Morrer de Amor

 

 

         Então você chega e a gente.

         Ao final desses dias de calor causticante matando secando coisas mundo afora, mundo adentro, "eu tocarei a sua face", frase que por meses martelou meu coração. E a gente rola, sem pensar, pelo tapete, pela grama. E você tenta me dizer que não, que não é bem assim, exatamente para eu não escutar e continuar fincado na teima dos dias que correm lânguidos sem chegar a lugar algum.

         Você não avança e eu vou, e mordo, e aperto e me desespero, e desvairo e arranco um pedaço seu nesses dias de um sol labareda — e evaporo, tornado fumaça, feito brisa enquanto você se veste, descomposta, decomposta de mim.

 

 

         Veio deslizante como uma bruma. Veio num sonho verde, com vagar, como se pétalas se abrissem no denso de uma floresta inaugurando o dia. Ou na calma trepidante de um chão atapetado de cinzas salpicadas de brasas.

         Chegou com cheiro de mirra, naquele sonho: eu te sonhei, meu amor. Aportou em fome, sede, ânsia. Foi ali, no noturno silencioso daquela madrugada, na violência dos caminhos da inconsciência que Mirna, sozinha, se apaixonou fundo por Aluísio. Numa fundura tal que amanheceu não radiosa como se suporia, mas arroxeada em olheiras sob os olhos, empalidecida como se a noite lhe tivesse drenado impiedosa até a última gota de sangue.

         Vinha de uma impossibilidade, no condão, na pedra de toque do quase improvável, daquilo que certamente não seria, pensou, uvas e maçãs à sua frente num café da manhã que também não se cumpriria: Aluísio seu colega de trabalho, raríssimas vezes lhe dirigia palavras tampouco olhares, então, como, assim, sem mais, naquele decorrer fora do tempo, da noite para o dia, apaixonada?

         Era sábado, portanto ela não precisava correr. Tinha um dia todo — imenso, branco, vazio, pensou — pela frente e, claro, o espectro de Aluísio no pensamento, um misto de leveza e pontada de dor no peito, estatelada no fofo do amor, no urgente da coisa. Perambulou pela casa num par de pantufas, infantilizante e abobada a cara da Pantera Cor-de-Rosa em seus pés, bebeu água, calorão dentro, vermelhidão de bochechas, procurou um CD. Cavucar o que já foi com Gershwin? Melhor não. Queria algo vibrante do tipo "me embriagando faz um terremoto em mim/da guerra quero sim/só aprender a paz". Mas desistiu da música. Chegara àquele ponto de infidelidade às mínimas coisas em que, bastasse um cheiro, um som, um gosto para detonar em si toda uma explosão de emoções, ter de volta à memória aquilo que jogava para debaixo do tapete, uma vida que até então se desvelara como uma folha de papel onde escrevia a lápis para apagar tudo depois, esquecer, limpar, alvejar. Pessoas, amores, frustrações, incompetências.

Escrevia, apagava. Voltava teimosa a escrever, apagava tudo depois, ato contínuo, com devoção, quase um hábito já incômodo porque era inevitável, vivendo há anos no mesmo lugar, reencontrar pessoas, amores, frustrações, incompetências que desejava soterrados.

Uma habilidade de contorcionismo e invisibilidade impressionantes Mirna lograva, se esgueirando para não topar com o que já fora, ou não fora, ou que enfim pudesse ter sido, porque tentam. Tentam com fúria e rancor  rancoroso, todos os dias, diligentemente, nos matar. Mas feito comigo-ninguém-pode ou fênix a gente resiste e vai renascendo, costumava repetir para si, acusando o que não sendo, nunca foi e ainda a si, que, não se sabendo, jamais seria.

Não balanceava o óbvio do sem passado, sem futuro, Luís, o recente ex, ainda lhe doendo nalgum canto que ela, claro, tentara anestesiar — perfume amadeirado, a noite, Luís uma criatura da noite, shitake e violão, cantigas de ninar — tudo isso junto ou em partes, tanto faz, tudo isso era muito ele, totalmente Luís, o mesmo que lhe doendo ainda lhe dava uma vaga noção de sua vocação para uma felicidade estranha, e então Aluísio na cabeça, e uma falta de ar, lembrando do que lhe dissera uma amiga sobre se construir no ritmo dramático e trágico dos tangos e dos boleros, amores ódios avassaladores sempre. Tensionar o fio ao seu limite e ver se arrebenta. Um perder-se constante nesse reencontrar-se sempre nalgum ponto, nalgum rosto, mergulhar em alguém. Aluísio num jeito tão assim, blasé, pouco papo, mínima expressão, quase frio, por um fio, irreal e exatamente em sua irrealidade subitamente amado por ela.

