Quando as cortinas do Teatro Municipal do Rio de Janeiro se abriram, no dia 2 de abril de 1987, o público carioca viu uma encenação insólita da ópera O Navio Fantasma, de Richard Wagner. Isso porque a direção do espetáculo foi do anglo-brasileiro Gerald Thomas, conhecido por suas montagens revolucionárias. Considerado o "enfant terrible" do teatro brasileiro, Gerald era à época amado e odiado pela ousadia de suas montagens como Quartett, Quatro Vezes Beckett, Carmem com Filtro, Electra Com Creta, onde juntava com maestria, minimalismo, dadaísmo, a mitologia grega, os arquétipos junguianos, Marcel Duchamp e outras estrelas da vanguarda artística mundial. Um diretor pós-tudo, Gerald Thomas fazia (ainda faz) nas suas montagens, a síntese da cultura ocidental judaico-cristã. E por falar nisso, a sua concepção deste Navio Fantasma começava com a ação transportada para o presente, 1987, e o cenário era a famosa Documenta de Kassel — Exposição de Arte Moderna que acontece de cinco em cinco anos, no Museu Documenta, na cidade de Kassel, Alemanha.

 

 

Estilo neoclássico

 

Para dar o clima monumental do Museu, de estilo neoclássico, o cenário de Daniela Thomas ocupou todo o palco e mais os dois camarotes nas laterais inferiores do teatro. Além disso, o palco foi preenchido com reproduções de obras de Andy Warhol, do pintor e escultor francês Marcel Duchamp e outros artistas do século — alusões a elas, representadas pelos atores e ainda, vagões de um trem e uma linha de montagem de uma fábrica e colchões. Os personagens, os fantasmas do navio, são figuras da história alemã do pós-guerra, prisioneiros, não apenas judeus, mas de todas as épocas.

E a principal novidade desta montagem: a heroína Senta não se atira no penhasco no final da peça, como na versão original, mas joga-se contra o Muro de Berlim e morre eletrocutada. No entanto, apesar das inúmeras referências à Alemanha de Hitler, o público não viu suásticas e os prisioneiros não tinham aquelas faixas características dos judeus. Quanto ao elenco, o barítono Carmo Barbosa foi o Holandês Errante no primeiro elenco e Jeshua Hecht, do Metropolitan Opera House de Nova York fez o personagem no segundo elenco; Sabine Hass da Ópera de Viena encarnou Senta no primeiro elenco e a soprano Elisabeth Payer Tucci no segundo elenco. Dalan foi interpretado pelo baixo Boris Bakow do Festival de Bayreuth e pelo baixo brasileiro Vladimir Kanal, da Ópera de Frankfurt, no primeiro e segundo elencos, respectivamente.

 

 

Por acaso no Brasil

 

Filho de mãe inglesa e pai alemão, Gerald Thomas nasceu no Brasil, mais exatamente no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, por acaso, numa das viagens de negócios do pai e passou a infância em trânsito entre o Brasil e Londres. Aos 15 anos, voltou definitivamente para Londres, onde ficou até os 25. Foi nesse tempo que mergulhou na biblioteca do Museu Britânico e leu tudo que tinha direito. Começou estudando a textura dos mapas históricos e em geral lia muita história, especialmente a do Brasil, relacionada com seus personagens estrangeiros que por aqui passaram como Villegagnon e o Rio, Nassau e o Nordeste. "Sempre tinha na mesa, aberto, o livro de Descartes", conta ele. No mais, lia tudo, de Koestler a Jung, Beckett, os gregos, estudava futurismo, dadaísmo, concretismo. "Aliás, li tudo o que todo mundo lê, nada diferente, apenas lá tem coisas que aqui não tem, por exemplo, manuscritos de Jung, Lênin e coisas do tipo, que você não vê por aqui".

Sobrevivência? O dinheiro vinha do Conselho Britânico de Artes, porque a essa altura Gerald era um artista plástico em quem os críticos londrinos apostavam: era ilustrador da Página de Opiniões do New York Times e tinha trabalhos publicados em livros de arte cotados na praça londrina. Daí, a bolsa do Conselho, já que há um abismo separando Brasil e Inglaterra, fora o oceano que nos separa: lá o governo valoriza e reconhece seus artistas. "O Brasil é o ponto escuro do Sol", diz Gerald, "mas isso é culpa do afastamento cultural provocado pela elite brasileira. É por isso que eles me chamam de colonizador, porque venho de fora. Mas se Wagner vivesse e fosse convidado para fazer música aqui no Brasil, é evidente que ele não faria samba, mas alguma coisa relacionada com toda sua bagagem cultural".

