©cory docken
 
 
 
 

 


 

O quê se há de dizer sobre o teatro, ou sobre a arte de interpretar senão aceitar, apenas, de que tudo isso é uma determinação da existência, de que no momento em que aqui desembarcamos fomos renegados de todo o resto e exilados no teatro? Sim, é através do exílio na arte que o ator consegue viver. Num exílio pela forma teatral, não pelo conteúdo (não vou discutir aqui de onde vem esse conteúdo, se da vida ou do próprio ator, a origem não me interessa) é que o cotidiano se torna extraordinário, que os pequenos atos se transformam em cavalos esvoaçantes ao entardecer... Uma metáfora assim mesmo, bela, confusa, irreal e possível.

 

O teatro nos coloca em frente ao espelho. O processo de criação possui um caminho análogo a dialética hegeliana. O começar, o perder-se e o configurar são quase como a tese, a antítese e a síntese. E tudo de novo, e tudo de novo e tudo de novo. Sempre. Como quando nos colocamos frente ao espelho, que mesmo sem ter certeza do que se vai ver, já sabemos qual será a imagem construída. E tornamos a nos colocar de novo, pra conferir que existimos e perceber as mudanças dadas pelo dia a dia — ou a desejá-las, sim, nem que seja algum sinal de envelhecimento, pelo menos de envelhecimento. E pensamos muito sobre nós mesmos. E nos expomos pra nós mesmos. E fazemos caretas e rimos, mostramos os dentes e reviramos os olhos e vemos cada falha do cabelo e da pele. E sofremos por isso e depois nos deliciamos. Nos deliciamos no teatro/espelho que traz uma certeza de estar vivo (quem foi mesmo que teve que colocar os pés pra fora da janela para ter certeza de que poderia ainda sentir e assim saber que ainda vivia?) de perceber o próprio movimento, de sentir a estranheza da luz e subseqüente da escuridão, das linhas retas que às vezes se quebram pelos espaços negros desenhados por traços tão incertos... Tão incertos quanto o bater forte do coração no momento em que se percebe que se está criando. Esse é o início. E o desenrolar incessante desse impulso, que te cobra e coloca o ritmo, que te possui gira de caboclo, onde se passa mal e tudo escurece e você já nem sente mais, roda sobre seus pés firmemente há tanto tempo que perde a noção do tempo mas seus pés, esquisito, resistem a todo esse tempo  agora infinito. E o escuro já não incomoda e a própria gira também não incomoda e de repente seu corpo, exausto, entrega-se com a certeza que alguém que você não sabe quem nem aonde vai te amparar. E simplesmente entrega-se, exausto da gira da criação. E respira, senta e bebe água, sentindo que cumpriu sua ordem, sua determinação e sentença da existência. O exílio. O exílio da forma.

 

O ator é aquele que presta tanta atenção ao outro, mas tanta atenção que quando retorna para si, já que o suporte da sua obra é ele mesmo, só consegue falar tão profundamente de si que alcança a mesma profundidade do outro. E daquele outro, e acolá, e etc. Quando descemos corajosamente dentro de nós encontramos o terceiro que nos fundamenta, e que fundamenta o outro também. E é nesse momento que a arte de interpretar acontece. Isso é uma das suas mais belas características, ela realmente acontece. Só.

 

Por isso acontece de nascermos atores, determinados por um jogo lançado a mercê da lei da gravidade, do acaso do movimento do nascer e da música que tocava na hora do parto. Gravidade essa que nos acompanha até o fim, desenho esse que cobra sua exposição coletiva, pedindo e exigindo da platéia para terminar seus traços, música que ressoa na cabeça e da cappo arranja dentro da barriga.

 

A nossa tela exige desprendimento para existir. Somente sendo amaldiçoado pela imaginação, que cobra sua possibilidade de ser, inspiramos a originalidade da forma teatral, que é a mesma desde sempre. Círculo eterno do começar, perder e configurar. Círculo eterno de ver, fazer e viver a arte. A gira dos atores.

 

 

 

agosto, 2006
 
 
 
 
Ana Gusmão nasceu e mora em Belo Horizonte, MG. Atriz há 14 anos, produtora, diretora de arte, jornalista e cientista social.