Quem sabe tão assim, a coisa não desenrola?, pensava, numa vontade contraditória de agredi-lo por aprisioná-la de certa forma nesse desvario e dizer, metralhar, destilar veneno, boca mais experiente próxima à dele: "a vida vai te lavrar, te endurecer, vai criar uma máscara para essa tua cara suave, darling. Porque o problema mesmo é o oco, vazio, fossa, abismo, intervalo, essa coisa nenhuma, gulosa, assim, que não se preenche jamais", um certo brilho do que tenta ser mau e cheio de amargura mas nem tanto. No mesmo tom do que ouvira na noite anterior, pouco antes do sonho que era paixão.

Talvez fosse o próprio demônio encarnado, disfarçado de gente, aquilo que ela não saberia dizer se era homem ou mulher, mas que ali, na mesa do bar, a dois palmos de distância, lhe provocava espasmos de vísceras, tremores e suores gelados, uma bambeza de pernas, sobressalto no espírito. Aquilo que numa voz suave que não se definia em gênero, seguia vaticinando nonstop, numa desesperança devastadora, 5 horas da manhã, fim de noite, fim do mundo:

"Solução? Solução não há não, para nada, querida. Mas o fato é que o que fazemos aqui, em sentido estrito e figurado, é nos consumirmos, nos comermos, canibalescos, vampirescos. A gente vai se usando, se gastando mutuamente, às vezes se achando no outro, outras se perdendo no escuro sem volta desse outro. O OUTRO. Aos poucos, amando-desamando-amando de novo, matando ressuscitando, você deixará de ser o que é ou o que era para se tornar outra coisa, mais dura, refratária, até, no final. E o final é triste, é só".

Desviou pensamento. Espasmos de vísceras, tremores e suores gelados, bambeza de pernas, tudo por Aluísio. Uma ansiedade sentida no estômago, quase gula e idéia de agouro, como na coisa de ontem. Presságios de rejeição, Aluísio derretendo-se de rir da audácia de Mirna. De repente, Aluísio quase uma entidade mítica, sobre-humana, inacessível. Desespero. Vontade de sumir, transfigurar-se morrer.

Não. De viver. Muito, toda, completamente, mil anos, beijá-lo, abraçá-lo, cheirá-lo todo, colocá-lo dentro. Ah, um chá de canela que a recompusesse. Ou uma daquelas tisanas salvadoras do Márcio, "meu guru, pra quem sabe me botar inteira novamente. Novamente eu aqui, sonhando com um outro, o meu começo, meu menino, minha paz e meu delírio". Pegar o telefone, tatear as teclas sem jamais conseguir finalizar o número, tentando, tentando — ela tivera outra noite, na semana passada, esse pesadelo, Mirna, filha de Ogun e de Iansã, orixás do fogo, fogo-transformação-purificação. Ogun é ligado à forja e às ferramentas que desbravam, abrindo, bandeirantes, os caminhos. Então desmatando tudo: ligar para esse meu novíssimo amor. Mas a mãe Iansã, toda vento em Mirna, incensando fogo, avessa à água, já tocha crispada e ventania enlouquecida, ira e paixão, puxava-a para o outro extremo: não ligar.

Ou, por outra, ligar para o Luís. Cheiro, sabor, forças, fraquezas, pequenezas, grandezas, tudo familiar, sem novidades ou ameaças fantasiosas. Sabia do que ele era, do ela também era, no limite daquilo que ambos formavam, nenhum sobressalto. Religar-se às coisas já vistas e sentidas para evitar tombos, uma obviedade, uma tentação, mas ainda a exata dormência que era o local em que sempre se postara. Sem gozo não haveria dor. Com prazer a questão já se complicava, porque quem a partir dele não quer sempre mais, mais e mais?

Por sua indiferença ou por seu esforço, as coisas acabariam acontecendo e Cioran na cabeça: o amor, um encontro de duas salivas. Não, não pode ser só. Em que parte, em que circunvolução, em que dobra da vida, enfim, as minhas justificativas para negar isso?

