Legião

 

 

Corpo de Cristo. Ouviu, e era quase a sua vez. Corpo de Cristo. Corpo de Cristo. Ela abriu a boca e recebeu o corpo de Cristo, ázimo, sem fermento, fino feito  papel. De volta ao seu lugar, lembrou de Paulo, aos Coríntios: "comamos, não o trigo antigo, senão os ázimos de sinceridade e de verdade". Mas não pode comer com a mão. Tem que colocar diretamente na língua, para evitar que o corpo, o corpo de Cristo, seja tocado por mãos não consagradas.

E a língua, essa serpe? E lá dentro?

Lá dentro de Pelágia, armava-se uma revolução. Sentimentos adventícios cerravam fileiras dentro dela e preparavam o assalto, desde a manhã bem cedo. Conspiravam para a ação a viagem a trabalho do marido e a viagem de lazer dos filhos, netos e amigos, o êxodo do feriado de Corpus Christi. Nesse campo desguarnecido, o sinal de avançar tinha sido dado, à hora do café, por um escorregão na cozinha — estilhaçados os incisivos, os dois da frente, arcada superior.

Impossível achar o dentista, viajando também. E o socorro viera mesmo do plantão ordinário do convênio. A gengiva tinha sido limpa, os caquinhos extirpados, prescrito um antiinflamatório. Mas a porta aberta pelos dentes da frente não pôde ser fechada. Fora do consultório, Pelágia tinha caminhado sem norte, aqui e ali fugindo de si mesma desdentada. Nesse passo, dera afinal na igreja da Calendária, de cabeça baixa, misturada com o desgoverno do povo. O padre já rezava a missa da festa da Eucaristia, preâmbulo da procissão que ia tomar as ruas do centro antigo do Rio.

Santos Anjos, Imaculada Conceição, Santa Úrsula, toda a infância em colégios de freiras, mas desde então nunca mais uma missa. Falar a verdade, nem havia dado falta. Ainda tentara se distrair, imaginando a reação dos conhecidos, quando contasse que passou o feriado metida na ladainha da fé. Aí tinha assustado, imaginando a reação dos conhecidos, pior o marido, quando a vissem sorrindo tão desfalcada. O fato é que passava a língua pelo vão dos antigos dentes, tão lisos, jamais uma cárie, e tinha uma vontade clandestina de chorar. Que acabou pública, quando resolveu verificar a própria figura, discretíssimamente, no espelhinho de maquiagem: os lábios arregaçados a fulminaram de repugnância; e ela chorou de torcer a cara, desfigurada, a triste e branca Pelágia banguela.

Foi por esse flanco vulnerável que se imiscuiu a revolução. Da memória de Pelágia compareceram inteiras as letras dos hinos de Maria e os textos da homilia. Sabia tudo de cor, o que deveria, mas não a surpreendeu. A tristeza impunha as mãos sobre ela junto com uma disposição genuína de renúncia e resignação. A afronta estética a humilhava, degenerava e virava tudo de cabeça para baixo. E ela sofria de vontades sem juízo e extremas de se confundir na massa, no coro, na fé.

Mas era muito difícil, naquele modelito bem-apresentado, da mais diferente dos diferentes. Mesmo tirando os anéis, o relógio, os brincos. Um sentimento oscilante — entre o medo e o pudor — queria disfarçar a abundância e as origens. Queria, radical, se banguelar inteiramente. Uma nova atenção, naquela fragilidade, destacava misérias triviais, atravessando a vida incrivelmente inéditas, ao lado de uns seus pecadinhos veniais que, somados, tomavam proporções capitais. Tanto que se confessou em silêncio, levantou e foi comungar, contrita de verdade.

Corpo de Cristo, corpo de Cristo ficou ecoando dentro, transpirando na pele, aderindo aos ossos, ao batimento, às carnes, enquanto se lembrava de Paulo e dos Coríntios e do corpo de Cristo ázimo, essa palavra aziaga que a perseguiu até chegar em casa, correndo. No quarto, despiu-se toda (tendo a vergonha ou a modéstia de fechar as janelas) e deitou na cama, os braços abertos na obviedade da cruz. Nas mãos de pianista (era o marido que dizia), pensou sentir os estigmas, e, nos pés ossudos, o martelo e os pregos. Gemeu juntando levemente as coxas, enquanto percorria, de cabeça, o trajeto completo do corpo.

