ABRAÇO NO ESPELHO

 

O gato mirando seu reflexo na caixa d'água, querendo se alcançar ainda que se mate, partindo inteiro para esse Outro que chama. Sem poder de resistência, cedendo à doce maldição dos livres, aí está o velho gato que atende por "Bom-Pensamento", Bompe, um nome que Lívia emprestou de Rosa, que assim batizou seu papagaio.

Na noite anterior, e como sempre, Bompe dormiu aos pés de Lívia, lambeu-lhe os dedos quando ela puxou de leve suas orelhas, avisando-o da hora de acordar. Tão suave despertador, Lívia. Espreguiçaram-se ambos, ela por demais contrariada, por quê?

Não é coisa que ocorra a Bompe, isso de ir a lugares que desafinam com outros relógios, de puro sentir, isso que acontece a Lívia de segunda a sexta, o emprego de seis meses que — ela garante — não chegarão a sete.

Bompe, que nada entende desses assuntos, lambe sua porção matutina de leite e salta pela janela da cozinha, mais que disposto às lutas com Coca, o outro gato da casa.

Apenas, Coca é mais dado à contemplação do que à guerra. Aos primeiros tapas, rosna para Bompe e corre para a velha mangueira do quintal, buscando o acesso ao telhado. Bompe é mais rápido e o alcança, os dois rolam galhos abaixo, novelos entrelaçados, está iniciado o jogo de praxe de todas as manhãs, jogo que não dura mais que o banho de Lívia.

O portão range quando ela sai, pensando de passagem que é preciso lubrificar as dobradiças, dar uma demão de óleo de linhaça, isso sem contar as providências para melhorar a estrutura da casa, que é tão velhinha mas encantadora, com assoalho de tábuas largas e um quintal do tamanho do mundo, árvores e tudo, onde é que já se viu isso, nos dias de hoje, na Vila Madalena ou em qualquer outro canto paulistano?

Lívia atravessa correndo a Rua Harmonia em direção ao ônibus, esquece o guarda-chuva, não volta para pegá-lo e vai se tornando um ponto já longínquo, enquanto no quintal-mundo é hora de sol no telhado, nos vasos de gerânios, na mangueira em flor que logo porá suas manguinhas de fora, hora da divina preguiça e arte do sono.

Enquanto o ônibus ganha a Teodoro Sampaio, na marcha lenta de todas as manhãs, Lívia vai listando o que é preciso fazer na velha casa, elegendo prioridades. Algumas não podem mais esperar. E o dinheiro tão curto.

A caixa d'água sem tampa está sempre nos pesadelos de Lívia, que vai adiando a providência, porque no fundo não acredita que possa acontecer; mas nunca é bom dar sorte ao azar. Fechando os olhos por um instante só, enquanto o ônibus enfim alcança a Avenida Consolação, Lívia puxa a cortina desse medo e busca o livro de Galeano, que traz na bolsa. Acalentar pesadelos acordada? Adianta o quê? Melhor buscar melhor companhia na leitura de Galeano.

Também Bompe não está ligando a mínima para o medo de Lívia. Está que uma linda presa incontinenti do ser reflexo na água da caixa — diminuto mar que ondula a seus tapinhas, respingando-lhe pérolas no nariz e bigodes. Está que macio equilibrista na corda de eternit, entregue ao espelho que chama e  empurra-lhe a bundinha graciosamente, convidando ao irresistível.

Estivesse Lívia aqui, agora, e os tempos seriam bem outros. Com mãos de seda ela roubaria Bompe ao nada iminente. Acariciando-o, ralharia com ele e consigo por tamanho descuido. Mas ocorre que neste agora as mãos de Lívia estão ocupadas no escritório, presas de um tempo amorfo, que nada tem a ver com quintais, gerânios ou miragens.

Estivesse o sol mais alto e o espelho d'água faria arder os olhos do gato. Mas o espelho está morno e suave, Bompe insiste no jogo, o reflexo chamando-o cada vez mais de perto, canto de sereias e o salto de pluma: agora estão que um só, Bompe abraça inteiro seu Outro, a água ondulante vai se aquietando aos poucos, até parar. Parar.

Não vá Lívia esta noite se engasgar de dor ao engolir esse difícil futuro de nunca mais Bompe, que acaba de sair à francesa, que dorme de olhos abertos no fundo da caixa eternit, para sempre no colo da água, paninho molhado e felpudo.

