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Quando um poeta jovem surge no panorama, ele herda, inevitavelmente, discussões que não começou e que acabam por ter conseqüências sobre seu trabalho, tanto sobre a sua recepção crítica quanto sobre a sua gestação. Que poeta está imune aos parâmetros críticos de seu tempo, se esses mesmos parâmetros ditam, muitas vezes, que poetas são publicados, e que obras estão disponíveis para a aprendizagem de um poeta jovem? Quais conceitos de qualidade guiam as resenhas e ensaios críticos?  Seja para seguir tais parâmetros ou para resistir a eles, dependendo da personalidade individual de cada jovem poeta a adentrar tal cenário coletivo, o "clima crítico" de seu tempo define, muitas vezes, o contexto de inserção de um novo trabalho poético. A compreensão de um período criativo exige a observação de vários fatores concorrentes, não apenas os livros de poesia publicados no intervalo de tempo em questão. As movimentações críticas em vigor, os poetas sendo resenhados na imprensa oficial, os autores ocupando cargos de poder em instituições e editoras que definem, muitas vezes, os publicados e convidados da Empresa da Poesia Ltda., todos esses fatores contribuem para a formação da personalidade poética de uma década, período geralmente usado para delimitar um grupo de poetas contemporâneos. Torna-se difícil compreender as intervenções críticas e poéticas de autores como Ezra Pound e Oswald de Andrade, ou qualquer outro modernista, se não se conhece o contexto cultural em que tais intervenções se fizeram sentir. Quando chegar a hora de avaliar a década de 90, por exemplo, qualquer ensaísta que falhe em perceber a relação e pressão exercida pelas traduções mais influentes do período — como as antologias de Robert Creeley, Paul Celan, Herberto Helder, além do trabalho de Geraldo Holanda Cavalcanti com os herméticos italianos Eugenio Montale e Salvatore Quasimodo, ou a reedição da obra completa de Murilo Mendes e a valorização das obras de Hilda Hilst ou Roberto Piva — terá um quadro com dimensões mínimas das características da época.

 

Ao mudar-me para São Paulo em 1997, acabava-se de publicar a obra completa de João Cabral de Melo Neto, sobre quem, durante a década, discursava-se como o "maior poeta brasileiro vivo" após a morte de Carlos Drummond de Andrade em 1987, seguindo a prática secular da crítica de literatura como exercício de tomada de poder e estabelecimento de hegemonias, e elevando a obra de Cabral (um único poeta) ao posto de escala e padrão, cujos preceitos poéticos, no discurso crítico de apreciação do trabalho contemporâneo, eram praticamente incontornáveis, unidos aos que foram apregoados a partir do trabalho do grupo Noigandres. Decalcados das declarações desses poetas sobre sua poesia e, em grande parte dos casos, do trabalho crítico SOBRE os poemas, mais que das implicações estéticas destes, e engessados em um discurso vicioso, tanto acadêmico quanto jornalístico, que tende a repetir exaustivamente a mesma avaliação explicativa, foram decretados, como preceitos de qualidade, objetividade, não-transbordamento, ou secura, anti-discursividade, evitando o que fosse considerado subjetivo, que se trasforma em meio a esse discurso em mero sinônimo de sentimental, frouxo; preceitos eleitos, no entanto, que se deduzem de características do trabalho poético de Cabral, mas já podiam ser vistos em poetas do primeiro modernismo, mesmo em poetas como Manuel Bandeira, Bertolt Brecht, William Carlos Williams, Carlos Drummond de Andrade, Ezra Pound, Oliverio Girondo, Oswald de Andrade e Guillaume Apollinaire, além de outros, sem que tais conceitos se tornassem, nas leituras críticas de suas obras, os de prioridade na avaliação da qualidade e alcance de sua poesia. Para tais poetas, algumas dessas questões não passavam de requisitos óbvios de competência, sem que houvesse a necessidade de sua instituição como parâmetros hegemônicos. Sempre me pareceu pontual a intervenção com humor de Frank O'Hara em seu "Personism: A Manifesto", ao escrever que: "As for measure and other technical apparatus, that's just common sense: if you're going to buy a pair of pants you want them to be tight enough so everyone will want to go to bed with you".