Contra as agruras do coração e do corpo já tentara demais dentro de uma solidão de meses. A gandaia total e irrestrita que devorasse tudo e todos. A renúncia de si para o triunfo de alguém, coisa redundante. O mergulho no trabalho: engoli-lo, o quanto viesse, sem náuseas, naquele algo de intratável que havia dentro de si.

Assim, Aluísio em sonhos, mas ela encravada e no entanto escorrendo pelos cantos da realidade seca desse sábado. Luís cuja presença parecia ainda fresca e até ideal para um dia desses, aliás, excelente companhia para um cineminha mais engajado, um happy hour que depois se estendesse entre lençóis, bom para as demandas dos apetites, a contento para certos pedidos do espírito. Olhou o livro na mesa de centro da sala, um livro que Luís lhe dera como presente de aniversário, aclamando como o melhor que havia lido. Graça nenhuma, desdenhou Mirna, mal-humorada, livro bom é aquele que inspira a qualquer coisa: sair correndo, gritar contra, ou a favor, inventar engendrar a partir dele, discuti-lo, e esse não me inspirou nem mesmo a fechá-lo pela metade. Faltou desespero em seu autor. Onde o parapeito? Quando a vertigem?

Uma carícia em sálvia e cardamomo ela sabia Luís, Melodia no violão — Pérola Negra —, e a bengala atrás da porta, os pensamentos escorregadios, sobretudo aqueles que sugeriam comprometimento — lembrava-se do distanciamento de ambos nos últimos tempos de convivência, sempre arranjando desculpas para dormir mais cedo, todas as manhãs, entretanto, pães quentes sobre a mesa, o asseguramento de coisa consistente e o beijo, que havia carinho e muito, num bom dia. A boba alegria canina de um osso atirado sem gosto. Ensaios cambaleantes trôpegos de asas batendo em tentativas de vôos sempre fracassados. O riso desafinado de pura sem-graceza, uma inadequação fora se tornando com o tempo aquele relacionamento. Não cabia ali — naquele espaço, naquele tempo, daquele jeito. Mas não sabia também em que nicho, vão ou clareira — generosa que geralmente não se podia consigo mesma — pudesse assentar, no que quase desconhecido para ela, costumavam chamar felicidade. "Só me sei a dois", tentava explicar.

Por fim a frase "o que não é, torna-se sempre" (que jamais seria de Cioran), na mente. Foi quanto tomou fôlego e apertou sôfrega as teclas do telefone sem fio num tuu-tuu ao ouvido que lhe pareceu interminável. Não está em casa, será? Até que uma voz bonita e macia atendeu a chamada, num alô lânguido, como costumam ser os de um sábado de sol tímido mas bom. Com um leve tremor disfarçado na voz e um golpe de coragem, Mirna perguntou: "Aluísio? É você, meu querido?".

 

 

 
 

 

A Mulher que Virou Chama

 

 

Fogo (ô), s.m. Desenvolvimento simultâneo de calor e luz produzido pela combustão de certos corpos; lume; incêndio; Lareira; residência de uma família; suplício da fogueira; cauterização com ferro em brasa; sensação geral de calor pronunciado e molesto; (fig.) ardor; energia; paixão fuzilaria (pl: ó ; - de artifício; nome dado a peças fáceis de inflamar, que se queimam por ocasião de festejos e produzem jogos de luzes muito vistosos (sinôn.: fogo de vista); - de bilbode: o disparar de muitas espingardas umas após as outras, sem intervalo sensível; - de vista: fogo de artifício; - do céu: o raio; - grego ou – greguês : fogo que ardia na água, inventado por monges bizantinos no séc. XI; - pulado (Bras.): o fogo que, nas queimadas, é levado de um ponto a outro; - de S. João: peças miúdas, como bombas, pistolas, etc., queimadas na noite de São João e também as fogueiras dessa noite; comer – (Bras., Nordeste) (pop.): (V. Comer da banda podre); de morto (Bras.): diz-se do engenho que, por qualquer motivo, já não fabrica açúcar; (por ext.) diz-se de qualquer estabelecimento fabril que interrompeu a sua atividade, ou mesmo de pessoa em estado de  inatividade, abatimento ou depressão; mentir – (Bras.): falhar, negar fogo (arma); negar – (bras.): mentir fogo; pegar – inflamar-se; incendiar-se; puxar- (Bras.) (pop.): o cabra está puxando fogo; tocar – na canjica (Bras. Nordeste) (pop.) : precipitar um acontecimento; animar-se; - interj.: voz de comando para disparar armas; pl. abertura por onde sai o fumo das chaminés.

