O poeta Claudio Daniel foi influenciado, sobretudo no início de sua obra, pela cultura oriental, o que revela em Sutra (São Paulo: Edição do Autor, 1992) e Yumê (São Paulo: Ciência do Acidente, 1999), com poemas breves, alguns semelhantes a haicais. Ao mesmo tempo no entanto, Claudio já mostrava uma dicção simbolista e barroca, num poema como "Invenção para mandolina": " iridescendo / brilhante / olhos / e dentes / como estrelas do mar / / e / essa trêmula mão / alvíssima  / alvíssima / (musselina) / alvíssaras / / mas: jorro insólito / de pérolas / / – irrupção / do branco / / (antiga canção / de mandolina)". Essa dicção ficou mais evidente em A sombra do leopardo (São Paulo: Azougue Editorial, 2001) e em Figuras metálicas (São Paulo: Perspectiva, 2005), reunião de sua obra entre 1983 e 2003, ou seja, dos livros antes citados com Pequenas aniquilações. Também escreveu a prosa experimental Romanceiro de Dona Virgo (Rio de Janeiro: Lamparina, 2004), em que, num exercício de metalinguagem, um dos mais originais da prosa brasileira nos últimos anos, contempla diversos períodos da poesia, colocando escritores como Camões, Cruz e Sousa etc. como personagens.

Sua poesia se destaca por imagens e analogias rápidas, concentrando-as num verso ao mesmo tempo prosaico e musical, como se percebe em "Branco": "Para dizer as cores do branco. / / Mudez de mangusto / ou árvore, / / talhado silêncio / ao ignorado / / diga cetáceo cetáceo / / menos animal / que maquinário, / / esboço de desenho de lagarto". Pode-se afirmar que ela faz uma espécie de metacrítica a um cotidiano, procurando às vezes o recurso da hipérbole e revelando uma certa violência e negatividade extremas do mundo contemporâneo. Também revela uma interseção com a cultura pop, além de um viés místico, religioso, como em "Osaka" ("os sinos / acordam / os peixes. / / o incenso / engasga / o buddha. / / as flores / no altar / sonham / / o nirvana") e em "Austrália" ("Viagem ao branco / da pedra. Ver / – pelo avesso / da pupila – / uma face / no sulco / da terra, / um deus também / é o vento") — citando, aqui, em itálico, um trecho de poema de Paulo Leminski. De qualquer modo, apesar de referências distintas, Claudio é conhecido por um trabalho influenciado pelo chamado neobarroco — também pelos autores que traduz, a exemplo de Víctor Sosa, Coral Bracho e José Kozer, principalmente na antologia Jardim de camaleões: a poesia neobarroca na América Latina (São Paulo: Iluminuras, 2004), mas também em livros únicos (como Victor Sosa em Sunyata, José Kozer em Íbis amarelo sobre fundo negro e Eduardo Milán em Estação da fábula).

O barroco — ou neobarroco — é conhecido por sua pretensa ilegibilidade, e E. M. de Melo e Castro, autor do posfácio do mais recente livro de Claudio, Fera bifronte, texto publicado também na antologia do poeta em Portugal, Escrito em osso, escreve:

A poética do escritor, ou do autor, é a mais remota e obscura. A problemática que leva o autor a escrever o seu texto é fechada e só acessível ao leitor através de hipotéticas tentativas de penetração naquilo a que muitos chamaram "o mistério da criação". Essa poética é muitas vezes também pouco clara para o próprio autor, no momento mesmo da criação.

Lendo este fragmento do posfácio — que traz, por outro lado, dados muito interessantes para se entender a obra de Claudio Daniel —, há um elemento a ser debatido: o de o crítico considerar que a poética do autor, caracterizada pelo chamado barroco, é remota, obscura, fechada, pouco acessível ao leitor. A argumentação está de acordo também com aquela utilizada por Hugo Friedrich para caracterizar a lírica moderna. Mais estranho ainda seria essa poética ser pouco clara para o próprio autor. Não me parece adequada essa argumentação tanto no caso da poesia moderna quanto no caso de Claudio Daniel. Sua poesia é elaborada e baseada, por sua própria formação, como leitor da poesia concreta, de poetas simbolistas, da tradição oriental, por exemplo — que não nublam a linguagem, a não ser que se considere que a utilização de signos em uma sintaxe mais entrecortada seja inacessível ao leitor — na linguagem. Mais adequado parece ser entender que na poesia de Claudio haja uma "cadeia de significantes".