 

João Cabral de Melo Neto resolvia e trabalhava tais preceitos, em parte considerável de sua obra, exilando-se no discurso metalíngüístico, que apregoava como a poesia deveria ser, num processo em que o dizer e o fazer borravam-se de forma genial, ainda que se possa por vezes criticá-lo por esconder-se nessa metadiscursividade, que o "poupava" de entregar-se à produção de poemas em que tais preceitos se fizessem estrutura implícita. Nos momentos em que se arrisca realmente à produção sob esses parâmetros, que passam a assumir o papel de estrutura implícita e forma intrínseca, sem apelos temáticos, o poeta pernambucano entregou poemas imprescindíveis como "Uma Faca Só Lâmina" e muitos outros no livro A Educação Pela Pedra. No entanto, ao longo das décadas que se seguem à instituição desses parâmetros de qualidade como primordiais, frontais e hegemônicos e, especialmente, durante a década de 90, quando ocorre sua oficialização, objetividade passa a ser tratada por muitos poetas de uma maneira simplista e ingênua, entregando-se a escrever poemas descritivos de paisagens externas, calcados muitas vezes em uma voz monolítica, a do poeta, que se torna o organizador da realidade. Tais poetas passam a defender dualismos entre subjetividade e objetividade, dignos de conversas entre adolescentes, sem quaisquer questionamentos estéticos e políticos, que levassem tal dualidade para além do uso eventual de pronomes pessoais e escolha de temas. Tal prática engendra, em verdade, um corpo de poesia extremamente subjetiva, ainda que não sentimental (devemos lembrar aqui que Ezra Pound, um dos tutores eleitos desta objetividade, escreveu sobre tratamento DIRETO da coisa, fosse objetiva ou subjetiva), muitas vezes com uma linearidade discursiva e uma voz monolítica, serva de um logocentrismo centrífugo e racionalismo estéril, que solidificam a distância entre poeta e seu público ao longo da década. Como expus em uma entrevista ao poeta Carlito Azevedo, objetividade necessitaria, em minha opinião, de um tratamento que evitasse a hipocrisia de poetas que se crêem e fingem neutros, invisíveis, como se a voz não saísse de suas gargantas, como se eles próprios pudessem ouvi-la pura, como se ela não ressoasse dentro de suas caixas cranianas e condicionasse sua audição. O problema, na maioria dos poetas obcecados com esta idéia equivocada de "objetividade", reside no fato de que tal objetivação requer, em sua base, a sobrevivência das dicotomias interno/externo, sujeito/objeto, e sua concentração no que crêem ser o "mundo externo" (daí a avalanche de poemas descritivos) depende de uma espécie de percepção unívoca, que acaba sendo centrada num sujeito monolítico, desonestamente camuflado. Infelizmente, a discussão de conceitos dualistas como esses, de objetividade ou subjetividade, assim como a pergunta das implicações de caráter político do trabalho poético, dá-se em geral no Brasil em um nível estritamente semântico, temático, como se expulsar a primeira pessoa do singular de seus verbos implicasse realmente objetividade por parte de tais poetas, ou como se a mera aplicação de técnicas narrativas e descritivas ao poema, formado por um vocabulário de base substantiva, garantisse seu sucesso em concretude. Os aspectos políticos e éticos da discussão são deixados completamente de lado, em um país onde o perigo da noção de poesia engajada deixou certos traumas. "In order to thicken the plot", como diria Cage, gostaria de citar aqui a intervenção de três poetas norte-americanos ligados à revista L=A=N=G=U=A=G=E:

 

"Regardless of 'what' is being said, use of standard patterns of syntax and exposition effectively rebroadcast, often at a subliminal level, the basic constitutive elements of the social structure — they perpetuate them so that by constant reinforcement we are no longer aware that decisions are being made, our base level is then an already preconditioned world view which this deformed language 'repeats to us inexorably' but not necessarily".  - Charles Bernstein

 

"Who polices questions of grammar, parts of speech, connection, and connotation? Whose order is shut inside the structure of a sentence?". -  Susan Howe

 

"Rewriting the social body — as a body-to-body transaction: to write into operation a 'reading body' which is more & more self-avowedly social. Lay bare the device, spurn the facts as not self-evident. A V-effect, to combat the obvious; to stand out = to rebel; counter-embodiment, with our 'paper bullets of the brain'. All this points to a look at language as medium — in two respects: first, as a sign system; second, as discourse or ideology". - Bruce Andrews

 

