (USP). Participou da chamada Vanguarda Paulista, com Arrigo Barnabé (Banda Sabor de Veneno) e Itamar Assunção (Banda Isca de Polícia). Prêmio Nacional de Literatura Lúcio Lins (Poesia,  Paraíba, FUNJOPE, dezembro de 2007) com o livro Pele & Osso. Tem poemas publicados nas principais revistas nacionais de literatura e internet. Atuou em trabalhos líteros-musicais como Polivox (Rodrigo Garcia Lopes) e Ladrão de Fogo (Ricardo Corona). Autora do projeto litero-musical itinerante "Profissão de Febre", iniciado em 1985, musicando poemas de Paulo Lemisnki. Vive em Santo André/SP. Escreve o blogue Spirituals do Orvalho.
 
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Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista, músico, poeta. Autor do livro de poemas Há flores na pele e Todos os cachorros são azuis (Rio de Janeiro: 7Letras, 2008), entre outros. Participou da antologia Na virada do século — poesia de invenção no Brasil (Landy, 2002). Foi co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates. Editou o blogue Lowcura. Morreu no Rio de Janeiro, em 2 de julho de 2009.

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