Partículas & parâmetros da investigação particular

 

Como é próprio das Sextas-Feiras Santas, hoje

os cinemas irão amanhecer de mau humor: milhares

de adolescentes passaram a noite com os olhos grudados

 

na tela branca, ponto de encontro de todos os desejos.

Tudo é falso, tudo é cafona e azul. Não há

mais sangue nos hospitais e os museus aboliram

 

as bobagens e os absurdos do século vinte.

Como é próprio das Sextas-Feiras Santas, hoje

milhares de facínoras (os adolescentes de óculos escuros)

 

peregrinarão ao meio-dia, em louvor ao ópio, ao sexo

e às armas. Tudo é anseio, tudo é amarelo e perfumado.

As mensagens que você me enviou ainda estão aqui,

 

todas as trinta, fechadas e ansiosas. Não levei o cão

pra passear nem deixei que dormisse em nossa cama.

Não telefone, não interfone. Vá para a chácara.

 

Como é próprio das Sextas-Feiras Santas, hoje

tirarei o dia para os crimes de grande importância,

os meus e os seus, redondos e pegajosos.

 

 

 

 

 

 

Festa

 

Não sei ao certo. Pode ter sido em Havana. Ou em Lisboa.

A taça de vinho passou bem debaixo do meu nariz

mesmo assim não entendi a piada (o chinês na bolsa de valores)

que o cônsul com papadas de hipopótamo

contou pela terceira vez. Não entendi. Simplesmente não entendi.

Todos riram por educação?

Soluçaram de tanto rir, engasgaram de tanto rir.

Fizeram da festa tremor de terra, de tanto rir.

Eu, por obrigação, também participei desse riso rasante.

Talvez não fosse a mesma piada repetida pela terceira vez.

Talvez o problema fosse a minha péssima memória

para infelizes finais orientais com pitadas de mercado financeiro.

Pode ter sido em Xangai. Não sei ao certo.

Minha memória sempre me faz passar vergonha

na frente de chineses e hipopótamos.

 

 

 

Dissertação acadêmica

 

curumim encantando o colibri embaixo da castanheira

encantamento redondo e vermelho

curumim inquieto colibri sonolento castanheira equilibrada

 

cunhatã seduzindo o lambari perto da cachoeira

sedução pontiaguda e amarela

cunhatã atrevida lambari sinuoso cachoeira espumante

 

pajé perguntando à jibóia aonde foi a lua cheia

pergunta triangular e acobreada

pajé poliglota jibóia enjoada lua cheia jovial

 

curumim perguntando à cunhatã aonde foi o pajé

colibri seduzindo o lambari embaixo da jibóia

castanheira encantando a cachoeira perto da lua cheia

 

sedução redonda e vermelha, jovial

encantamento triangular e acobreado, espumante

pergunta pontiaguda e amarela, equilibrada

 

pajé espumante lambari equilibrado castanheira jovial

jibóia sinuosa cachoeira sonolenta curumim poliglota

lua cheia atrevida cunhatã enjoada colibri inquieto

 

curumim encantando o colibri embaixo da castanheira

todas as tardes o oroboro sonha com a bibliografia

as notas de rodapé e o aplauso da banca examinadora

 

 

 

 

 

Fenômenos anônimos

 

Da praia vejo o farol, o ancoradouro

e o grupo de cientistas japoneses realizando testes

medindo a velocidade do vento, a temperatura da água

tentando determinar o intervalo possível

entre o horror e o riso.

Agachado, esmago a carapaça do primeiro caranguejo

que tenta se aproximar ensaiando passos de xaxado:

"Sai fora, assanhado".

Outros trinta caranguejos saem sambando da areia

sacudindo as patas e as pinças carnavalescas.

Aí está o intervalo possível entre o horror e o riso.

Pulo, abano os braços, grito aos japoneses

(não me vêem, não me ouvem, olá, eeei!)

enquanto a areia e os crustáceos escorrem para longe

com o resto da tarde e da ironia.