Assim, diria que não há motivos contra os preceitos em si, que nas mãos de bons poetas serviram a seus propósitos de competência e qualidade, mas a prática engendrada a partir deles, em nosso tempo, parece contradizê-los. Para certos poetas, objetividade limita-se ao mero uso dos assim chamados "substantivos concretos" e o cuidado em evitar a primeira pessoa do singular em seus verbos. Esta noção de objetividade poderia temperar-se, entre outras, pela leitura de Wittgenstein, que no Tractatus Logico-Philosophicus propusera a inescapabilidade do sujeito na percepção do mundo pela linguagem, e a impossibilidade de sequer traçar essa linha entre subjetivo e objetivo, referindo-se a essa inescapabilidade do sujeito pelo fato do "mundo" ser "meu mundo", assim como a expressão "linguagem objetiva" recebe novas implicações e aplicações se passar pela lente de que "O significado de uma palavra é seu uso na língua", na proposição # 43 das Investigações Filosóficas. Nas palavras de Allan Kaprow: "When words alone are no true index of thought, and when sense and nonsense rapidly become allusive and layered with implication rather than description, the use of words as tools to precisely delimit sense and nonsense may be a worthless endeavour". Encontramos aqui expressões determinantes para compreender alguns dos poetas, em minha opinião, mais inovadores nos últimos 20 anos, tanto no Brasil como fora dele: o trabalho daqueles que se ocupam do "significado como uso" em sua escrita, que se torna "allusive and layered with implication rather than description".

 

É muitas vezes problemático quando um poeta dá-se a elegantes elipses argumentativas, como Pound em seu ensaísmo combativo, em que ele próprio muitas vezes arrependeu-se por confiar na capacidade e interesse do leitor em fornecer os elos invisíveis. Em alguns casos, a confusão é inevitável. É muito instrutivo, nesse aspecto, ler a maneira como Pound relata a suposta descoberta por parte de Basil Bunting do que passaria a ser para ele uma espécie de genoma comum de toda a poesia do mundo, na equação dichten = condensare em um dicionário. O desastre é certo quando tal equação passa ao uso de poetas que ignoram o contexto em que tal conceituação e invenção de parâmetros de qualidade foi instituído e qual uso foi feito deles. Pound tinha seus momentos de condensação crítica genial, espalhadas por todo o seu ensaísmo, mas é bastante engraçado observar a atitude pueril com que ele apresenta essa equação, que não poderia ir muito além de um chiste de boteco entre poetas, e a eleva a lei geral para a produção e apreciação de poesia; lei que, segundo ele, estaria encravada nas próprias raízes da língua alemã: a mesma língua que ele decretou descartável a qualquer poeta estrangeiro, língua com a qual não se deveria perder tempo, por não possuir, em sua opinião, qualquer trabalho poético inventivo de relevância. Em suas mãos, tal equação, assim como suas incompreensões da língua chinesa (relatadas, entre outros, de forma didática e compreensiva por Hugh Kenner em seu The Pound Era, como, por exemplo, a ignorância de Pound quanto ao aspecto sonoro de muitos caracteres) levaram-no a alguns dos versos magistrais do século XX. Nas mãos de certos poetas brasileiros, que passaram a confundir o verbo condensar com o verbo diminuir, tivemos a avalanche de poesia descritiva que configurou grande parte da poesia da última década, incapazes de empreender tal condensação em formas mais longas ou assuntos que fugissem à descrição de paisagens exteriores, ou do desafio proposto pelo próprio Pound de que "only emotion endures". "Densidade" e "tamanho" passaram a ser misturados de forma confusa na poesia visível produzida no Brasil no último período de criação dessa arte multifária chamada, indiscriminadamente, à esquerda e à direita, de poesia. Condensar não implica, necessariamente, a prática do curto, do pouco, como já observaram outros autores que não subscrevem todas as minhas opiniões, como o poeta e crítico Dirceu Villa. É possível incorrer no frouxo, mesmo durante a prática do mínimo. Apresentada de forma poderosa na poesia brasileira da década de 50, pelo grupo Noigandres, em nome do "concreto", mais que do "denso", tal equação, como elemento essencial da poesia, fazia sentido por contextualizar-se em um momento que apresentava um adversário específico (como no tempo de Pound): poetas do frouxo e relapso, além do conservador, declarando (como, ironicamente, Haroldo de Campos viria a fazer décadas mais tarde) encerrado o ciclo histórico das vanguardas (ou em pause/standby, para ser justo ao ensaio de H. de C.). Diante de tal adversário, a ênfase no "concreto" mostrou-se, naquele contexto específico da década de 50, necessária, da mesma maneira que, em certos momentos, o óbvio precisa ser novamente encarado a olho nu. Quanto à densidade do concreto, sugiro como local de debate o olho de algum redemoinho e, como objeto de estudo, não qualquer pedra cabralina solitária e deslocada (descontextualizada), mas uma pedra em uma correnteza. Eu, por mim, prefiro a busca pelo teso, mais que pelo concreto ou mesmo denso na poesia.

