©david levine
 
 
 
 
 
 

 

 

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"Que é a memória senão a cinza que abafa nosso fogo quando ele começa a apagar-se?".

Aleel, A Condessa Cathleen,

Segunda Cena

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Em 1889 é publicada As Peregrinações de Oisin, primeira obra poética do então jovem autor William Butler Yeats. Trata-se de um poema narrativo cujo protagonista homônimo visita três ilhas encantadas, onde passa pelas experiências do amor, da batalha e do repouso — consideradas, respectivamente, como a concretização das três etapas de seus ideais de amante, guerreiro e pensador. No entanto, não pode ignorar e esquecer sua terra de origem, a Irlanda, como a imaginação não pode deixar de buscar seus motivos em dados do real. Há aqui um jogo entre o mundo onírico da fantasia e a base histórica e concreta que lhe dá fundamento; um não existe sem o outro, e, para confirmar essa hipótese levantada pelo leitor, Oisin retorna. Mas, sem que houvesse percebido, passaram-se três séculos: seus amigos estão mortos e o país se tornara cristão. Surpreso, desalentado, de súbito sente todo o peso da idade e falece. São Patrício tenta salvá-lo, convertendo-o ao cristianismo. Mas ele, por fidelidade à herança céltica, o recusa.

Não vou entrar nos meandros do confronto entre paganismo e cristianismo que esse breve relato nos suscita e que está no coração da poesia e do pensamento de Yeats, o que seria um trabalho de amplo fôlego. Porém, por outro lado, ao abordar sua obra, tais temas são inescapáveis. Essa história é interessante porque nela vemos a busca de um ideal e, dada a sua impossibilidade e em virtude dela, a conseqüente morte do protagonista. Justamente o contrário do que ocorre na peça A Condessa Cathleen, onde a condessa, para salvar a vida de seu povo, não zela pelos valores cristãos legados pela tradição, e entrega sua alma aos mercadores do diabo. A história de Oisin é a de um homem que sacrifica sua vida real em favor de uma idealização e da memória de seu povo — há nisso implícita a tese de que um e outro, memória e satisfação, são uma coisa só. Cathleen, por sua vez, age também em benefício de seu povo, mas dissocia os termos da equação: para que ela possa restituir à nação as condições de sobrevivência é necessário que faça um pacto demoníaco, e esse pacto consiste numa renúncia aos valores cristãos que lhe foram legados. A sugestão dessa confluência nos é curiosamente dada pelo próprio Yeats quando, em The Circus Animals Desertion, poema incluído em Last Poems, livro que abrange o período de 1936 a 1939, comenta ambas as obras:

 

What can I but enumerate old themes?

First that sea-rider Oisin led by the nose

Through three enchanted islands, allegorical dreams,

Vain gaiety, vain battle, vain repose,

Themes of embittered heart, or so it seems,

That might adorn old songs or courtly shows.

 

E na estrofe seguinte complementa:

 

And then a counter-truth filled out its play,

The Countess Cathleen was the name I gave it.

 

Percebemos então que na A Condessa Cathleen se articula uma relação intrincada entre as necessidades prementes da atualidade e as memórias coletiva e individual, e nisso basicamente reside a sua contraverdade. É como se ela nos pusesse num impasse, onde tivéssemos que optar entre manter os valores da tradição, ligados às ordens institucionais da religião e da política, ou sanar as faltas básicas e imediatas da realidade, que são o fundamento, a matriz dessas mesmas instituições. Essa dialética pode ser notada, e talvez possamos dizer que ela espelha o itinerário artístico de Yeats. Ele se concentra na tensão existente entre seu trabalho de folclorista, ou seja, seu interesse pelo passado remoto da Irlanda, que o levou a inventariar um corpus considerável de mitos celtas e pré-cristãos, e sua postura como escritor, poeta e polemista, que dialoga com as tendências estéticas e segue as suas transformações temporais. Ninguém esteve tão atrelado à tradição, e, no entanto, tão suscetível a mudanças quanto Yeats; que eu saiba, nenhum poeta de expressão inglesa teve sua obra tão transformada no decorrer do tempo quanto a dele, a ponto de Ezra Pound, o paladino dos vanguardistas, considerá-lo, a ele, que era de uma geração anterior à sua, não só o maior poeta de língua inglesa vivo, mas tratá-lo mesmo como a um igual no que tange a interesses concernentes a arte.

