[ todas as fotos deste trabalho são de paulo d'auria ]

 

 
 
 
 

 

 

A ideia da série Lixo/Poesia surgiu de uma pergunta simples: é possível propor algo novo para a poesia?

Mas a realização do trabalho acabou levantando muitas outras questões que não haviam sido consideradas com clareza no momento da concepção:

§         a questão ecológica, que hoje está no centro do debate, em qualquer área de produção, artística ou não;

§         a possibilidade de levar a poesia para a rua, levá-la para além do nicho. Coisa que os "Poetas do Tietê" [http://poetasdotiete.blogspot.com] já vinham experimentando desde 2008, com seus saraus de rua. Certa vez, chegamos à Rodoviária do Tietê com uma caixa de som, fomos pra área de embarque e desembarque e mandamos poesia no ouvido do povo. Quem estava ali esperava tudo, menos poesia, mas gostou da surpresa. A festa acabou com a gente fugindo dos seguranças.

Aí alguém pode dizer que sarau de rua é uma coisa, mas simplesmente escrever a palavra "poesia" em um monte de entulho não é produzir e nem levar poesia a lugar algum.

Eu acho que é.

Primeiro, porque parto do conceito de "ready-made" de Duchamp. Um "ready-made" relido. Nada é mais massificado do que o lixo da produção em massa. Ao invés de assinar o urinol novo, eu assino o urinol velho, que está sendo trocado pelo novo.

Segundo, porque quando se escreve "poesia" em um monte de lixo — e não "por quê?", "consumismo" ou qualquer outra palavra que possa agregar significado a esse lixo —, apenas "poesia", faz-se o pedestre, o motorista preso no congestionamento, o passageiro do ônibus, enfim, o transeunte, remeter-se a um outro universo que não é o seu cotidiano. Com um pouco de boa vontade esse transeunte pode até se perguntar: "O que há de poesia em uma porta, em um pneu abandonado na rua?", questão que o levará a uma série de respostas e questões ainda mais insólitas ou profundas. E, apesar da indústria livreira não concordar, o questionamento do leitor continua sendo uma das funções da literatura.

Outro aspecto interessante dessa série é a possibilidade de mobilidade da poesia. Quando escrevo "poesia" no lixo contido na carroça de um catador, essa palavra vai cruzar a cidade, e os olhos do cidadão, já tão acostumados com o absurdo que não o enxergam mais, o fazem invisível, acabam se voltando para a realidade através da poesia.

 

 

É disseminada no senso comum a ideia de que a poesia é coisa de velho, de gente morta ou ultrapassada. Nada é mais ultrapassado que o lixo, o lixo é o que já foi, o descartado. Então, pode-se levantar mais esta questão: Queremos mesmo descartar a poesia da contemporaneidade? Vamos assumir claramente esse projeto?

O grande mote da literatura hoje é o dos novos suportes: web, e-book, kindle... O livro vai morrer? Eu não acredito, essa questão parece-me colocada apenas para causar estardalhaço mercadológico. Estamos vivendo um boom tecnológico tão forte, que todas essas tecnologias vão passar com uma velocidade irracional. Ninguém tem a menor ideia de qual será o suporte tecnológico mais usado daqui a 10 ou 50 anos para a literatura. Enquanto isso, é mais lixo que se acumula.

O lixo já vem sendo usado como suporte e matéria-prima nas artes plásticas há um bom tempo. Por que não na poesia?

 

 

Por que, quase um século depois da geração de 22, é tão difícil dessacralizar a poesia? Tivemos nos anos 1970 a geração da poesia marginal, que falava a linguagem das ruas e acabou incompreendida. Hoje, ao mesmo tempo que temos o rap nos guetos, a poesia "oficial" parece voltar a se hermetizar. A poesia precisa sair das academias. Bebamos na genialidade dos concretistas, o luxo é lixo, coca-cola, cloaca. O momento é pós-pós-utópico, pós-pose, pré-tudo. Enquanto a educação brasileira vai de mal a pior, produzindo uma geração de analfabetos funcionais, a poesia contemporânea é produzida pela e para a elite intelectual. Por que o poeta não cansa de cultivar essa autoimagem de gênio na torre de marfim?

 

 

Não conheço um poeta que não conte com o julgamento da posteridade. Poeta gosta de acreditar no mito do gênio incompreendido. Certa vez, Ferreira Gullar escreveu "Quando o ônibus sacoleja, adeus Rimbaud". É isso. Pra que essa ideia fixa com a perenidade? Vamos pensar um pouco também a poesia do agora. Se José de Anchieta escrevia na areia, pichar pode ser poesia.

Estou contente com a quantidade de questões que a série Lixo/Poesia pode levantar. Acredito que é mais função da arte questionar do que responder. É como diria Mario Quintana "A resposta certa não importa nada, o essencial é que as perguntas estejam certas".

Como artista, prefiro incomodar a confortar.

 

 

 

 

 

 
 
Paulo D'Auria (São Paulo-SP, 1966). Poeta, contista, bacharel em História pela USP. Participou das antologias Crônicas, São Paulo 450 anos e Ficção científica brasileira — panorama 2006/2007. É coordenador de literatura do Projeto Macabéa/Revista Trapiches. Mantém o blogue literário http://paulodauria.zip.net. É um dos Poetas do Tietê.
 
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