 

 

 

A vida, agora. Esta eu perdi sem volta açodada em gargalhadas histriônicas, pelas nervuras da minha confusão, na incompreensão alheia. Tangida feito boi, sem direção na bateia do tempo, transida pelo rolo compressor do cotidiano, fui — foram — percebendo-me a insanidade bem aos poucos. Ela espargia e eu estancava, vindo que vindo assim, a bobice virando em chateação: os sapatos desemparelhados, um preto outro marrom, num dia.

 Depois a falta de banho, cinco dias enfileirados sem nem ao menos passar perto de sabonete e um mau cheiro de revolver os mares gelados da Noruega. A conversa solta, despegada de sentido, a não ser que se destrinchasse a gume de faca a carne do que eu trazia, que era no fim osso duro para ouvidos mais apurados e as palavras, ao contrário, em mim, elas não decaíram, mas afiaram-se. Sou ariana e não de escorpião. Não culpo ninguém. Antes não tivesse vindo. Não gostei do passeio. A travessia não fez, definitivamente, o caminho. Estaquei pela metade. O amor também não me colocou ultrapassando-me a mim mesma. Acho que eu nem soube de fato o que era isso. E dizer ainda que nós somos os nossos próprios demônios? Que voluntariamente nos expulsamos do paraíso? O paraíso eu nunca vi não, a esmo insisti, olhe essas mãos aqui, queimadas de fogo, olhe essas marcas no meu rosto, isso foi obra de muita lambada, a enjeitadinha, a que tinha de agüentar as coisas quietinha porque cama-comida-roupa vinham de favor contrariado, sempre brigando por aquilo que tão naturalmente chegava aos meus irmãos.

Era ainda segredo meu, uma insônia crônica que passou a me roubar as noites estendidas em longos diálogos, quase conferências populosas com mortos, alienígenas e animais. João, marido, uma interrogação que logo me abandonou. Ou claudicando nas teclas do piano, das três às sete da manhã, por noites seguidas, até ouvir o sino da igreja em dobres repicados que me mandassem para a cama. Calma que a coisa logo se aclara, eu pensava, desenfreada irrefreável me tecendo. O verniz da civilidade. Mas vontade era a de espatifar tudo, louca, desvairada, intensa. Sei que a regra da questão era despejar ao menos algumas palavras diárias, para que a relação que definhando já andava não minguasse de vez. Olha os meus olhos e diz do universo aí dentro. Escuro? Louco? Desvairado? Intenso? Em que preciso ponto, João, eu olhei para você e pensei, sem culpa: o prazer de me dar a outros homens. Quantos e de que variadas maneiras fossem eles. A outros homens. E fui. E não foram poucos os cheiros, os toques de barbas, os torques de músculos e gostos e melaços entre as pernas, na barriga, flexões, gosto de vinho na boca arreganhada da manhã. Noites tumultuadas. Fala alguma coisa, não fica aí sentado pasmado encolhido pensativo. Faz um movimento qualquer, limpa ou me deixa limpar esse nojo dessa coisa nenhuma que somos agora nós. Lembra de mim. Eu me lembro de você, gosto de você, do jeito que só você. Mar aberto, sorriso inverso trancafiado aí dentro.

No delicado das coisas, havia os filhos com João. Amor porque sim, vísceras, sangue, tudo meu visível neles. Ódio porque me travavam os passos. Mas em seus próprios passos acabaram sumindo também, medrosos.

O choro não mais se contendo, vinha em convulsões, flacidez na integridade, não mais a força para esconder meus fracassos e ruínas para aclarar, hastear virtudes. Nem mesmo a vontade para tinturas que disfarçassem o branco acinzentado e a falta de vida nos cabelos. Nada. Das íris castanhas, a menina que eu tentava ressuscitar estava morta em meus olhos — uma coisa dura, parada, fria porque sem expressão, olhar agora tarjado por sombra névoa, ou um brilho de certa ingenuidade sonhadora, o brilho da loucura, na mensagem que todos os dias, no balanço final das horas eu decodificava como: desista. E me encontrava sempre no pior que pudesse haver de mim, cavidades profundas as do coração.

Porque o grande responsável pela derrota eu não conheço, mas juro que clandestinamente me abriram certa noite o crânio e implantaram no cérebro uma enormidade em grãos de milho a ressaltarem-me uma animalidade que antes eu só conhecera nos homens mas, agora, sigo bestial tão bicho quanto.