 

 

 

ESPARRELA

 

Razão ninguém há de me estender, mas estou à procura disso, careço de aprovação? Quando menina, devo ter buscado algum conto de fadas, algum desfecho feliz, castelos e bailes e rastro de cristal. Ah que me puseram tão sofrida, que só restava mesmo aceitar a canga ou bater de frente com o destino, balir ou me calçar em fera e assim fiz. Entre ovelha e pastor, antes o lobo. Então que esse recurso me caiu bem, que acabou se aderindo de vez. Hoje nem sei mais a textura de minha pele, a de antes, original. Mas a verdade de uma pessoa não seria a forma na qual ela se lavra, no esconjuro da que lhe deram?

Digo isso por mim, por minha vida que não tem sido outra senão esse rosário de lutas.  Mas eu, eu alterei as linhas do destino. E olhe que é preciso mãos de aço para corrigir uma sentença já firmada.

Minha sina, sei qual era: a de franzina, coitadinha, relva de gente cuspir e cão se espojar por cima. Mas quem aceitaria uma sorte dessas, me diga, se não um filho bastardo de Deus, um apadrinhado da desgraça?

Eu, não. Eu tapeei o destino, por conta própria me compus, venci. E até aí novidade nenhuma, que não sou o único vivente aprendiz de si mesmo nesse mundo de farta miséria.

Mas de uns tempos para cá, nas tardezinhas em que me banho no rio, surge lá uma outra a dizer que não, que minha finta no destino valeu de nada, pois todo alento me falta e, sem isso, o que mais conta? Vem essa outra me escavar o peito procurando um bobo que pulse, coração à espreita em algum recanto de mim.

No começo eu lá deixei que ela me especulasse, mal não ia fazer, ao menos pensei assim.

Quando vi, era tarde. E tarde sempre é demais, porque essa outra de que falo é uma a quem não basto para vencer, por ser ela assim eu mesma quando nas águas me espelho. É uma que de mim se apossa, de tal modo que nem toda minha sanha, a resenha das lutas, tudo que juntei me negociando aqui e ali, nada me garante o que fazer nesse confronto. Demônios me cercam de braços abertos enquanto as forças me abandonam, me vejo um rio a se esgotar inteiro, num redemoinho sem fim. Dos demônios, tinhoso maior é o da Dúvida. Este, arrenego do cabo ao rabo, mas resolve o quê?

Acabo vencida, acabo não vendo, nessa hora, serventia alguma na vida que urdi na trama desses anos de muito pulso e pouco agrado, e me vem um silêncio saturado de horrores, um frio de evocar a morte. Por fim vão-se os demônios, felizes por certo, deixando-me na pior companhia de mim mesma.

— Agora me diga se havia outro jeito — eu questiono, severa, mirando o espelho das águas onde a Outra se põe ares de rainha e, vendo que fraquejo, atormenta-me sem piedade.

Aflição e raiva, aflição e fúria, adoeço.

Enveredo por desvarios, tenho ganas de renascer, reemendar a sina ou simplesmente acatar a vida que me ofereciam quando pela primeira vez abri os olhos, num tempo anterior a todas as dores.

Mas é tarde; é noite, quase. Não há mais tempo, nada a fazer senão fugir dessa Outra que me assalta quando me descuido, nas águas loucas do rio. E falo de descuido pouco, quase insignificâncias: um fechar de olhos, um suspiro, um vacilo de alma já bastam para chamar o que não peço, não peço nunca, mas é como visita que dispensa convite e vai ficando para dormir.

E como a piorar tudo, um sapo coaxa ali perto, canta um sabiá, dispara uma cigarra, salta um peixe num triz prateado, põe-se o sol num escarcéu de cores, ladra um cão, ameaça uma saudade, o desespero.

Remédio, tem um: dar a braçada para além do redemoinho, cair para o alto, mergulhar para fora, mas como é difícil parir-se das águas, do sortilégio que bem pode parecer coisa de Anjo, mas é artefato do Cão. Por isso dói a saída, como há muito me doeu nascer; os passos primeiros são trôpegos como foram os primeiros passos, os de quando eu era pura como um cordeirinho de Deus, o coração pronto para todas as facas.

De modo que levo uma eternidade para retomar o velho caminho, o prumo, o que deve ser.