O Terceiro Mundo não existe, só a solidão é real

tudo, em toda parte, precisa ser inventado

para os sábios do Oriente.

 

 

 

 

 

 

Revoada de aves raras

 

         Poetas…

No saguão do auditório, auditorias mil.

"Pessanha ultrapassou Pessoa!", apressa-se

o professor de rima e refrão. Ovação.

"Pode apostar que sim!", professa seu confessor.

"Deixem de palhaçada, espantalhos!"

assoam e ressoam os pernetas de meia preta.

Está iniciada a peleja, a enésima do dia.

         Poetas…

De perto são todos meio baixos

meio vesgos, meio surdos, meio gagos

meio fanhos, meio tortos, meio verdes

meio tolos, meio sujos, meio mortos.

         Ah, os poetas…

De perto falam todos ao mesmo tempo

a mesma melancólica, morna, manca

mínima língua de lesma: idioma de idiotas.

Enquanto a contista, toda prosa

arranca uivos da platéia, fazendo pose

ao pé da escada, com as muito abertas pernas

no poster da Playboy.

 

 

 

 

 

 

Proverbial impulso

 

Na tarde em que De Grão em Grão confessou que tem

o menor pau do mundo, Nem Tudo que Reluz sorriu

cinicamente, Cão que Ladra avisou que só gosta de traveco

e Quem com Ferro Fere revelou que ainda é cabaço.

 

Quem Ama o Feio logo exigiu: "Eu prefiro por trás",

Mais Vale um Pássaro na Mão mostrou que chupa legal,

Casa de Ferreiro contou que nunca gozou e Para Bom

Entendedor exibiu as marcas de cigarro no braço.

 

Nessa tarde, enquanto Comer e Coçar mostrava as fotos

de sua mãe pelada e Quem Tudo Quer relembrava as trepadas

no jardim zoológico, Quem Planta Vento chorou muito,

 

Deus Ajuda declamou sonetos licenciosos, Roupa Suja

distribuiu as camisinhas e Pau que Nasce Torto, antes de apagar

a luz, disse que só goza se enfiarem dois dedos no seu cu.

 

 

 

[Do livro Teto no piso. São Paulo: Catatau Editora, 2006]

 

 

 

 

(imagens  ©picabia)

 

 

 

 

Valério Oliveira nasceu em 1958, no Rio, durante a Copa da Suécia. Poeta e vagabundo globalizado, já morou em Los Angeles, Buenos Aires, Madri, Milão, Lisboa e no Porto. Mas jamais esqueceu os Arcos da Lapa. Gosta de felinos, de Modigliani e de Itamar Assumpção. Atualmente, mora em São Paulo e ganha a vida como garçom num restaurante de comida italiana.

 

É autor dos livros Teto no piso (São Paulo: Catatau Editora, 2006); Dez folhas de outra relva, plaqueta (São Paulo: Edição do autor, 2005); Sobras do subsolo (São Paulo: Catatau Editora, 2004); Oh! (São Paulo: Catatau Editora, 2003, 2ª edição), (Rio de Janeiro: Edição do autor, 1989, 1ª edição); Mínimo eu (São Paulo: Catatau Editora, 2002). Escreveu as orelhas de A Timidez do monstro, de Paulo Scott (Rio de Janeiro: Objetiva, 2006). Tem trabalhos publicados  na Folha de S. Paulo,  Rascunho, Suplemento Literário de Minas Gerais, Coyote, Babel, Et Cetera, Vox e ZineQuaNon. Na internet, encontramos seus poemas em Cronópios, Revista Zunái, e Bestiário. Resenharam seus livros: Antonio Mariano (Jornal União, João Pessoa-RN);  Catharina Epprecht, (Jornal do Brasil- RJ); Adrienne Myrtes (Capitu, Web).  O que disseram sobre ele: veja aqui.