 

 

Pintura pura

 

O amor pelo teatro despertou, quando viu a montagem de O Balcão, de Jean Genet, com direção de Victor Garcia, no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo. Nessa epóca ele já desenhava suas figuras curvadas, sombreadas e inseridas num quadro que seriam, afinal, a base para seus "quadros cênicos", marca registrada de suas montagens. Fora isso, escrevia "uma espécie de ensaios hierônimus-boschnianos sobre teatro" que saíam numa revista inglesa: New Statement, de linha centro esquerda, meio marxista, segundo diz. "Quando vi o espetáculo de Victor Garcia, descobri que aquele podia ser o caminho do meu trabalho em teatro. Esteticamente, minhas peças são pintura pura. Já a ópera é a combinação de tudo isso: literatura, música, pintura".

De volta a Londres, Gerald começou a se dedicar ao teatro — foi criar o setor experimental do tradicional National Theatre. Mas ao mesmo tempo era brasileiro, quizás latino-americano e por aqui a ditadura corria solta. Assim, entra para a Anistia Internacional como representante do Brasil, mas logo desliga-se, já que a entidade só se interessava por presos ditos de consciência e não pelos que faziam luta armada. Entrou então para o Tribunal Russel, onde conheceu exilados como Gabeira, Lizt Vieira, César e Cid Queiroz Benjamim. Àquela altura Gerald confessava não estar engajado em nenhum movimento político. A sua luta é via teatro.

 

 

Revendo Wagner

 

Amigo de Beckett, já montara até aquela data dezoito textos do autor. Em Nova York, cidade onde residia na época, diz que — apartamento montado mesmo tem lá, aqui, vive num quarto emprestado na casa da mãe — dirigiu o Grupo La Mamma Theater for the New York. Mas no Brasil, começou a fazer teatro em 1985. Estreou com Quatro Vezes Beckett, quando ganhou o Molière Especial, sendo que o Mambembe de Melhor Figurino foi para Daniela Thomas. Foi quando, pela primeira vez, abalou as estruturas de uma facção do teatro carioca, também chamada de besteirol. Na mesma linha dos seus espetáculos anteriores, onde fez "a reciclagem de todos os avanços cênicos destes últimos trinta anos, a arqueologia do saber", como escreveu o crítico paulistano Edélcio Mostaço, Gerald Thomas se aproximou de um dos companheiros preferidos: Richard Wagner, mais especialmente na ópera O Navio Fantasma.

"Eu amo Wagner, porque é uma música onde predomina a racionalidade. É o primeiro compositor estruturalista, é o Levy Strauss da música, é um alquimista da razão, é o maior influenciador da música moderna hoje". E Gerald é apaixonado por música: "Música é tudo para mim". Depois, porque viveu na Alemanha, o alemão foi sua primeira língua, e seus mestres foram escritores e filósofos alemães.

"Para mim a Alemanha é social, econômica e racionalmente o laboratório deste século para todas as transformações. Ela faz a antropofagia da sociedade, caminha diferente do resto do mundo". E, além disso, segundo Thomas, Wagner é um personagem que está no purgatório, ele mesmo foi um mito do nazismo, foi instrumento da propaganda nazista como Nietzche. Finalmente, uma razão concreta: ele e o Fernando Bicudo, diretor da ópera do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, já pensavam nesta possibilidade.

Com a liberdade só permitida aos artistas, Gerald também revisita a obra de Wagner e a vê com a perspectiva do tempo. Daí porque a ação é transportada para a atualidade. "O Navio Fantasma vai ser uma montagem histórica em todos os sentidos, porque deverá ser a primeira de uma série que imprime o teatro na ópera. Nada que deva dar um ataque cardíaco, mesmo nos mais aficionados. Só irão ver uma versão mais inteligente, que considera os elementos que nos levaram até os tempos presentes, no caso das artes cênicas, como Wagner também o havia feito. Aliás, os próprios aficionados e puritanos de Wagner hoje em dia teriam sido os mesmos, que nos idos do século passado, execravam Richard Wagner".