As veias, o amolecimento dos músculos, os esgarçamentos da maternidade, a secura das extremidades, as cicatrizes (principalmente as do joelho), as dobraduras e o encarquilhamento, os peitos caindo muxibinhos pelos lados, a unha encravada sob o esmalte, toda a pele, todo o corpo era e não era o seu. Era ainda o corpo de Pelágia, antropóloga, virginiana, cinqüentona do Leblon, que dava uma mesada à irmã-sem-renda, que separava a porta social e a de serviço, que detestava a vulgaridade e os excessos, e que não tinha nenhuma paciência com a estultícia, nem com a incultura, nem com os erros de concordância. E era o corpo também da sua faxineira, do marido, da mãe (tão parecidas, nos retratos da velhice), da filha (iguaizinhas na curva dos quadris), do porteiro, dos meninos no sinal, do padre, dos negros, de todos os mártires, inclusive muçulmanos, índios, obás e um montão de ateus, dos invisíveis e dos sujos. Era o corpo sólido e concreto do país, da geografia do lugar onde ela nasceu e do lugar onde nunca ia suportar morar, das águas-vivas, das moscas mortas, das lagartas (largava o mesmo rastro úmido), do sertão, dos mesquinhos, dos mansos e dos violentos, dos bons e dos maus. Pelágia, quem diria, pós-doutorada na preguiça e no desinteresse, em pleno feriado de Corpus Christi, sozinha e sem os dentes da frente, invadia o corpo de toda a humanidade.

Por melhores ou piores, contudo, os feriados não duram para sempre. Ela adormeceu e, comecinho da madrugada, o marido voltou. Acordou dona Pelágia, assustado com a nudez fora de contexto. Ela mal explicou. O tombo no chão da cozinha, o dia com muitas dores, tonteiras, e aí, imagina, ia tomar um banho, deitou-se, nem viu, pegou no sono. Falava com as mãos na boca, enquanto revelava a perda dos dentes. Ela era antropóloga. Ele foi etnocêntrico: que hoje em dia, meu bem, ninguém mais fica sem dente, só querendo. Amanhã mesmo iam juntos dar início aos trabalhos, coisa muito simples, de uma prótese definitiva. E sem afobação, mas firme, ele executou as medidas de reintegração de posse e expulsou do corpo de Pelágia toda aquela extraordinária legião de posseiros.

 

 

 

 

Iscas

 

 

Fosse porque era domingo, fosse porque era órfão, vez em quando ele resolvia visitar a tia Letícia.

Desmontava as varas do muro de pedra, recolhia as linhas, os molinetes e os restos de siris amassados, tatuís e minhocas. Separados, guardava os espantalhos de plástico colorido, descabelados e luminosos. Iscas artificiais e importadas, que nunca atraíram nem uma cocoroca à tona.

Mas ele acreditava. E deixava para trás o sol dourado sobre o paredão da Urca, assoviando farolitos, eclipses de luz pelo céu, a pé, até a casa da tia Letícia.

Casarão. Onde não podiam entrar os cachorros nem os peixes. A sacola com papa-terras, carapicús, marimbás, linguados, voadores ou sargentos ficava de favor no boteco da esquina. Ele tomava uma rápida, antes de seguir chaplinhando até o portão.

Para o portão, não havia palavras. Nem para o jardim, ou a escada de mármore da entrada principal, o sobrado dos empregados, a recepção social externa, com poltronas de couro branco, mesinhas de pés palito e luzes indiretas. A mesma essência de silêncio de dentro da mansão. Que o repertório não dava conta da magnificência da disposição das coisas. Ainda maiores nos interiores, porque ampliadas pelo pé direito alto e pelo efeito especular daquele enorme retrato a óleo no salão.

Falhavam os dicionários, também os sentidos, na observação dos acessórios e da mobília. Colheres de prata com furinhos, utensílios esquisitos de marfim, segredos de vidro que nunca se revelaram. A linguagem da casa era tão inexprimível quanto os afetos que dela recendiam. O que ele sabia: vagas impressões sobre disputas fratricidas, uns vexames morais, uns esqueletos escondidos nos armários. Fraturas não expostas.

Tudo isso ele atravessava arisco, sorrindo esquivoso, enquanto se falava pouco, em geral de parentes remotos, que mandavam notícias à toa da fronteira. A tia Letícia, o marido e os primos se moviam com gestos clássicos. De uma classe capaz de assim distraída repousar os pulsos sobre os bordados da toalha, como quem se debruça sem surpresas sobre o mundo. Todos pausados e bem-vestidos. Continentes e constrangidos.