Para Severo Sarduy, o barroco "consiste em obliterar o significante de um significado dado, substituindo-o não por outro, por distante que este se encontre, mas por uma cadeia de significantes que progride metonicamente e que termina circunscrevendo o significante ausente, traçando uma órbita ao redor dele, órbita de cuja leitura — que chamaríamos leitura radial — podemos interferi-lo". O neobarroco, segundo Claudio Daniel, em sua introdução à antologia Jardim de camaleões, não é uma vanguarda stricto sensu — ou seja, não é um movimento considerado apenas possível no "primeiro mundo" ou um movimento a ser copiado por autores de uma tradição pobre —, à medida que "não se preocupa em ser novidade": "ele se apropria de fórmulas anteriores, remodelando-as, como argila, para compor o seu discurso: dá um novo sentido a estruturas consolidadas, como o soneto, a novela, o romance, perturbando-as". A restrição da obra do poeta ao neobarroco parece equivocada — isso porque essas características acima podem ser vistas em qualquer poesia construtiva, com influência ou não do barroco, o que pouco importa para seu entendimento no sentido mais amplo, e encobrem seu diálogo com autores como Herberto Helder, citado na epígrafe.

O fato é que Fera bifronte expande uma poética que vinha se delineando mais sintática desde A sombra do leopardo, ou seja, mais voltada à construção de um verso contínuo, que vai se construindo tanto por enumerações (característica de certo poema moderno) quanto por idéias que adotam vários discursos.

"Tudo é cinema mental", escreve Claudio no poema "Estúdio de anti-realidade". De certo modo, esse "cinema mental" corresponde-se com sua narrativa poética Romanceiro de Dona Virgo, que parece ser antecessora do poema "Anticabeça (II") e da série "Gabinetes de curiosidades", em que o poeta lança uma visão extremamente crítica sobre o universo contemporâneo, enfocando três ambientes: o sex shop, o pet shop e o coffe shopp, nos quais visualiza uma certa decomposição do sujeito moderno: "Aceitamos todos os cartões de crédito e os animais, como os seus donos, devem ser castrados" ou "Cabeças de executivos são caixas registradoras com um número limitado de palavras". Essa paisagem humana ligada a um universo animal está presente também no poema "Fera", que encerra a obra — a "fera" como uma metáfora que configura, sobretudo, a violência, com gestos ríspidos, desde o poema "Muro". O ser humano parece se transformar exatamente nessa "fera": "Em branco aniquilar / sua mandíbula, / aberta como fenda sexual / interrogante" ("Fera"). Esse ambiente de violência capta, ao mesmo tempo, um universo de animais: "palavras desventradas / da cadela" ("Escrito em osso"), "ambivalência do inseto / que se desenha íbis, / amêijoa, escaravelho, / folhas ou fíbulas, fúrias ou órbitas" ("Anticabeça (I)"), "Peixe branco, gris ou amarelo / desgarrado de sua gueldra, / no desvio das águas" ("Desvio") — até a figura do corvo, presente em vários poemas.

Se há, em "Partitura", referências a "raios de um sol / que redesenha seu centro; / essa matéria tão delicada, / ferozes epitélios da flor", o certo é que na poética de Claudio predomina uma paisagem desolada, em que surge um "céu abortado" ("Betty Blue"), a paisagem é feita de "dissoluções" ("A memória"), corpos passam por um contínuo sofrimento, não só no poema "Fera" final, com sua imagética violenta, mas em outras peças igualmente fortes: "mordendo os próprios pulsos / movimenta-se, / desorientado" ("Anti-cabeça (IV)"); "Até consumir todo o olhar / e desfazer a pele / obsoleta" ("Muro");  "Paraíso clorofórmio: / inscrever o exílio / dos lábios na pele, / mentalizada e muda" ("Betty Blue"); "escura caligrafia / rasurando crânios"; "órgãos retirados / de corpos sem autópsia" ("Escrito em osso"); "Desabitar os fêmures, / os tendões / do que obceca" ("A memória"); "Vozes multiplicam-se; / lanhadas peles / vociferam, guturais"; "cicatrizes alinhadas / nos pulsos, em desenhos / de fetos inanes" ("Paisagem-vértebra"). Não há nenhuma linha da tranqüilidade mais remota encontrada em Sutra ou Yumê, seus primeiros livros, mais voltados a imagens da cultura oriental, nem também uma sonoridade mais voltada a imagens que focalizam o zen, embora em "Anticabeça (I)" haja o Lao Tzu "rumando ao Sul".