 

 

O Ensaio da Ópera

 

Chego ao teatro às 11 horas da manhã do dia 25 de março de 1987, o ensaio já começou, mas por sorte hoje é um dia especial: os solistas estão chegando ao Brasil e os figurinos começam a ser realizados, assim como o cenário. Ou seja, a produção da ópera está na arrancada final. Studart, o administrador do teatro me leva a um camarote. O maestro Eugene Kohn ensaia com a orquestra. Gerald está no camarote próximo ao palco, fala com os músicos em espanhol, inglês e o intérprete e encarregada do ensaio do Coro traduzem, para o alemão e italiano.

Nos corredores a encarregada do ensaio do Coro reúne o pessoal: dá instruções sempre em português e inglês. Na passagem para o palco, durante um pequeno intervalo, cruzo com o Gerald e um integrante do Coro no corredor. Ele comenta as últimas da imprensa carioca sobre hipotéticos problemas dele com o Coro. "Gozado o jeito que a imprensa comenta o meu relacionamento com o Coro", ele me diz. "Não é nada disso. A verdade é que os acaricio e eles me acariciam. Não tem nada daquilo que saiu na Domingo (revista do Jornal do Brasil que sai aos domingos): "A que ponto chegamos".

Tudo bem, valeu o desabafo, mas já percebi que vou ter que conferir isso com alguém do Coro. O que, aliás, faço em seguida, mas é bom registrar que a ópera de Wagner foi o prato principal da imprensa carioca durante pelo menos quinze dias. Eles adoram uma fofoca. O que diga-se, não é meu caso. Aliás, como vocês verão na seqüência, vou até sofrer por causa dessa divergência fundamental, justamente com esta matéria.

Bem, cheguei ao palco, onde o iluminador ajeita a lâmpada acoplada à partitura do piano. E o que pensa dessa concepção de O Navio Fantasma o preparador e pianista do Teatro Municipal, Sérgio Nogueira? "Muito meticuloso, ele é um diretor atento para a presença do detalhe. Há óperas em que o compositor especifica todo o trabalho e os diretores seguem à risca. Aqui não. Ele já colocou a sua concepção do espetáculo, apesar de ainda não a termos visto integralmente".

 

 

Salva pela Senta:

 é o Navio Fantasma

 

Os solistas continuam a chegar e se encontram no palco, nos corredores. Importante salientar que eles são italianos, norte-americanos, alemães, que vêm de vários países do planeta e que se reencontram no Rio de Janeiro, para mais uma montagem da ópera O Navio Fantasma. Volto para o camarote. Resolvo começar a escrever anotações para a matéria. Mergulho no release que me deram sobre a história da ópera.

Viajo, enquanto anoto impressões, lembranças da entrevista com o Gerald na noite anterior, no Teatro do MAM, antes de ver Electra Com Creta. Quando acabo de escrever a palavra "prisioneiro", alguém na platéia chama o Carmo Barbosa, que está bem próximo ao meu camarote, na platéia. Num segundo, decido entrevistá-lo e vou a caminho da porta. Descubro que está trancada. Tento abrir, não consigo. Estou presa? Prisioneira?

Volto e verifico as possibilidades de um salto para a platéia. Rejeito a idéia. Vejo as duas solistas que vão fazer a Senta: Sabine e Elisabeth. Chamo a atenção delas e não sei em que língua falar. Assim penso em inglês e francês e acabo falando "prisioneira" com sotaque alemão. É uma verdadeira babel o Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

Elizabeth entende e vai lá dentro, tomar providências. Eu a ouço falando em italiano, ou seja, nenhuma das línguas anteriores. Finalmente o Studart abre a minha porta. Ele explica que afinal eu não estava trancada, a porta podia ser aberta desde que eu puxasse o fecho antigo da maneira certa. Bom, agradeço em alemão: Danke Schon, não me perguntem por quê. Quer dizer, eu sei porquê: eu não sabia quem era quem, quem falava qual idioma entre os solistas vindos de diferentes partes do mundo e Elisabeth tem um tipo nórdico. Só depois, fiquei sabendo que ela é italiana, de pais austríacos.

Ironia do destino: como em O Navio Fantasmaa ópera, fui libertada pela Senta. Acho que Wagner baixou no meu camarote. Meu conselho: sempre que você se julgar prisioneiro de algum lugar, ou situação, não se perturbe tanto quanto o Holandês Errante, desde que tenha uma, ou duas Senta por perto.

