........Mãozinhas
postas. Amareladas como cera. Estavam lá, entre as velas acesas
do quarto de reza. Pretas e ondulantes, as sombras vesgas de minhas
mãos pequenas vertiam feito lama. Lavas inquietas, foscas.
Tremiam na tinta verde dos caroços das paredes. No quarto de
reza da casa de minha madrinha.
........As
vozes postas. Como as mãos. Os olhos presos na figura de um
homem que puxava a oração. O padre. O corvo. Jovem sério,
mergulhado numa túnica escura e sombria que o escondia.
........A
túnica que me aguçava os sentidos de menina: o que dentro
daquela mortalha havia? o corpo do padre... ai, como aquele corpo
seria?
........No
quarto verde e ondulante, repleto de velas que enviesavam meus sentidos,
como vela acesa eu pecava, pegava fogo, ardia, me consumia. Pois era
o padre o único homem que na vida eu via.
........As
ave-marias, os padre-nossos, os creio-em-deus-pai, as salve-rainhas
prosseguiam em sua rotina cíclica. A cadência de vozes
desencontradas, que repetiam, repetiam e repetiam a mesma lengalenga
do rosário, que me embriagava, me entorpecia, misturando-se
ao meu sonho em carne viva.
........Pois
naquele recinto santo eu comia o padre. Na frente de todas as fiéis,
na frente de minha madrinha, de minha mãe, de minhas tias.
No quarto de reza, eu dava a mordida proibida, na hóstia, na
carne, no padre. Adivinhando os mistérios do corpo de um macho.
E me regalando com a mais pura e safada imaginação de
menina.
........E
eu era pequena. Doze anos eu teria? Talvez. Bem franzina. Rezando
e pecando, rezando e pecando, rezando e pecando a um só tempo.
Em aflição, como uma santinha, lançava-me ao
martírio de sofrer aquela tentação dolorida.
E sofria. Era meu gozo, minha perdição, meu deserto,
meu demônio, minha doce salvação lasciva.
........O
ouvido zunia, enquanto eu apertava as pernas, me espremia. O osso
de uma perna na carne fresca da outra quase feria. Olhando o padre
e esperando o seu olhar de perdão manso, como uma pata macia,
atrevida. Eram os olhos dele que eu esperava, porque com os olhos
ao mesmo tempo que ele me perdoava me despia. Um centauro, um ser
dividido: meio homem, meio emissário divino. O Bem e o Mal
num só olhar. O anjo da redenção e o decaído.
........O
olhar úmido e másculo que eu recebia era o ponto final,
eu sabia. A reza terminava ali. As vozes voltavam às gargantas,
os véus e mantas aos baús de naftalina. E o meu desejo
voltava para mim, suspenso, à deriva, fazendo doer os lábios
da vagina túmida.
........Uma
vez por semana, duas horas apenas, divinas: essa era a minha vida.
Os outros dias eu passava lenta e rabugenta, entre perfumes, leques,
babados e gritos agudos de mulheres.
........É
certo que havia também alguns meninos na casa em que eu vivia.
Mas eram pequenos, imberbes, tolos, sem o cheiro ardido do sovaco
do padre, que de longe eu farejava. E tanto queria.
........Mas
não era só o cheiro do sovaco que me atraía.
Era também o hálito. Encorpado. Feroz. Salgado. Eram
as mãos enormes. As veias azuis saltando, segurando o terço,
o livro sagrado, a água benta aspergindo.
........Eram
os pêlos das mãos que seguiam para os braços.
E era, além de tudo, o que eu não via do padre. O que
a roupa grossa encobria. O que nele havia de mais secreto, perigoso
e querido: o peito, a barriga, as pernas, e entre as pernas, ai, meu
Deus, como seria? Mistério maior que a trindade santíssima,
que a concepção virginal de Maria, que a ressurreição
da carne, que a morte, amém, que a vida.
***
........Naquela
tarde, me preparei para a oração de padre Jonas com
atenção especial. Como se adivinhasse que algo de anormal
aconteceria.
........A
roupa impecavelmente branca, como as vestes das noivas, dos anjos
dos eremitas. Os sapatos de verniz, brilhantes, com laços de
fita azul. O perfume de alfazema exageradamente espalhado pelo corpo.
Os cabelos soltos, lavados e penteados, fio por fio. Eu estava pronta
para recebê-lo. Para dizer o sim, se ele me quisesse. Para dar
e receber. Sem ao menos saber o que daria ou receberia.
........O
padre chegou suando muito. O calor insuportável daqueles dias
de verão nordestino cansava, adensava nossas faces, envelhecia.
Por isso, ele estava mais soturno, mais suado, mais salgado. E deliciosamente
fedia.
........Beijei
a mão do padre, com tamanho fervor que de leve lhe toquei com
a língua. Degustei secretamente o sal de sua carne. Desejei
dar-lhe uma mordida.
........Depois,
enquanto começava a prece, de olhos fechados, aspirei o fedor
dos humores quentes e azedos de padre Jonas. Desesperadamente, eu
desejei o padre mais do que qualquer menina poderia.
........Até
a última gota, até a última conta do terço
que eu seguia, eu persegui seu cheiro. E esperei seus olhos. Mas naquele
dia, o olhar final do padre, que sempre arrematava o nó da
minha agonia, ao contrário, determinou uma hecatombe que eu
desconhecia.
........Assim
que o padre lançou os olhos sobre os meus, algo explodiu do
ponto central que as minhas pernas espremiam. A explosão me
tomou, como um susto, uma revelação. Meu corpo, meus
órgãos e meus líquidos foram sacudidos violentamente,
pulsando pela primeira vez, como o coração de um ser
recém concebido. Eu fechei os olhos para sentir melhor a vertigem,
as pernas bambearam, e eu caí no chão. Vermelha, tremendo,
gemendo. O coração acelerou, a vida subiu e por mim
se espalhou. Eu estava vivendo plenamente a minha paixão.
........Assustados,
todos me acudiram. E foi aí que o inesperado aconteceu: padre
Jonas colocou-me em seus braços e me levou até minha
cama. E não me lembro de mais nada. Perdi os sentidos.
***
........Alguns
minutos depois, acordei procurando o padre. Ele já tinha ido
embora. E minha mãe explicou que eu tinha chegado a um raro
estado de iluminação, que só pessoas de muita
fé alcançam.
........Eu
tinha tido a comoção sagrada que revela a verdadeira
vocação para a pureza e para a santidade: aquilo tinha
sido uma epifania.
........Degustei
a delicada palavra, abrindo bem a boca e estalando a língua:
"E-PI-FA-NI-A"...
........E
foi assim que entendi que eu era uma santa e que padre Jonas era um
anjo. O anjo da revelação da minha primeira epifania.
........Pois,
a partir dali eu teria muitas. Eu teria muitas.