Não, querida, você não é a mulher mais triste e solitária do mundo, mas não vá se iludindo fácil com as coisas. Tristeza e solidão estão calcinadas cronificadas no seu corpo, são um rim, uma orelha cuja dor a gente engana e narcotiza com música e vinho. Assim seguia, coió de tudo, como uma catléia no alguidar do canto do quarto, colorindo luzindo as beiras.

Romeira, seguindo esse apostolado penoso de ser sozinha enjaulada assim, em mim, num dia bonito de nuvens de algodão suspensas quase desabando de um céu anil, eu vi tudo: era um coelho. Penugem branca, focinho e olhos vermelhos, comichão entre as patas traseiras, precisava de um parceiro. E saí úmida por aí, em busca de sêmen que me duplicasse, triplicasse ou quadruplicasse em descendência que não me renegasse, como os filhos do João. Então, aqui, Téo, ah, Téo, com que devoção, com que amor embevecido e puro ele se imobiliza para me ver, rever. Em Téo eu existo, mas só nele o meu lugar, porque, indigitada, venho lentamente me tornando um nada, uma nódoa incômoda, persistente, a mancha do passado de um, o desgosto de outro, a vergonha de meu pai, ele sim, que me deu o nome e agora quer tirá-lo, para eu enfim desistir, enfim inexistir. A coisa começou quando passei ao status de ovelha negra da família. A doida da casa, eu que sempre fora tão rígida e metódica sem que jamais suspeitassem. De mim jamais pressentiram sequer a presença real, a inconveniente, a ingrata, fora do tom, fora do diapasão da sinfonia. Foram adiante com uma exclusão no mínimo maldosa: pararam de me ouvir, de me responder, por educação, que fosse. Mas Téo ainda e sempre, minha honestidade. Ele em seus 3 aninhos, Téo o meu filho, a minha continuidade a carregar o nome que não tenho, sendo o que eu jamais seria, meus dedos cortados, minhas digitais apagadas. Minha boca, um risco quase imperceptível de tão fechada sem lábios sem expressão válida. Não há mais onde, imensa e vazia, só ar, eu caiba. Professora de português, eu era professora de português, nunca almejei um passo a mais. Sabia que meus pensamentos jamais se despregariam da testa, esse coco que tantas vezes bati na parede e agora em curto-circuito. O que eu tenho chama-se desejo. O que eu sei é que eu quero.

Chamem-me agora de planta, bicho, coisa, que nome nem eu aceito mais, o meu pai está certo. Mas chamem-no Téo, doce, rosado, total. Deus deve ser isso. Professora de português desqualificada: um dia danei a xingar a molecada impertinente, a ensiná-los as palavras mais chulas do vernáculo em suas melhores combinações. Sigo agora de mudança para o banheiro. Um fogãozinho, duas panelas, os legumes para a sopinha do Téo, as mudas de roupas, umas goiabas, a gramática, o García Lorca. Venha Téo, meu filho cujo pai não qualifico. Filho meu de nome dadivoso e não me digam que minha influência pode ser má a ele. Mãe é que o resta de mim.

Outra vez me vi totalmente leitoa no espelho, a pele rosada e redobrada em adiposidades, rombuda, o nariz de tomada, aqueles traços feios, uma mistura de doçura e crueldade na cara. Qual das duas coisas esperar exatamente de uma porca zeófaga leitoa? Emporcalhei no brejo, empenhada na noite seguinte, e então... rã eu fui me tornando, decaindo mais e mais, como se essa condição mimética nas criaturas da natureza e em minha sujeira degradante nunca mais tivesse fim. Mas desavisada, um dia fui me avermelhando-amarelando toda numa consumição doida, até me incendiar flama chama ardente fogo e então acabar, alívio, de vez.

 

 

 

 
 
 
Etílicas

 

 

1. Absinto

 

A noite se insinuava diabólica como, em verdade, todas elas terminam. Sombras líquidas alongando aquele tempo sem tempo, um campo de artemísia que se desfazia em absinto na taça de Lalo. Verde totalmente bórico.

O cenário era aquele de nuvens migratórias negras, azuis e acinzentadas sob lua que caía em cheio formando um vasto diorama ao começo, em eclipses à beira-mar. Ao redor da mesa, perdidos, extensos, Lalo, Isa, Fernando, Ives.