 

 

O Holandês Errante?

 Não, só o Fernando Bicudo

 

Na seqüência, Elisabeth está conversando com um jovem louro, de longos cabelos encaracolados, queimado de sol, gente, uma beleza. Seria o próprio Holandês Errante? Daqui para frente penso que tudo pode acontecer. Não, era apenas o Fernando Bicudo, diretor da Ópera do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, jovem empresário, economista, diretor de teatro (dirigiu Orfeu) e um dos organizadores da Petrobrás International, presidente de uma Fundação de Artes de Nova York, a Art American Foundation.

Quando eles terminam de conversar, peço uma entrevista que ele concede, ato contínuo. Entro no seu escritório e ele que diz o que pensa dessa montagem, já que é um dos pais da criança, pela ousadia. "Não tem dúvida de que o espetáculo vai dar o que falar. Mas não esqueçamos que Debussy foi vaiado quando apresentou L'Après Midi d'Un Faune na ópera de Paris pela primeira vez".

Bicudo acredita mesmo que, historicamente, o Rio de Janeiro tende a ser a póxima capital do mundo em importância cultural, lembrando que antes de Nova York, Paris era o ponto de encontro das vanguardas do mundo e começou com o clássico, com Diaghilev comissionando trabalhos de Stravinsky, Prokofief, Nijinski. "É preciso ousar, usar a liberdade de criar, porque a liberdade é o que o artista respira". Daí que ele vê o Rio com o a próxima cidade do triângulo: uma das três cidades do mundo que todos querem conhecer. Na virada do milênio, ele acredita que o Rio deve atrair jovens do mundo inteiro. "Nós temos a facilidade", ele diz, "de trazer os momentos artísticos, temos todas as condições de ser a nova capital do mundo, juntamos beleza e cultura. O brasileiro tem uma identidade, um legado cultural ao qual não damos valor. Nós temos o potencial de desenvolvimento, o mais forte que há no mundo. Com a energia que existe no Rio de Janeiro dá para fazer a pré-estréia do século XXI".

Para tal, Bicudo acredita, que seja a hora dos "guerrilheiros do teatro", os contestadores se unirem para forçar a entrada no cenário artístico brasileiro dos verdadeiros criadores da arte, ajudá-los a ter liberdade para criar. E foi pensando nisso que criou a Associação dos Amigos do Teatro Dalal Aschar, e começou a participar do Teatro Municipal. "A Dalal estava desesperada e me convidou para ser uma espécie de assessor. Tanto que nunca fui nomeado". E Fernando começou, conseguindo dinheiro para o teatro. Chamava seus amigos do exterior para cantar aqui e posteriormente conseguiu apoio da Petrobrás. Além disso, como patrono do Metropolitan Ópera House, conseguiu agitar bastante a programação do Municipal do Rio.

Para a montagem de O Navio Fantasma, por exemplo, conseguiu um grande apoio da Petrobrás, que até aqui nunca havia subvencionado qualquer espetáculo.  "Não recebemos um tostão do Estado, aliás, tivemos um tremendo boicote do governo Brizola, que nos impediu de usar a Central Técnica para a produção da ópera".

 

 

Intervalo para o lanche

 

O diretor concede ao elenco uma hora para o almoço e todo mundo dispersa. Alguns, para casa e outros, para um lanche rápido. Saio sozinha e vou a um dos quiosques maravilhosos que tem no Rio, quiosques de sucos ali perto do teatro, para um lanche. Encontro com um integrante do Coro. Sem perguntar nada ele me fala das dificuldades da realização de uma montagem deste porte e de como as coisas estão correndo bem isso em função da junção Gerald com o Eugene Kohn: "binômio muito simpático, com quem é uma delicia trabalhar".

Em seguida chegam os dois referidos. Eugene pergunta que suco estou tomando. Abacaxi, respondo. Ele pede graviola e em seguida outro, de abacaxi. Brindamos ao sucesso da ópera: tintim com suco de abacaxi, o que, aliás, combina com o país tropical. Rápidos, eles voltam para o teatro. Me lembro que na entrevista na noite anterior, o Gerald me havia  dito que ele dorme pouco, umas quatro horas por noite, mas em compensação se alimenta muito bem. Percebi. O ritual da tomada do suco não durou dez minutos. Fim do intervalo. Volta ao trabalho.