Até o momento em que, ritualmente, enfim o convidavam a tomar a bênção da avó. Lá ia ele solto, por conta própria na casa interminável, onde aquele perfume   confundia os limites, como em um latifúndio. Suava para chegar ao segundo andar. De modo que umedecia a maçaneta de porcelana azul, pintada de orquídeas, e deslizava arfante na modorra aromática do quarto.

Aí olhava para ela feito neto. Que afinal ele era. Emboram resistissem, soube depois, secretas controvérsias.

A bisavó de aspecto pergamináceo respirava na cama muito branca, como talco, vórtice de onde parecia emanar todo o resto. Humores adocicados que se espalhavam pelas escadas, pelos salões, pelos corredores, pelas almofadas de cetim, evoluindo e se colando a tudo, que nem sachê dentro da gaveta. Perfume que devia vir de dentro dos escuros da velha, uma relíquia volátil das severíssimas regiões da Campanha gaúcha, cheia de ventos. A velha que matou um índio. E agora evaporava num vulcão de flores secas, nessa cerração de suavidades simuladas, que quase se podia tocar. Até a extinção.

Por enquanto, ela olhava para ele feito nada. Fóssil de asa de libélula, 110 milhões de anos, protegida sob a colcha de piquê. Ele levava a borda do tecido ao rosto e aspirava fundo, procurando não sei que confortos magros, naquela desordem de partículas, a memória, espécie de Babel nunca de núncaras confiável.

Fosse porque era domingo, fosse porque era órfão, ou porque tinha pescado muito, naquele dia se comoveu mais. E confidenciou no ouvido da velha a lista dos peixes fisgados na tarde, apesar da ação implacável das traineiras que arrastam redes na praia. Para então beijá-la, bem devagar.

Uma ranhura franziu o pergaminho. O fóssil descolou da pedra, semierguido na cama, e o empurrou com vigor incongruente, num repelão de enjôo. — Sai, guri, que não suporto essa fedença de cachaça com peixe.

Falava e varria o ar com a mão. O perfume de valsa em roda dos dois.

Não rebateu. A mando, saiu como pôde, escada abaixo, desviando dos panos quentes e das perguntas, um anzol enganchado na garganta. Não cumpriu as despedidas e ninguém ousou cruzar a linha do corredor. E, nem aí, nesse instante de assombro geral, deixou de sentir.

No jardim, abaixou-se para calçar os sapatos, que ficavam sempre do lado de fora da casa, num zelo extremo com os tapetes. Achou ridículo e sorriu, mas não voltou ao bar para buscar os peixes.

Afastou-se no tempo daquela casa. Um dia vendida, noutro, demolida, segundo ouviu dizer, desinteressado. O que não o impediu de percorrer, clandestinamente, um vocabulário inútil de elegâncias e delicadezas e cortesias, em busca da química redolente daquela atmosfera. Quase acreditou ter encontrado o mesmo perfume muitas vezes depois, em algumas pessoas e em alguns seletos salões. Só quase. Existem por aí milhares de derivados, provavelmente sintetizados de idêntica flor. Nenhum, contudo, foi como aquele. Tão velho, tão palaciano, tão capaz de colocar as pessoas em seus lugares. Tão indiferente. Como os peixes e as iscas de plástico, quando insistem em não se perceberem, e o sujeito não pesca nada.

 
 

 

 

Vista Cansada

 

 

Se não for por nenhuma outra maneira (existem muitas, até boas, até trágicas), os quarenta anos se revelam inevitavelmente pelos olhos. Ou pela névoa que neles vem morar. Comigo, essa imprecisão intermitente começou a ser percebida nas horas da leitura e foi diagnosticada como vista cansada — o que é ainda mais exato do que supõem os vãos oftamologistas. Daí que, mesmo sem esperança de curar o cansaço das coisas vistas, passei a usar óculos para não piorar a vista desacertada das coisas.