A dualidade fundamental da peça de Yeats está no misto de paganismo e cristianismo que ela nos mostra. A região onde sua ação se passa padece de uma fome generalizada, e a miséria grassa em toda parte. Esses problemas econômicos acentuam a imaginação do povo, e criam a situação propícia para que as superstições se apropriem da mente dos personagens. Ouvimos da boca de um rapazinho filho de pais camponeses:

 

Teigue — Dizem que, agora, com a fome que há na região, as sepulturas estão andando.

 

Tal fala desencadeia uma conversa com seus pais onde estes narram acontecimentos hipotéticos, como a aparição de homens com orelhas de morcego e de outros sem boca ou olhos. A partir desse preâmbulo onde, vitimados pela escassez, fantasia e realidade se confundem, os personagens já nos sugerem um limite tênue entre a fantasia e a realidade, o que pode muito bem ser entendido como recurso ficcional para prender o espectador (ou o leitor), e, a todo momento, forçá-lo a refletir e a se colocar no universo mental compartilhado por eles. É desse ponto de vista que devemos entender a aparição dos serviçais diabólicos, disfarçados de Mercadores. Eles oferecerão, primeiro à família de Teigue, depois a toda a população, uma proposta "comercial": estão dispostos a trocar suas respectivas almas pelo quilate em ouro que acaso elas valham.

Diria que esse é o tema central, o leitmotiv da obra: o pacto demoníaco. Mas, diferente do sentido que a tradição, na maioria dos casos, deu a esse argumento, Yeats o emprega e o focaliza sob um aspecto novo. Se tomarmos o pacto do Fausto de Goethe, obra clássica inspirada no mito do homem que vende sua alma ao diabo, e que serviu posteriormente de base para outros faustos como os de Paul Valéry e de Fernando Pessoa, bem como de tema à pintura, escultura, música e outras artes, veremos claramente como ambas se distinguem. No Fausto, o pacto demoníaco é selado tendo em vista a aquisição do conhecimento:

 

FAUSTO

 

Não julgo algo saber direito,

Que leve aos homens uma luz que seja

Edificante ou benfazeja.

Nem de ouro e bens sou possuidor,

Ou de terreal fama e esplendor;

Um cão assim não viveria!

Por isso entrego-me à magia,

A ver se o espiritual império

Pode entreabrir-me algum mistério,

Que eu já não deva, oco e sonoro,

Ensinar a outrem o que ignoro.

 

Depois de estudar a fundo todas as ciências, e ainda assim não satisfeito, Fausto irá, pelo consórcio com Mefistófeles, buscar a sabedoria na magia e no sobrenatural fornecido pelas forças demoníacas, e por meio delas tentar suprir o que o conhecimento regrado, natural e institucionalizado do mundo não pôde lhe dar. Como Cathleen na peça de Yeats, essa ligação é por fim rompida, pois se tratava de dois espíritos que visavam praticar o bem por intermédio do compromisso diabólico, e são, portanto, conseqüentemente absolvidos: a alma da condessa é admitida na alta cúpula celeste na cena final, bem como Fausto é ungido pelo Chorus Misticus que louva o Eterno Feminino, força elementar da natureza, e tudo o que nela é limitação, contingência e erro, atributos aos quais Fausto havia se atrelado para superar sua visão restrita do mundo. Mas ao contrário da obra do dramaturgo alemão, na A Condessa Cathleen o pacto não é motivado por uma razão ideal ou idealizada, mas pela estrita necessidade de sobrevivência. Vemos o confronto de crenças religiosas que, ante a pressão dos fatos e a falta de bens primários, acabam por ruir, como na fala:

 

Shemus — Há algo que todo o homem traz consigo e a que dava tanta importância como a um pouco de brisa, e que agora passou a ser mercadoria vendável!

 

Ou em outra invectiva de Shemus:

 

Que importa! Prefiro entregar-me a mãos que podem pagar dinheiro do que a mãos que só nos deram a fome.