 

 

Com Daniela na platéia

 

De volta ao teatro, converso com Daniela Thomas, ex-mulher de Gerald Thomas, principal colaboradora de suas montagens, na primeira fila da platéia. Ela é cenógrafa e figurinista deste O Navio Fantasma e me explica que, seguindo a linha dos seus trabalhos anteriores — Carmem com Filtro, Quartett, Quatro Vezes Beckett, Electra Com Creta —, aqui também ela elaborou os figurinos — roupas e artifícios cênicos — segundo uma dupla qualidade: familiaridade e estranheza. (E que maravilha conversar com gente inteligente e culta).  "Não é surreal, porque não falo do sonho do outro, alheio ao espectador. Eu diria que são roupas alusivas a situações já vividas. Você olha e diz: isso me lembra alguma coisa que já vi, mas não sei definir bem. Ou seja: ela é familiar e estranha a um só tempo".

Segundo me conta, ela procura sempre nas suas criações o impacto único, ou seja, elabora suas roupas com economia de detalhes. Para criar os figurinos deste O Navio Fantasma, por exemplo, partiu do fato primeiro: Wagner que é um mito, que foi usado como tal, mitifica em O Navio Fantasma o assassino e o judeu errante, que é o Holandês Voador, já que o personagem que aparece de sete em sete anos, personifica o mito do eterno retorno, da história que se repete. Partindo desse princípio, ela chegou a uma idéia que norteou o espetáculo: juntando o mito de Wagner com este eterno retorno, pensou num figurino e cenário simbólicos, da estética da opressão. "A estética nazista é o neoclássico. Aliás, o neoclássico é também o preferido de Stalin, os regimes de esquerda e direita são muito parecidos assim como o Egito: eles usam ângulos retos". Daniela lembra que duas qualidades acompanham os regimes repressivos: "o gigantismo e a solidez das construções".

E lembra da lenda segundo a qual, o Speer, arquiteto preferido de Hitler, teria dito ao ditador: "Vou construir prédios que sobrevivam a catástrofes". Hitler respondeu: "Pelo amor Deus, não teremos catástrofes. E mesmo que haja, o Terceiro Reich vai se perpetuar para todo o sempre". Ela conclui, lembrando que depois da derrocada de Hitler não sobrou um só prédio do Speer para contar a história, ainda que alguns anteriores aos deles tenham sobrevivido.

 

 

Primeira pausa: entra em

cena a equipe de produção

 

Sabine chega à platéia e Daniela me pede um tempo, para mostrar os figurinos da Senta — primeiro e segundo atos. Sabine olha e Daniela justifica a escolha dos modelos, tipo dos tecidos escolhidos, mostra o desenho do sapato e pergunta que tipo ela prefere: mais cavado, menos, que tipo de salto. Sabine dá as coordenadas, aprova os desenhos e em seguida entra a equipe da produção: tiram as medidas do salto que Sabine usará em cena. Minúcias, detalhes, perfeição e tudo muito tranqüilo. Sabine é uma mulher de muita classe, sóbria, silenciosa.

Daniela me explica que a produção dos cenários e figurinos está toda atrasada em função de uma espécie de boicote que eles sofreram por razões políticas. "Na realidade, tudo isso deveria estar sendo feito na Central Técnica de Inhaúna. Daí estarmos trabalhando com essa violência, rapidez".

Falando da sua filosofia de trabalho na criação dos figurinos, me explica que o mais econômico em termos de formas e detalhes é fazer roupas alusivas. Assim, as roupas dos prisioneiros que vão aparecer em cena serão alusivas, representativas de todas as pessoas oprimidas, presidiários, prisioneiros de campos de concentração, lembrando os oprimidos de todas épocas, mas sem alusão aos detalhes muito marcantes que permitam ser identificados. Por exemplo, não terão as faixas usadas pelos judeus.

E de qualquer forma, como nada é unilateral, ela conclui que é muito difícil dizer se o opressor é o mal absoluto e o oprimido o bem absoluto. E mesmo quando ela representa o cenário — a Galeria Documenta —, não pesquisa, por exemplo, a planta do prédio da famosa galeria alemã para seguir à risca seu traçado. Ao invés disso, construiu um "espaço nazi-stalinista" e colocou ali arte moderna — objetos alusivos também — à exceção de um, que é fiel à Marcel Duchamp.