        

Quando o concreto torna-se, porém, um valor em si, chegamos ao impasse de tantas páginas de crítica dedicadas ao labor do elogio do açúcar por ser doce. Deveria ser óbvio que um poeta se dedica, primordialmente (mas não só), à materialidade da linguagem, quando no processo de manufatura de seus poemas. Que artesão poderia distrair-se com seu material de produção às mãos, em pleno processo? Mas, insisto, quando isso é trazido ao centro e torna-se o único grau e Graal de qualidade, o que se observa são  requisitos de competência elevados a parâmetros de qualidade e provas de imaginação. A ênfase na materialidade da linguagem, ou na concretude do signo, não esgota o assunto how to write/read. Em momentos críticos delicados, quando isso torna-se secundário diante de fatores abstratos de sentimento e postura/impostura de certos poetas, que elevam a poesia mais a cargo que a trabalho, (quando certa aura vaga de poético, de uma crença na poesia como arte de dizer de maneira bonitinha o que poderia ser dito em prosa, a mascarar incompetência técnica) fica evidente que poetas jovens precisam entregar-se a trazer novamento ao foro tais leis de produção, como foi o caso de Pound, em luta contra os facilitadores herdeiros dos Yellow Nineties e outros charlatanismos do início do século XX; ou de Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos na segunda metade do mesmo século, o passado (nunca é demais lembrar que já estamos em outro século). Manter a concretude do signo como um entre vários dos parâmetros de qualidade poética é imprescindível para evitar o erro comum de certos leitores e poetastros, da busca do que já chamei de "texto-fantasma", ou seja, a noção de exegese que leva a crer que o poema seria a máscara de sua "idéia", ou discurso que se esconde atrás do poema ou paira acima dele, tornando necessária a decodificação da linguagem do poeta para chegar a esse outro texto, que seria a "informação" ou "lição" verdadeira do poema, poema que se faz, para tal mentalidade, máscara do discurso de sua exegese. Tal é a importância da insistência por parte dos poetas contemporâneos de que, há algum tempo, o poema passou a "dizer o que diz, dizendo-o", como na formulação de Jacques Roubaud, de que o poema não seria parafraseável. Isso não implica noções de mot juste, como se poderia crer, e assume matizes distintos na obra de poetas diversos, como John Ashbery, que já declarou acreditar que sempre se pode escrever o que se escreveu de outra maneira, ou Robert Duncan, que considerava versões novas do "mesmo poema", na verdade, como poemas novos. O trabalho dos poetas envolvidos em Noigandres desenvolveu-se em sua prática poética, além da mera reiteração excessiva e insistente da concretude do signo como parâmetro único de qualidade, mas seu discurso crítico permaneceu ilhado na questão do "concreto da linguagem", dentro de sua visão essencialmente contrutivista dessa realidade, com implicações epistemológicas (e ético-estéticas) inescapáveis, jamais avançando para uma visão mais ampla da prática poética. Não é à toa que a obra dos poetas de Noigandres, apesar da defesa do verbivocovisual, avançou pouco nas pesquisas deste VOCO, e dialogou menos ainda com toda uma linhagem de poetas como  Hugo Ball, Kurt Schwitters, Bernard Heidsieck e Henri Chopin, que seguiram por esse caminho de experimentação sonora. Isso explica, em parte, a forma como os poetas ligados à Noigandres privilegiaram, em seu trabalho crítico, poetas que pudessem ser lidos por lentes primodialmente verbovisuais (apesar das experimentações de Augusto de Campos no terreno sonoro), de uma mentalidade estética construtivista. Ler os ensaios de Haroldo de Campos, por exemplo, em que ele discute artistas que seguiram pelo caminho da experimentação com o acaso e aleatório, ou os textos críticos de Augusto de Campos sobre poetas como Gertrude Stein e August Stramm, é extremamente instrutivo e exemplar para essa discussão: a partir das escolhas de seu paideuma e a lente que aplicam a todo poeta que estudam. Veja bem, não se trata de diminuir o trabalho crítico destes autores-críticos, mas de demonstrar que poetas têm agendas e programas estéticos pessoais, que os levam a ler todo poeta outro sob a lente de seus interesses, algo natural, inescapável. Admiro imensamente o trabalho crítico de Haroldo de Campos, por exemplo, e não expulsaria do cânone qualquer um dos poetas de seu paideuma, mas este paideuma e seu padrão de qualidade implícito não dão conta de todos os poetas que me interessam, não poderiam jamais dar conta realmente de John Ashbery, Pierre Albert-Birot, Jack Spicer, e produzem leituras limitadas e parciais de poetas como John Cage ou os já citados Gertrude Stein e August Stramm.