 

O choque dos valores antigos com as premências diárias pesa a favor destas, e mostra o profundo descompasso que há entre as instituições religiosas e políticas e a vida real das pessoas a elas ligadas; o cerne da peça, a venda das almas, nos aponta esse desequilíbrio, quando instrumentos de mediação social fracassam, resta o apelo à criação efetiva de um contrato com as potências infernais. Em outro momento, o desvio da norma fornecida pela tradição é justificado com elementos extraídos dela própria. É o caso dos argumentos que Cathleen usa para justificar um furto ocorrido na sua propriedade:

 

Cathleen — Um douto teólogo assentou que quem está passando fome pode tomar o que lhe é necessário, e continuar sem pecado.

 

E que fosse pecado, desde que a fé esteja intacta, Deus não pode deixar de perdoar. Não há alma diferente de todas as outras do mundo, ou que esteja estranha ao amor de Deus, que é infinito, e, portanto, nenhuma, nem mesmo a mais perversa, pode perder-se irreparavelmente.

 

Mesmo estando em uma aldeia subjugada pelo ímpeto infernal, ela expressa que, diante da consciência de Deus, que é ilimitada, esses incidentes não fazem diferença, o que leva os leitores ou espectadores a repensar seus critérios morais e éticos, um dos motivos pelos quais a peça foi objeto de tanta crítica e polêmica quando de sua apresentação no Teatro da Abadia em Dublin, a 1899. Vemos uma inversão de valores semelhante quando o Primeiro Mercador diz:

 

Vamos, continuemos o negócio. É só por caridade que compramos essas almas; mil pecados já as tinham tornado propriedade de nosso Amo muito antes de chegarmos aqui.

 

Ao esmiuçar a grande quantidade de pecados que cada alma apresentava segundo seu livro secreto, o mercador do diabo nos induz a pensar que tudo na verdade não passa de uma grande farsa. É como se Yeats quisesse apenas nos pôr em contato com a abjeção e a grande hipocrisia da cidadela, mostrando o drama de pessoas que abdicam do éthos cristão sem nunca tê-lo efetivamente cumprido.

Em termos gerais, A Condessa Cathleen gira em torno de um núcleo temático que consiste no jogo entre a perda e a manutenção da memória, ou seja, da história. Poderíamos até dizer que questiona a sua validade para a vida, se não em termos nietzscheanos, em um sentido bastante próximo. Por isso, a recorrência de mitos pagãos por suas páginas não é gratuita ou ornamental; revela sim a presença desse substrato da cultura entre os habitantes do condado. Yeats manipula esses elementos, delibera a partir deles e centraliza seu foco na unio mystica às avessas das almas com as divindades ínferas. Onde o mundo ideal termina, onde falham as instâncias que permeiam a vida espiritual e social, cria-se a condição favorável para que as entidades infernais emirjam do limbo e venham abalar a aparente estabilidade da rotina, trazendo à tona a contraverdade de que A Condessa Cathleen é portadora. Ela nos diz que a memória, tal como o pharmakon platônico, é a um só tempo remédio e veneno. Lega-nos a autenticidade de uma tradição que fora enterrada pelo mito de Cristo, mas, ao fazê-lo, mostra a própria falsidade de sua motivação interna. Mais que isso: a hipocrisia que valida a devoção ao próprio mito, seja ele cristão ou pagão. No fundo, o que é o lado terrível da mensagem de Yeats, é como se os únicos seres ilesos nesse espetáculo de mentira fossem os mensageiros demoníacos que chegam e partem, elegantes e discretos, em suas vestes de mercadores, depois de ter comprado simbolicamente a mercadoria espiritual que já lhes pertencia desde a eternidade.

 

 

 

 

 

julho, 2006
 
 
 
 
Rodrigo Petronio é escritor. Autor dos livros História Natural (poemas, 2000), Transversal do Tempo (ensaios, 2002) e Assinatura do Sol (poemas, 2005), este último publicado em Portugal. Lançou, em 2005, o livro de poemas Pedra de Luz, pela editora A Girafa, finalista do Prêmio Jabuti 2006.
 
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