O hábito faz o cego, contudo. Porque não consegui aplicar nem óculos nem lunetas ao piloto automático do cotidiano, junto ao arsenal que me acompanha sempre, feito o relógio, o cigarro, algumas chaves, certas palavras renitentes e pelo menos um livro dele dentro da bolsa. Tudo isso está comigo agora e vai estar também na hora da morte, a não ser que morra dormindo, do que duvido, por falta de merecimento. Mas os óculos não, não estão nunca quando preciso, que ficam esquecidos por aí, largados, recalcitrantes. Volta e meia, abro o livro e mal vejo, engolida naquelas camadas de nuvens que ora mostram, ora escondem, fazendo brilhar mais que o normal o branco da página entre as linhas, ofuscando e desfocando as letras.

Numa madrugada calorenta, a turvação deu um passo no além. Estava lendo sem óculos, em tremendo esforço de entendimento, quando me aconteceu ser engolida toda pela neblina. Tive um segundo de pânico, até que ouvi uma voz, pouquinho gaga, dizendo:

 

— Escorregastes cá para dentro, lamento.

— Dentro de onde? Onde eu estou?

— Cá dentro da entrelinha. Este intervalo oblíquo, em constante expansão, que me serve de limbo solitário.

— Como?!?!

— Não sei dizer como. Mas admito que algumas entrelinhas são excepcionalmente largas, profundas e mais vastas do que outras. Donde resultam essas quedas livres de leitores. Não te aflijas. Tua estadia aqui é curtíssima, ao contrário da minha, que dura até que as janelas fechadas do destino se rompam e soprem longe essa cerração fantasmagórica. Ou até que ninguém mais se despenque.

— Destino... até aqui.

— Principalmente aqui.

 

*

 

Confiei no absurdo, no engenho, no estilo, confiei até na biografia. Então considerei aceitável a circunstância esdrúxula, em que se destacava uma sensação de liberdade incomum, só explicável pela presença da morte. Tudo parecia possível e a verdade tão ao meu alcance, que previ o pior: ia me dar um branco. Um branco se dá como um confinamento no vácuo dos sentidos, brutalmente reduzidos ao osso descarnado da ignorância, onde a fome não acha nenhuma gordura, nem carne, nem memória de sal. E quase ia dando, realmente, mas não deu. Numa voz ínfima, morrendo de medo do ridículo, consegui apresentar a minha primeira e obsessiva questão, sem advertência nem prefácio:

 

— Você cuspiu na vida elegante da corte, escarneceu das etiquetas das relações, ridicularizou a monarquia, anteviu as decepções do sonho abolicionista e até da República, proclamou o fracasso do amor e deixou sobrar na alma das gentes só a maldade e a loucura. Fundou esse edifício de horror nos pilares da sutileza, e escrevendo para os mesmos elegantes, de tal modo que me pergunto se eles chegaram a perceber. Isso fez sentido?

— Poupo-me de traduzir meus próprios livros. E nem me atrevo a especular sobre o que puderam ler os leitores — do meu, do seu ou de qualquer outro tempo. Declaro-me incapaz de qualquer inútil comentário.

— Vou repetir o que, segundo consta, teriam dito a um gênio da música: há recompensa em ser distinguido pelos que não sabem distinguir?

— Não busco tal coisa. E ademais não sou músico.

— O que você busca?

— Agora, mais nada.

— E antes?

— Escrever, amar, driblar as humilhações. E tu, caríssima leitora?

— Eu? Não sei... (e pressenti o branco, de novo, como uma convulsão, por pouco, muito pouco, retida no corpo).

— Imagino qual será a causa secreta que a faz torturar assim as linhas, as entrelinhas e pobres autores defuntos.

— Pode ser isso que tenha me trazido até aqui. É constrangedor e inexato simplificar a vida desse jeito, mas, em nome do curto tempo, respondo com outra obsessão que me assombra: o mal espalhado, travestido, educado e gentil, refulgindo nos luares da enseada e nos gestos da mais extrema delicadeza. O mal bem-intencionado, a cavaleiro dentro de mim e das tuas principais obras. Combato meu próprio e tímido dragão.

— Dragões, dentro de ti, é?... Hum... Concluo, então, que tua obsessão é pura santidade. Flagrar o mal para curar-se dele e subir aos céus. Uma recompensa, afinal.

— Não foi isso que eu disse.

— Acontece. Considera duas almas diferentes (ou complementares?), habitando juntas a natureza íntima das palavras, sabe como é, uma externa, outra...

— Desesperada. Ando a ponto de capitular. Quero dizer uma coisa, entendem sempre uma outra, a maioria das vezes o contrário. Por mais que eu estenda e desdobre as idéias, marque o caminho, faça sinais e comprometa o pensamento, ele não alcança desprender-se e sair por aí, inteligível e de acordo.