"Ouça! São as Gymnopédies de Erik Satie na batuta de Riri Shimada!", entrecortou o silêncio Fernando, nariz aquilino.

"Prefiro as Sarabandes, as Gnossiennes", desfez Isa, que realmente não precisava de bengalas do gênero para criar encantos ou demonstrar força bruta, sensibilidade e inteligência. Isa, boca que chispava labareda. Amargor de losna na taça onde dançava la fée verte, a fadinha verde, se equilibrando entre gelo e torrões de açúcar.   

As vagas marinhas se tornavam, pouco a pouco, verdadeiras fúrias em ressaca, ao que Fernando apartou, apontando o mar, esse infinito, apertando olhos cuja graça só mesmo os míopes:

"Vejam, o danado segue a todo pano, sem se importar com nada". O danado era um veleiro meio à deriva, balançando solto nas marés.

Isa explodiu, em gritos:

"Preste bastante atenção Ives: pra mim chegou, fim. Não quero mais, nada, nada. Tudo aqui é vago e diluído demais. Isso é loucura!".

Ives, maxilares rijos, mordeu a língua antes de vociferar o que não queria, virou a taça que não tinha nem gelo nem doçura de açúcar, taça que era só intensidade verde e, num langor etílico e inebriado que amanhã se dissiparia em sã, dolorida e ensolarada consciência, concordou, numa facada que Isa não esperava, em tom monocórdio, o melhor que encontrou:

"Pra mim está perfeito, querida".

Fernando seguia distante, em pianíssimo alheio silêncio, ali, mas não lá, como que enredado em ópio, enfim, atado às esmeraldas que tinham verdor de tília em goles. Ives livrou-se de suas roupas amarras pudores e saiu da mesa rumo ao mar. Lalo segurou a mão de Isa:

"Você desconhece, Isa, o quanto de menta e anis há nessa sua presença, nessa sua boca, meu anjo gauche. Você é um total desfazimento de composturas e, justamente por isso, eu te amo, você sabe".

 "Vago e diluído demais, Lalo", insistiu ela. "Preciso de chão, quero hora, quero dia, alguma linha, um rumo qualquer. Loucura, loucura".

Lalo fixou o olhar em sua boca e. E. Porque ia perguntar a ela o que não era afinal loucura nessa vida. Mas preferiu calar-se. Queria tanto mas tanto Isa, a mulher que pedia o que ele, o que ninguém poderia dar nunca.

"Beba", foi o que soube dizer, continuando ali no parado, no nada, olhando o fosso escuro que era a expressão de Isa, meia-noite.

Desolada, uma menina deserdada, avulsa, longe de casa, mendiga, ela perguntou:

"Por que tudo nos conduziu a este momento, a esta mesa? Tudo partilhado: as vieiras, a rúcula, as juras de amor. Tudo comunitário, tudo obviamente perecível. Em que preciso instante as coisas começaram a desandar? Como, raios, viemos parar nesse buraco, nesse beco sem saída, doentes, abjetos, mesquinhos?".

Aconteceu então que Fernando e Ives — tédio, preguiça, lassidão, vagar — não mais existiam ali.

"O problema é esse: isso que está em mim e que só se inteira, só se completa no outro, esse que não sei, que não acho e que talvez não exista. E  quando o suspeito, torno-me lança, farpa, espinho, aço, oco. Falo banalidades, flerto com abismos, não dou pausa para o respiro. Quero muito, quero tudo, o total, o fruto, a lama, o osso, o tapa na cara de quem se esconde e é descoberto. Alguém suporta? Será que o mundo precisa de mais alguém dizendo que ao final, a luta insana é travada à sós, de mim para mim mesma?".

Ives, no mar, já se tornara passado, no espaço de um quarto de hora. Tênue lembrança de um romance que não ia.

"Você eu não defino, Isa, e não quero traduzi-la".

Foda-se tudo. Isa andava repleta de si e nem contabilizava mais o total do que queria. O absinto misturado com champanhe, em nuvens esbranquiçadas.

"Vem cá, Lalo, me dá um abraço".

E ele veio, braços indecisos, timidamente ávidos por baixo de algum véu invisível que era medo a tentar desmagnetizá-los e convencê-los de que, na lógica das coisas, não, náufragos que eram. Ou que sim, irisados, encharcados de absinto, endiabrados, por que não?