Mas as novidades não terminaram: na ouverture, após a saída dos visitantes, quando as luzes se apagam, os personagens, os fantasmas, saem de um trem. Ou seja, além do navio, vai haver em cena nesta montagem de Gerald e Daniela Thomas um trem e uma carcaça de um Volkswagen — o carro do povo. As cores usadas serão preto e cinza e sempre com aparência de usados. Para conseguir este efeito Daniela usa um truque: as roupas são mergulhadas no chá.

 

 

Entrevistando os cantores

num camarote

 

Como quero entrevistar todo mundo num só dia — e que dia maravilhoso, cheio de maravilhosas conversas, mágicas —, convoco parte do elenco que não está em cena ensaiando e vou para um camarote junto com o intérprete, porque afinal não sou de ferro. Começo com Sabine Hass e fico sabendo que é a primeira vez que ela trabalha com Eugene Kohn e, evidentemente, com Gerald Thomas, mas ela me conta que já representou Senta, nada menos que duzentas vezes nos principais teatros de todos os países do mundo.

É considerada pela crítica mundial — e isso não é ela quem me diz, é o diretor — como a mais perfeita Senta da atualidade. "Eu trabalho com diretores modernos e antigos, procuro me adaptar a todos. Se o diretor me apresenta uma idéia nova eu aceito". Aponta entre os seus compositores preferidos Wagner, Strauss, Fidelio, Beethoven. Sabine é austríaca, nasceu em Viena e canta desde os 16 anos (tinha à época 37), tendo começado sua carreira em Munique.

 "Meu teatro favorito é o de Munique", Sabine me diz e ainda: que não gosta de divas e prima-donas. Acima de tudo, considera-se uma atriz procurando se entregar ao máximo no palco. "Quando há mais empatia com o público, aí me sinto realizada". Ainda que tenha interpretado o papel de Senta muitas vezes — considera esta personagem de Wagner uma mulher muito forte, que dá a vida pelo homem amado —registra que foi em Filadélfia, em setembro de 1986, sob a regência de Ricardo Mutti, que ficou absolutamente fascinada pela inovação introduzida pelo maestro.

Lembra que houve uma sintonia absoluta entre maestro e intérprete e ela se sentiu realmente "tocada no coração". "Foi uma paixão total", diz emocionada. Seus próximos projetos: em 1988, participa do Festival de Ricardo Strauss para comemorar o aniversário do compositor em Munique, quando deve interpretar uma série de óperas do compositor. Em setembro de 1988, vai abrir o Festival do Metropolitan de Nova York com o Amor de Danae, ópera que considera rara, dificílima. Fora sua carreira de cantora de fama internacional, Sabine Hass é uma mulher casada e "muito feliz" — o marido também é cantor. Eles moram em Viena com dois cachorros que adora. "Não tenho filhos, porque acho que eles ficariam muito tristes com a minha ausência. Se os cachorros já sentem falta...".

 

 

Na piscina do Glória

 olhando o mar

 

Somos expulsas do teatro pelo Gerald, que me diz que os outros cantores estão reclamando que também querem ser entrevistados. Explico que vou entrevistar todos, estou apenas começando, mas de qualquer forma, resolvemos mudar de lugar. E combinamos ir para o Hotel Glória, onde eles estão hospedados. Quando saio do teatro me perco deles — evaporaram no ar. Decido ir direto para o Glória. Eles chegam dez minutos depois e o intérprete me conta que eles foram ao quiosque de sucos. "Parecem crianças", ele me diz, "eles querem tomar todos. Adoraram estes sucos brasileiros". Estou curtindo à beça, por isso me identifiquei tanto com este pessoal — também me sinto criança.