 

Assim, não creio que o conceito de concretude do signo possa estabelecer este suposto genoma universal do trabalho em poesia, e acredito que, no caso de Noigandres, provenha de uma leitura bitolada na chamada função poética de Jakobson, separada e diagramada tal qual foi pelo lingüista russo por caráter científico, para facilitar o discurso crítico de Jakobson, que sabia no entanto que cada uma das funçoes ali descritas em separado manifestava-se em todo uso da língua. A ênfase na função poética (tal qual teorizada por Jakobson) como primórdio e fonte de um texto leva um autor à linguagem da publicidade e do design, mas não formula por completo o poético. A ênfase no conceito de concreto, efetuada por Noigandres, teve um efeito importantíssimo na maturidade da poesia brasileira e no estabelecimento de um certo nível de qualidade técnica, naquilo que tem sido chamado também de preocupação com a materialidade da linguagem "em seu nível atômico". A obsessão por esse termo crítico, porém, está ligada à distorção ideológica dos poetas de Noigandres e gera uma expectativa de qualidade bastante específica e pouquíssimo abrangente, de poetas ligados claramente a uma estética construtivista e que encaram o poema como produto, numa relação "escultural" com a escritura. Em um ensaio sobre George Oppen, poeta interessante para nosso contexto por ter pertencido justamente a um grupo denominado de "objetivista", e que é lido invariavelmente em termos de concretude (ainda que a crítica norte-americana raramente use tal conceito, preferindo o de materialidade), Michael Davidson escreve: "Unfortunately, much modernist criticism has defined materiality in strictly rhetorical terms — the foregrounding of poetic devices and the defamiliarizing of language — thus validating artisinal aspects of the poem to the exclusion of the world in which it is produced". Nenhum poeta escapa dessas distorções. O "mundo" é, afinal de contas, "meu mundo".  Eu me pergunto: até que ponto a obsessão pelo concreto, por parte de Noigandres e outros, denuncia uma nostalgia pelo perene em um mundo dominado pela transitoriedade?

 

Críticas foram feitas, em geral, por poetas conservadores, que não aceitavam o propósito e perspectiva experimentais da poesia dos concretos; ou havia o caso dos poetas chamados de marginais, que monopolizaram por um tempo a atenção dedicada à poesia da década de 70 e se entregaram a reciclar, em alguns aspectos, práticas dos primeiros modernistas brasileiros que já não faziam sentido pela mudança de contexto. No entanto, eu creio que o trabalho dos poetas de maior repercussão desse grupo, como Ana Cristina César e Francisco Alvim, necessitaria de uma discussão que vai além desta reciclagem de estratégias modernistas por meros quesitos de originalidade, avaliando qual o uso que fizeram de tais formas e métodos angariados pelos primeiros modernistas brasileiros e sua relevância para o momento presente. Não se trata, afinal de contas, de uma questão de justiça ou injustiça quando opositores do trabalho de um poeta como Francisco Alvim (com suas escolhas epistemo-ideológicas específicas) comparam seus poemas aos de Manuel Bandeira ou Oswald de Andrade. Esse é um exemplo claro, eu diria, dos efeitos colaterais da insistência em um discurso crítico de caráter nacionalizante e meramente formalista, sem a compreensão de qualquer tranformação do contexto em que o uso repetido dessas estratégias se insere. A crítica invetiva que se resume a gritos de "isso não é poesia" não resolve verdadeiramente a questão. Necessitamos hoje, eu creio, de uma discussão ampla de como o uso vicioso de taxinomias de gênero seguem aleijando nossa compreensão do fenônemo poético contemporâneo.

 

Foram poucos os que, em minha opinião, tentaram resolver tais questões sem negar necessariamente as obras e preceitos importantes e úteis de poetas como João Cabral de Melo Neto e Augusto de Campos. Um exemplo seria Paulo Leminski, que tem a obra empacotada tanto com concretistas como com marginais. Há ainda outros exemplos importantes de poetas que buscaram saídas, como Régis Bonvicino e Ronaldo Brito, em especial, sem serem retrógrados e reacionários; outros poetas que não poderíamos deixar de mencionar são Júlio Castañon Guimarães (que, apesar de se render a tal discurso crítico objetivizante a partir da década de 90, encontra um ponto de equilíbrio saudável no livro Inscrições, de 1992) e Duda Machado, poetas que só na última década ganharam maior visibilidade crítica, em grande parte por suas intervenções no campo tradutório e editorial, num processo similar ao da recepção da obra de Régis Bonvicino. Esses poetas, surgidos na década de 70, permaneceram praticamente invisíveis por certo tempo, devido à instituição crítica da década como posse canônica dos poetas conhecidos como marginais, ou que poderíamos chamar de Grupo do Mimeógrafo (Antônio Carlos de Brito, Ana Cristina César, Francisco Alvim, Isabel Câmara, Chacal, Ledusha, entre outros, baseados em grande parte no Rio de Janeiro). Assim, a década de 70 mostra-se mais complexa que a sua narrativa historiográfica repetitiva, feita nas décadas de 80 e 90, demonstrando um processo poético mais plural que o quadro geralmente pintado, num grupo de poetas a que precisaríamos incluir ainda Wally Salomão, que publica em 1972 um estranho-no-ninho como Me Segura Qu'Eu Vou Dar Um Troço, mesmo ano em que estréia Elisabeth Veiga. Com o início da década de 80, surgem os poemas de Horácio Costa e Paulo Henriques Britto (poetas que começam a publicar após o embate oficializado pela crítica entre marginais e concretos na década de 70, nas velhas dicotomias facilitadoras de certo resenhismo, numa espécie de versão brasileira para o embate raw X cooked norte-americano), herdando algumas soluções e caminhos abertos por poetas como Sebastião Uchoa Leite e Paulo Leminski. Além do trabalho muito importante empreendido nesse contexto por Glauco Mattoso em seu Jornal Dobrabil, muito mais interessante e demolidor que seu uso repetitivo do soneto nos últimos dez anos, apesar de desestruturá-lo de seu trono do bom gosto e sublime.