No plano da interferência simbolista na escrita de Claudio, ao mesmo tempo, há referência a cores — numa espécie de referência a Georg Trakl — como em "Escrito em flor", no qual há uma paisagem musical "onde o amarelo / dá sentido ao vermelho", um "lábio (pétala) / submerge / em topázio-tigre", "violetas indagam" e "cada abelha sonha / uma rosa imantada"; em "Rapto", no qual "[...] a expansão do branco / bifurca-se, espraia-se / esqualidamente / do lábio ao umbigo"; em "Estudos de anti-realidade", há um "vago perfume de papoulas, / até dessangrar / as pétalas / do canto", "cristal negro, / praia negra, / papoula enegrecida"; em "Anticabeça (II)", há um "verde-prata, verde escuro, verde panther, na boca do dragão" e o tempo é sombrio em razão do "branco mesclado ao amarelo"; em "Fera", há "passos súbitos / num deslocamento de vermelhos", em "Paisagem-vértebra", há "unhas negras, / peitos brancos".

Não há dúvida de que uma preferência a escapar da realidade, como na série "Estúdios de anti-realidade", notável pela percussão de sons, com palavras ecoando em outras, variações com os mesmos vocábulos e as mesmas ordens sintáticas, lembrando a aleatoridade da música contemporânea — o que acontece também em "Linhas", poema dedicado a Augusto de Campos, procurando a simetria de sua obra. No entanto, nessa "anti-realidade", Claudio insere uma paisagem urbana, certamente distorcida, mas ainda assim presente, assim como em "Paisagem vértebra", com seu "andar desmembrado / de uma a outra esquina", "céu de estrelas aleijadas", "Paisagem / de linhas retorcidas / como ferro". Sim, é um "cinema insano", mas que "alguns chamam / realidade", como escreve Claudio em "Anticabeça (IV)", e certamente o papel da escrita está, como em toda obra de Claudio, presente, sintetizando a presença desse autor (presente mesmo na tentativa de desaparecimento, mesmo sem um viés biográfico ou autobiográfico): "Nenhum sol, minério ou latência do casulo: / só o silêncio duplicado em orquídea, / occipital do neblí / que desinventa a metáfora / de uma estrela" ("Enigma (I)"); "toda palavra / é um labirinto" ("Estudos de anti-realidade"); "Paisagem manuscrita, seu árido vocabulário / de fraturas" ("Depurar"); "um corvo azul / irrompe no poema"; "palavras são despojos, / o sentido fraturado de tudo: / cegueira inventando cores" ("Escrito em osso"). A poética de Claudio certamente necessita de atenção e não apresenta leveza, nem nas imagens, nem na sonoridade — muitas vezes brusca, antimusical.

As imagens, por se configurarem pesadas como chumbo, necessitam de releituras, e as inversões sintáticas, que provocam um certo estranhamento à primeira vista, acabam seguindo uma linearidade apta à leitura, sem aqui nenhuma diminuição de sua complexidade. A violência que surge de algumas imagem vêm ao mesmo tempo que sua contrapartida vocabular, numa sequência de inevitável atrativo para uma leitura moderna de poesia, como se dela pudesse se captar parte da estranheza das coisas que não podem nem necessitam ser compreendidas. Nesse espaço entre ao "realidade" e a "anti-realidade", situa-se uma dicção capaz de envolvê-las com um sentido crítico poético.

 

 

 

 

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O livro: Claudio Daniel. Fera bifronte. São Paulo: Lumme Editor, 2009.

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dezembro, 2009

 

 

 

 

 

André Dick (Porto Alegre/RS, 1976). É formado em Letras pela Unisinos e doutor em Literatura Comparada pela UFRGS. Em 2002, publicou Grafias, seu primeiro livro de poemas. Em 2004, publicou Papéis de Parede, destacado como "referência especial" no Prêmio Cidade de Juiz de Fora – 2003.
 
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