 

 

 

2. Vodka

 

Quanto a mim, continuo. Pouquíssimo constante e, se for por aí, pelas retas de uma constância inexistente, então não, não continuo. Há muito deixei de ser aquele que você conheceu. Não continuo no seguinte: acabaram-se aqueles meus dramas que se tornavam tão escancarados, por exemplo. Mas os dramas, não, eles não se foram. Só não são tão lamuriados como antes. Hoje, dois ou três, se tanto, sabem realmente de mim. Isto é, somente aquilo que desejo que saibam, claro. Nisso, sou matemático.

Secreto? Não, em nada sou secreto. Aliás, ninguém é. Tudo está posto e transparecido por sinais. Vê, quem souber decodificá-los. Mas continuo. Acho que um pouco mais intenso, acho que sem pressa. Não, não me venha com as velhas armadilhas passadistas. Não me pegam mais e a você me parece ridículo tentar armá-las assim tão ostensivamente, ainda que nessa sua sutileza, sob os meus pés. Tanto tempo já passado. Sou quase que inteiramente outro e você, óbvio, você também. Não é possível que estancou e continua aquela menina de perversidades adoráveis, de doçuras abomináveis, leviana e topetuda peitando o mundo. Não dá mais. Passou.

Ok. Continuo mirando o abismo, um flerte em si, ora avançando, ora recuando, mais cauteloso, um bocado medroso, procurando antes terra firme para onde eu possa voltar vivo e seguro. É incrível como corpo e coração vão sendo sentidos de um modo diferente na ligeireza aparentemente  inerte do tempo. Você vê que aos poucos fui me tornando pesadão, macilento, quase escatológico, cada vez mais bicho. Umas refinações de contraponto, mas bicho. Agora selvagem. Não douro a pílula. E você, também enxergo claramente. Essa fome estampada, voraz, na tua cara. Isso é ancestral, inversamente proporcional. Cresce a fome conforme as porradas, e vai se alargando nas frustrações.

Casado. É. Até dois anos atrás. Quando acabou eu me perguntei se havia realmente acontecido alguma coisa. Se ela havia nalgum momento estado aqui.  Não valeu. Não foi de verdade. A gente vai aprendendo de um modo que até me assusta, a suavizar os trancos. E não é cara de pau. Cancha, talvez?

Continuo em movimento. De vez em quando pauso, noutras saio feito doido por aí procurando, querendo, desejando. As coisas se repetem demais, exaustivamente, não dá para ficar igual no vaivém dessas ondas. Não quero mesmo. Há muito descobri a falência na constância. Constante, só o infinito, que é dinâmico. Continuo aqui, ali, em lugar nenhum.

O que eu trago e ainda guardo em mim daquela época? Vejamos. Nem o sorriso? Ah, sim. A vontade do novo, pode ser? Não? Lealdade? Pensando bem, não sei descrever o tipo de lealdade que mantemos depois de certa idade. Alguns princípios sim, pode ser, mas a lealdade, aquela de guerra, das antigas turmas de infância, adolescência, faculdade, não, né? Convenhamos. Cínico? E me tornei cínico agora? Se eu responder, em clichê: "assim sou, se lhe pareço", soarei mais cínico ainda. Pulemos essa. Garçom, uma wiborowa, please. Gosto. Gosto mesmo dessa fluidez acetinada, resistente ao congelamento, essa coisa transparente algo oleosa da vodka. Gosto sim, sou assim? Se deu certo o meu projeto? De vida? Como eu disse, continuo.

 
 
(imagens ©vanessa maranha)
 

 

 

Vanessa Maranha (São Caetano do Sul-SP, 1972). Jornalista cultural, psicóloga, vive em Franca-SP. Participou de 3 antologias locais de contos. Publicou, em 2003, o livro Cadernos vermelhos, numa edição pequena, sob patrocínio do jornal onde presta serviços free-lance. Viveu na Europa, participou de cursos relativos à escrita criativa. Verificou que é impossível aprender em curso o dito creative writing. Foi finalista no "Prêmio Guimarães Rosa da Radio France Internationale em 2001", e classificada em primeiro lugar no concurso de contos "Realismo Fantástico Locos de Atar", na Argentina, em 1999. Em julho de 2004, venceu concurso de contos da Universidade Federal de São João Del Rei-MG e, em 2005, teve texto publicado no livro +30 mulheres que fazem a nova literatura brasileira, organizado por Luiz Ruffato e editado pela Record.