        

A década de 80 foi determinante para a poesia no Brasil. Alguns dos poetas mais interessantes entre os citados morreram muito jovens, como Paulo Leminski e Ana Cristina César. Ronaldo Brito silenciou-se e deixou de publicar, se não de escrever, levando a extremos sua poética de ascese, em que a postura do mínimo não se manifesta como nos poetas do objetivismo equivocado, entregues ao denso = curto, poetas praticando seu luxo do conciso e gabando-se de suas asfixias sem articulação; em Ronaldo Brito, essa concisão está ligada a uma necessidade intrínseca à sua própria poesia, e não como manual de instruções externo a ela, num exercício do necessário, estética, tratando-se não de luxo lacônico, mas de coragem do pouco, como, no pós-guerra, só em Orides Fontela creio podermos encontrar. Régis Bonvicino e Duda Machado, dois poetas importantes que surgiram na década de 70, com livros que apontavam caminhos, reemergem na década de 90, inseridos nesse panorama crítico engessado. Duda Machado, em minha opinião, abandonando o trabalho com que estreou na década de 70 em um livro como Zil, e publicando poemas que me parecem domesticados dentro dessa cartilha de bom gosto "seco/objetivo" discutida aqui, em um livro como Margem de uma Onda. Restaria Régis Bonvicino, que passou a operar um trabalho importante de tradução de poetas como Robert Creeley e do grupo em torno da revista L=A=N=G=U=A=G=E, que podiam ser lidos dentro dos parâmetros críticos da década de 90, mas que os perturbavam por dentro, gerando um efeito saudável de "Cavalo de Tróia", além de traduzir um poeta como Michael Palmer, contrariando abertamente os preceitos ingênuos e simplistas de objetividade, e de chamar nossa atenção para poetas franceses como Claude Royet-Journoud e Anne-Marie Albiach.

 

Tal intervenção crítico-tradutória teve efeitos diversos. Robert Creeley teve uma influência forte e marcante sobre esse cenário poético com olhos e ouvidos simpatizantes para a prática do mínimo, desempenhada por Creeley sem esterilidade, jamais obliterando o emotivo ou questões implícitas de lingüística e implicações éticas em sua poesia. Tornou-se conveniente em muitos casos, porém, apontar para uma suposta influência da chamada Language Poetry em certos poetas jovens do fim da década de 90, especialmente em São Paulo, no que se convencionou denominar de atomização do verso, da prática supostamente minimalista de poemas que, referidos na imprensa como "under the influence of Language", parecem ligar esses poetas, creio, mais ao binômio Creeley/Bonvicino e, através de sua lente, com um grau de consciência que se torna difícil de definir, a poetas da década de 30 americana, como George Oppen e Carl Rakosi, nos poetas do sexo masculino. Nos poetas do sexo feminino, isso apresentou-se, nos últimos tempos, em uma proliferação de poemas ditos fotográficos que, sob o epíteto de elípticos, efetuam a ressurreição de uma poesia levemente imagiste, 90 anos depois de Miss Amy Lowell, e atingindo mais o inarticulate que o conciso.

 

Levou algum tempo para que o trabalho de pesquisa de poetas do início do século XXI, após esta intervenção de Bonvicino, os levasse a encontrar autores como Lyn Hejinian, Rosmarie Waldrop ou Ron Silliman, estimulando a assimilação dos desafios mais instigantes da estÉtica de L=A=N=G=U=A=G=E (longe do simplismo dos diluidores cabralistas-noigandristas, incorrendo no que costumo chamar de inarticulate objective),  assim como a valorização das obras de Hilda Hilst (com sua prosa paratática e logocentrífuga em livros como Qadós e A obscena senhora D), Roberto Piva (que, apesar do tardo-surrealismo de Paranóia, publica entre as décadas de 60 e 80 livros importantes como Piazzas, Abra os olhos e diga Ah! ou 20 poemas com brócoli), ou as obras concisas como murros de Orides Fontela e Torquato Neto. É interessante perceber, também, a visibilidade que a obra de Glauco Mattoso alcança nos últimos anos, ainda que o foco não seja dirigido a seus melhores trabalhos, como o Jornal Dobrabil, e sim à sua repetição ininterrupta da fórmula da desestruturação da moralidade do soneto, em grande parte pela relação específica com as formas históricas que passam a ser praticadas novamente.