De novo senhora de mim, agora afinal me vou, toda por fora limpa e pulso firme na mão, porque a vida é inclemência e o resto nem me conto. Já diz meu velho ditado que um coração no cercado mais se protege do gado, da humanidade alongada como peste nesse mundo, ah, eu e minha santa desventura.

 

 

 

 

EU QUE SEI

 

E falam que não, que não tem criatura alguma, então pergunto e essas coisas na tela são o que, desenho animado? O Padrinho explica que é o pisca da árvore de natal, ali no canto da sala, refletindo na tela do micro. E me faz olhar para trás, me vira a cabeça como se rosqueasse, olhe lá, olhe bem para a árvore e deixe de bobagens.

Digo muito bem, Padrinho, aquilo ali, visto daqui, é um cordão de luzinhas de cor, vejo perfeitamente. Mas quando eu voltar de novo as costas para o pisca, me diga, quem garante que ele não vai virar outra coisa, não vai se embrenhar na tela, desenhar por cima do que eu escrever, como sempre, como sempre nesses dias, desde que Madrinha armou a árvore e pôs aquele Menino-Deus ali no pé, com os braços e as perninhas abertas para o mundo que vai fazer com ele o que bem sabemos. Mas isso é outra estória, já traçada, bem diferente das coisas que escrevo neste micrinho, o que sei fazer muito bem, preto-no-branco, sem desastre nenhum, tanto que as letras saem alinhadas-comportadas e de bom tamanho, por isso me azucrina tanto a sarabanda dessas criaturas que fogem do pisca e vêm se espalhar por cima da minha escritura, e olhe que só escrevo coisa importante, o relatório da Madrinha sobre as vendas da tupperware, aprendi a palavra e jeito mais certo não há, é Inglês, língua outra, coisa fina, só podia mesmo vir da Madrinha.

Não tenho queixa de viver com Madrinha e Padrinho, afora essa mania dele de me corrigir o tempo todo.

Madrinha, não. Essa é boa. Uma santa, agüenta sorrindo o que quase ninguém agüenta chorando. Eu que sei. Eu que vejo. Madrinha é uma doçura, mais ainda quando Padrinho viaja, uma doçura que me empacha de carinho, de cinema, de vestidos que não usa mais... Até folga me dá — coisa que Padrinho nunca —, mas não para se ver livre de mim, dá folga e passeia comigo, já chegamos a ver dois filmes num dia, e depois é aquela conversa comprida, que sempre começa assim: e então, você sente saudades de lá?

Ela chama de "lá" os confins de onde vim, lugar quase fora do mundo, despencado mesmo, nem vale o nome que tem, arranchado entre duas cidades que sim, essas merecem, e como, os nomes, cada um mais lindo. E minha terra lá, espremida como queijo derretido escapando do pão, só sai em jornal para manchar os dedos, o brio da gente, só em caso de escândalo e olhe que isso é o que mais tem, até os políticos de lá são mais imundos, tão excomungado é o lugar onde nasci.

Não foi à toa que Mãe resolveu fugir, corajosa ela, mas me esqueceu no ônibus, devia estar meio zureta com aquele sol que torrava os cornos, eu mesma não me lembro, só sei que estava ensopada quando a Madrinha disse "gente-olha-só-um-neném-aqui-no-banco", me ergueu no colo e quase na mesma hora sentiu o mijo e me soltou, ainda bem que ela é baixinha, senão eu teria malhado com mais força a cabeça no chão.

O Padrinho conta que fiquei entre a vida e a morte na Santa Casa da cidade vizinha, uma daquelas que vale o nome que tem, povoada de anjos e doutores.

Lá me salvaram, me devolveram ao saco-de-gatos-que-é-essa-vidinha-mais-ou-menos, como diz Madrinha. Já Padrinho diz que foi milagre, que depois de tudo só fiquei com uma doença que é menos que nada, uma coisa à-toa, menos que terçol, caganeira, até o nome é à-toa: seqüela.

Pois a seqüela me grudou na cacunda como um sobrenome; tudo o que faço de errado, até de certo, é por conta dela.  Ao menos assim diz Padrinho, assim concorda Madrinha: se a menina fez isso, é por conta da seqüela; se não fez aquilo, é por conta da seqüela.

Tudo nivelado por aí, a seqüela sendo um filtro a purificar o dito e o não-dito, o feito e o desfeito. E a coisa pega. Até eu me pego vez por outra pensando assim. Vejo as criaturas saracoteando na tela do computador e digo: é a seqüela. Pego um copo d’água e ele me foge da mão, é a seqüela. Um dia fui secar o cabelo da Madrinha, o diabo do secador estourou e a cabecinha dela virou um fogo só, foi a seqüela; uma noite acordei com a camisola da Madrinha e uns passos de anjo no corredor, foi a seqüela, uma coisa.