— Nesse caso, fala menos. Como último recurso, cala-te.

 

Eu tive uma vertigem de vergonha.

Ele riu, e continuou.

 

— Ter um ou um milhão de leitores, ontem ou hoje, pouco se me dá. Escrevi o que eu quis e dei nome ao que estava visível e ao invisível, até ao passar do tempo. Dispus uns tantos espelhos argutos, para quem os quisesse encarar. Ou não, que isso não é comigo. Estou morto, já me permito dispensar a modéstia. Fiz o que pude, e pude muito, mas fiz principalmente para melhor ver passarem os dias e, naturalmente, a mim mesmo por dentro deles. Não me peças que te explique (os mortos também merecem descanso) como devia ser para mim o melhor jeito de ver passarem os dias... "Se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote e adeus".

— Lembro disso.

— Mas não te traz serventia qualquer.

— Bem capaz que eu não queira sinceramente, nem tenha os instrumentos para me consertar. Bem capaz tudo isso não passe de um medo amarelo e estarrecido do mal arbitrário e epidêmico que move a vida. Bem capaz que eu não dê mesmo o nome aos bois, nem consiga me explicar só de medo dessa coisa, Humanitas. É bem capaz que eu seja feita somente de conveniência e silêncio.

 

 

*

 

A neblina começou a se desfazer devagar. E pude vê-lo magro, curvo, os olhos muito, muito negros, varando o limbo tal como eu os havia imaginado. Não tinha, no entanto, as sobrancelhas iguais às do meu pai, como também haviam suposto as minhas fantasias da orfandade. Engasguei, tamanha a ternura e a saudade antecipada daquela hora desperdiçada. Que foi substituída, sem aviso, por um esgar de terror, quando percebi a mancha móvel e compacta de vermes avançando pelas pernas dele, agora podres e corrompidas. Dei um grito horrorizado e meti a minha própria mão naquilo (santo martírio!), espanando-lhe as calças e espadanando as larvas para todos os lados, frenética e inutilmente, porque elas se multiplicavam mais e mais furiosas.

 

— Não é triste?, ele perguntou plácido, mortalmente tranqüilo.

— É horrível, nojento, repugnante; bichos do inferno, não deviam ter entrada no limbo.

— Não me refiro ao vermes, falo mesmo dos leitores, que desânimo. Olha bem para ti! Aliás, uma conhecedora diplomada da fauna do pós-morte, a crer no que diz.

— Não entendi.

— Isso é uma redundância. Pensas, logo te desentendes, já havia reparado.

— Você mudou de tom. Agora me senti ofendida.

— Não é justo. Ofendidos contigo deviam ficar os vermes, e eles não se abalam.

— Por favor, só uma vez, diga claramente.

— Queres que eu faça um desenho? Pois claramente te digo: não faço, fora com os diagramas! O melhor é ler com atenção. O melhor é ler com atenção. O melhor é ler com atenção, está em Esaú e Jacó, no capítulo V, página 26, da péssima edição que você já leu bem umas oito vezes. E antes que seja muito tarde (não digo que já é, porque as janelas do destino continuam trancadas), deixa que te devorem os vermes, querida. Deixa também que eles me devorem em ti.

 

Estava exausto. Então guardei um minuto. E era "o nada bordado sobre o invisível", desfiando-se em volta dos meus cabelos. Desandei a perguntar, quase de joelhos:

 

— Vou enxergar? Vou ressoar as coisas? Há alegria nascida sem a baba de Caim? Os dias me darão perdão? Vou conseguir dizer o nome das coisas? Vou ser capaz de medir toda a minha indiferença, e de contar tudo, cozinhando e comendo do mal que há em mim?

— Ah..., ele ponderou, pensativo. — Para responder à tua pergunta, caríssima, só mesmo consultando uma cartomante...

E o resto não pude ouvir, porque a folha de papel se tornou nítida, com todo o mundo ao seu redor. Devolvidos os meus olhos à sua confusão e ao seu cansaço. 

 

 

 

(Textos elaborados na 12ª Oficina Literária de João Silvério Trevisan/Sesc-SP, 2004)

 

 

(imagens ©pablo ruiz picasso)

 

 

 

 
 
 
 
Verônica Couto, jornalista. Carioca, vive em São Paulo desde 1992.