 

Porém é quebrando com uma noção de literatura nacional como sistema hermeticamente fechado em si, com regras de adesão que exigem filiação linear, e buscando em poetas como Gertrude Stein, John Cage e John Ashbery, além de franceses contemporâneos como Emmanuel Hocquard e Michel Deguy, que poetas jovens brasileiros poderão reler e reavaliar sua própria tradição, de forma parecida à dos poetas da década de 50. É tal questionamento que viríamos a perceber em uma poeta como Marília Garcia, que agarrou às unhas a crise de representação na linguagem desses tempos, e passou a empreender uma investigação que desafia noções ingênuas de objetividade, num caminho que começa a se delinear no fim do século passado e início deste, também em certos poetas mais velhos, com poemas como "Do livro de viagens" ou "Vaca negra sobre fundo rosa", de Carlito Azevedo e a lírica analítica de Marcos Siscar, além de certos poemas de Juliana Krapp e Diego Vinhas, entre os chamados de novíssimos. Se lidos com atenção, muitos desses textos trazem implicações mesmo à discussão da prosa contemporânea, com suas intervençoes a partir da exposição de uma realidade editável, em que os cortes abruptos não funcionam como mera entrega a uma poética de elipses ou para qualquer efeito de hermetismo, mas em ação de uma poesia consciente de si como construção, desnudando o risco de mera transparência da linguagem e expondo-a como veículo de representação, requerendo sua leitura como processo epistemológico para ser devidamente compreendida em suas implicações.

 

O que permite essa liberdade de laboratório por parte desses poetas, eu diria, é uma relação saudável com o que se convenciona chamar de tradição, uma relação textual com o trabalho poético ligada a outros aspectos lingüísticos, como o arcabouço oral (com suas implicaçoes corpóreas) e sonoro da linguagem, numa linha entre sentido e absurdo que abandona os projetos de representação e descrição pelos de implicação e contextualização, ligando-os a tendências iconoclastas da poesia ocidental, das anti-linhagens de Arthur Rimbaud e Edward Lear, Christian Morgenstern e dadaístas como Hans Arp, Kurt Schwitters e Pierre Albert-Birot, ou poetas da década de 50, como os que ficaram conhecidos como Grupo de Viena e Escola de Nova Iorque. Tal tendência pode ser sentida em livros como Rilke shake, de Angélica Freitas; Sangüínea, de Fabiano Calixto; e em alguns poemas esparsos de Walter Gam, Gabriel Beckmann e Marcelo Montenegro, por exemplo. Outros dois fatores extremamente saudáveis dos últimos anos são a recuperação, sem embaraços, da poesia lírica em diversas perspectivas, em autores como Manoel Ricardo de Lima, Carlos Augusto Lima ou Fabrício Corsaletti, entre outros, contrariando a espécie de interdição que se leu nas obras de João Cabral de Melo Neto e Noigandres, e a pesquisa poética em outras mídias, de poetas como Philadelpho Menezes, Ricardo Aleixo ou Henrique Dídimo, por exemplo.

 

Não se trata de proposta de lista canônica nem de tentativa de dividir o trabalho desses autores em compartimentos estanques ou redutores. Seus trabalhos são muito mais complexos que a leitura interessada que faço deles nesses dois últimos parágrafos. Além do mais, tais características podem ser sentidas com maior ou menor força em quase todos os autores acima citados: recuperação da lírica; quebra de dicotomias entre cultura erudita e popular (em uma verdadeira mistura de registros que vai além da oposição dualista com que os primeiros modernistas trabalharam); relação desobediente com a tradição nacional, quebra ainda de dicotomias engessadas como as que opõem objetividade e subjetividade, natureza e artifício, ou oralidade e escrita; recurso a técnicas não-lineares e de descontinuidade sintática (ampliando o quadro de técnicas limitadas do atomismo semântico de certa poesia experimental brasileira); questionamento dos métodos de publicação e divulgação do trabalho poético; assim como a pesquisa de novos meios que deponham o papel como suporte único para a poesia (que conta ainda com pouca visibilidade no Brasil, onde a poesia experimental privilegia o visual e plano mesmo diante da tela do computador); e a releitura extremamente importante que passam a fazer do parâmetro de concretude de linguagem, sob a leitura desta como não-transparência do signo. Isso se dá, em muitos aspectos, por uma recusa da póética de subserviência ao signo dos poetas brasileiros da década de 50, e uma aproximação à postura de desconfiança do signo de certos poetas da década de 60.