Dizem que sou besta para quase tudo. Besta, mesmo. Mas para lidar com relatório de tupperware no computador sou o que há.

O doutor lá explicou ao Padrinho: tem gente que não serve para quase nada, mas quando encaixa bem num trabalho, encaixa mesmo, até melhor que os outros, os certos.

Ainda bem que eu dei para alguma coisa, diz Padrinho. É mesmo, diz Madrinha, que perto dele é uma vaca. De presépio. Não tem boca para refugar. Eu não digo nada, mas nessas horas as criaturas na tela saracoteiam como nunca, um quiproquó, qualquer dia me escapam e daí o quê?

Fala o Padrinho, cala a Madrinha, dançam as criaturas. Nem Padrinho nem Madrinha ouvem, claro, pensam que nada disso existe e, então, não existe mesmo. Para eles. Para mim, eu que sei. A gente pensa que uma coisa tem fim e às vezes ela nem começou.

 

 

[Contos do livro Volições, ilustrados por Wilson Neves]

 

 

 

 

 

 

 

VIOLEIRO

 

Morrer cantando não é para qualquer vivente. Violeiro que assim vai deixa rastro de aura num jardim onde em findas tardes de outono se ouve ou se desenha uma canção.

Fantasma diurno, fantasma de luz contra o sol que se esvai, ressurge o Violeiro, saudoso dos prazeres dessa vidinha à-toa. Não traz correntes, mas gemidos. De pura preguiça e amor.

A amada? Casou faz tempo. Mas em tardes assim se arrepia, se tranca no quarto, solta os cabelos todos, põe camisola de seda, alisa as penas da passarinha e relembra o que já não há.

Dia seguinte, volta a amada aos trilhos e o Violeiro ao canto dos que assim se arrematam, espocando como cigarras ou ousando serenatas no terreno proibido que às vezes é o jardim de uma flor que já tem dono.

 

NETUNO

 

Dizem que algumas crianças, e uns bêbedos, alguns velhos e certos loucos podem tocar a visagem: contorno de um deus que se ergue, em sutil intermitência, no respiro entre dois tempos ou nenhum, em auroras e tardinhas, quando cores cambiantes se estiram em horizontes, sagração de contrários pareceres:

        

Dia e noite

Céu e terra

Fogo e água

Mar e mar.

        

(Pois não há par que se apresente para tal imensitude.)

        

Mais solitário que nunca, Netuno reverte ao fundo, para voltar sabe-o-deus-quando, num triz que pode ser o instante seguinte ou só a próxima eternidade.

 

MÃE NO BANHO

 

É pecado cabeludo

Espiar a mãe no banho,

Suas linhas, seus cabelos,

As fontes de onde nasci?

Pecado maior seria

Roubar tamanha alegria

A meu passarinho-menino,

Que nessas horas se apruma,

Sedento do que nem sei,

E pousa em todos os cantos

Da mulher-primeira que amei.

 

 

[Textos do livro Volições, baseados em imagens de Wilson Neves]

 
 
Yara Camillo (São Paulo-SP, 1957). Formada em Comunicações pela Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP, com especialização em Cinema. Autora de Volições (São Paulo: Massao Ohno Editor, 2007) e Hiatos (São Paulo: RG Editores, 2004), ambos ilustrados por Wilson Neves. Em sua trajetória, trabalhos para teatro, traduções, entre outras, Contos populares espanhóis (São Paulo: Landy Editora, 2005) e participação em antologias, destacando-se O conto brasileiro hoje, volumes 1, 2 e 3 (São Paulo: RG Editores, 2004 a 2006); Contos de Natal (São Paulo: Landy Editora, 2006); Doze (São Paulo: Demônio Negro, 2006). Tem vários contos premiados, entre eles "Multiplicação dos Pães" (prêmio da Agenda Latino-Americana em 2003); "Copidesque (1º lugar no Concurso de Contos Brasileiros – Secretaria de Cultura de São Bernardo do Campo-SP, 1987); "É Doce Andar de Ônibus" (2º lugar no Concurso Mulheres Entrelinhas, da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1985). Participa de vários sites de literatura.
 
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