 

Poesia sonora ou que use suportes como o vídeo, infelizmente, é quase inexistente ou simplesmente escondida no país, sem qualquer visibilidade crítica ou de imprensa. Há os poucos trabalhos de Augusto de Campos, e nos alegra muito que na última década o poeta paulista tenha se dedicado quase que exclusivamente à pesquisa de novos meios, sonoros e visuais, assim como a pesquisa dos já mencionados Aleixo e Dídimo, assim como Arnaldo Antunes, André Vallias, Lenora de Barros e de outros poucos corajosos. Na verdade, a distância histórica que hoje temos da década de 50 não apenas nos permite, como talvez exija, que reavaliemos a leitura crítica que se faz da década, tentando compreender a obra de poetas como Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos, para além dos clichês críticos de sua fase concreta-ortodoxa, mesmo as projetadas pelos próprios autores em suas auto-avaliações ou a de poetas inicialmente ligados a eles. Precisamos encontrar a capacidade crítica para nos manter também fora de suas desavenças internas pessoais, buscando compreender seus desacordos estéticos, em poetas como Ferreira Gullar e Mário Chamie, por exemplo, e avaliando a todos sob nossa perspectiva histórica, com necessidades específicas, buscando ignorar a disputa por hegemonia entre esses poetas, o que nos dá o privilégio de compreender suas obras de uma forma nova, que as revitalize para nosso uso e solução de nossos problemas contemporâneos, muito distantes dos problemas de cinqüenta anos atrás. Assim como se faz necessária a reavaliação da obra específica de poetas como Affonso Ávila, Pedro Xisto, Edgard Braga, Ronaldo Azeredo e Wladimir Dias-Pino, para além do caráter de apêndices de núcleos a que seus trabalhos são geralmente relegados. Esse é o maior tributo de respeito que poderíamos dedicar a todos esses poetas surgidos na década de 50 e 60. Quero insistir que este texto não se quer revisionista no sentido de angariar poderes para excluir ou incluir poetas num suposto cânone. É muito mais uma chamada a um trabalho ainda por fazer, correndo o risco de expor uma lista de poetas mesmo em meio à "canonite aguda" de que sofre a crítica brasileira, numa listagem que nem chega a mencionar poetas que trabalham a partir de outra relação histórica com a tradição como, em prismas distintos entre si, Dirceu Villa e Eduardo Jorge. Ouso dizer que é justamente esta relação histórica entre o fazer poético e sua tradição que parece distinguir hoje a grande parte dos poetas em atividade no país. 

 

 

Nota do autor: este texto é uma versão da primeira parte do ensaio "De Figurinos Possíveis em um Cenário em Construção", publicado como encarte do número de estréia da revista Modo de Usar & Co.

 

 

 

julho, 2008

 

 

Ricardo Domeneck. Paulista, vive em Berlim. Além de poeta, é tradutor, ensaísta, videomaker e DJ. Como DJ, organiza a festa semanal  Berlin Hilton. Edita o fanzine Hilda e é "content manager" do site Flasher, para o qual escreve artigos e entrevista artistas e músicos em Berlim e Londres. Co-fundador da gravadora Kute Bash Records.  Publicações: Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Editora Bem-Te-Vi, 2005); Cuatro Poetas Brasileños Recientes, organização e tradução de Cristian de Nápoli (Buenos Aires: Editorial Black & Vermelho, 2006); A cadela sem Logos (São Paulo/Rio de Janeiro: CosacNaify/7Letras, 2007); Ideologia da percepção, em Inimigo  Rumor — Revista de poesia, n. 18  (São Paulo/Rio de Janeiro: editoras CosacNaify/7Letras, 2006); When they spoke I / confused cortex / for context (London:  Pablo Internacional Magazine, 2006). Colaborações: Tentação do Homogêneo, em Cacto — Revista de Literatura, n. 4  (São Paulo:  edição de Tarso de Melo e Eduardo Sterzi/editora Unimarco, 2004); textos, traduções (Jack Spicer, Rosmarie Waldrop, Lyn Hejinian & Basil Bunting, do inglês; e Friederike Mayröcker, do alemão) e entrevista, em Inimigo Rumor — Revista de poesia, n. 17 (São Paulo/ Rio de Janeiro: editoras CosacNaify/7Letras, 2006)..

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