Estamos agora na piscina do Glória, olhando o mar. Converso com Elisabeth Payer Tucci, 41 à época, a Senta do segundo elenco, metade austríaca, metade italiana, filha de pais cantores. "Meu pai formou-se cantor de câmara no Rio de Janeiro". Ela mora com o marido e dois cachorros na Ilha de Elba (aquela mesmo do exílio de Napoleão), no meio de muito verde, flores e evidentemente o mar. "Não consigo ficar longe do mar". Personalidade forte, ainda que risonha e meio moleque, Elisabeth me diz que não pretende fazer uma Senta sonhadora, mas uma mulher real, pés no chão. Além desse personagem, diz que se identificou com a Brunhilde e Siegfried da ópera As Valquirias, de Wagner, que interpretou no Metropolitan Opera House. Mas sua primeira ópera foi no Teatro de Arena de Verona, quando fez Turandot, em 1978. Interpretou ainda, Nabuco e Macbeth, de Verdi. Admite gostar de papéis fortes, que exigem do intérprete toda a sua alma. E ainda, de papéis femininos com as características de todas as mulheres do mundo. Por isso, sua predileção por Santuzza, da Cavalaria Rusticana, de Rossini, que tem estas características. Mas para desempenhar bem os papéis no palco, Elisabeth precisa estar de bem com a vida, com o marido, do contrário não tem condições de se apresentar. Fora o canto, a natureza, o mar, os cachorros, Elisabeth confessa gostar de belos carros.

 

 

Aflorar a alma

 

Jeshua Hecht tinha 61 anos, cantava há 33 e já representara o Holandês Errante nada menos que 150 vezes. Formado em literatura pela Universidade de Nova York, Jeshua é reformado do Exército americano. E foi durante sua estadia lá, que cantou pela primeira vez. Seu dèbut foi na ópera Manon Lescault, de Massinet, fazendo o papel do  pai de Degreux. Além do Hollander, gosta muito dos papéis de Yago em Otello, de Verdi; Scarpin, da Tosca de Puccini; Don Giovanni, de Mozart e Johann, da ópera Salomé, de Strauss. Jeshua é casado com uma pianista e compositora, que naquele ano de 1987 tinha duas peças sendo apresentadas em Frankfurt, onde eles residiam desde 1984: um musical e um ballet. Tem quatro filhos entre 20 e 30 anos, é professor de canto e é sua primeira vez no Brasil. Anotando sua preferência por personagens que possam fazer "aflorar a alma", Jeshua considera o Holandês Errante muito espiritual, muito intenso, um homem muito sofrido, que tem alguma coisa de Cristo, muito desesperado. Ele mesmo confessa ser uma pessoa muito espiritualizada, acredita em Deus e na vida eterna: enfim, crê que há alguma coisa no homem que o diferencia do animal.

 

 

Um jovem maestro

 

Converso agora com o maestro Eugene Kohn, 34 anos, muito jovem, que adora o Brasil, porque se sente rejuvenescido: desde a primeira vez, sentiu-se em casa e pretende voltar muitas vezes. "Fiz muitos amigos na orquestra e no Coro, quando estive no Brasil, para fazer O Trovador, de Verdi e senti que queria voltar. Fiquei muito feliz quando o Bicudo me convidou para reger Madame Butterfly, de Puccini, minha segunda ópera aqui no Brasil".

Só reclama quando chega muito em cima da hora e não tem tempo para ensaiar como gostaria. Surpreso com o alto nível da orquestra e do Coro, Eugene está um pouco mais tranqüilo desta vez, já que está tendo tempo. "Gostaria de chegar a um som especial e para isso são importantes pelo menos quatro horas de ensaio por dia com orquestra e Coro". E agora, ele acredita estar conseguindo trabalhar individualmente, já que o Bicudo providenciou para que todos viessem com antecedência.

"Trabalhando individualmente, chego ao valor real de cada um, o que não ocorre quando o tempo é exíguo e as defesas não permitem que cada um se mostre integralmente, mas agora as coisas estão correndo maravilhosamente". Pergunto se a premência de tempo é um problema brasileiro e Eugene diz que não: acontece também na Alemanha, por exemplo, onde a estação lírica é muito intensa, mas já não ocorre no Metropolitan. Quanto à esta montagem do Gerald Thomaz, está na sua opinião, com um elenco formidável e ressalta uma voz que sobressai pela beleza do timbre e pela sintonia com ele: a do barítono Carmo Barbosa.

"Carmo é uma pessoa maravilhosa cantando ou não cantando, mas quando canta, acredito que sua verdadeira identidade, sua mais íntima expressão, venha à tona. Sua voz é de padrão internacional, e sem dúvida é uma das mais belas do mundo". Eugene confessa preferir óperas que tenham mensagens que possam ser aplicadas à própria vida. Entre elas aponta: Norma, de Bellini; Fidelio, de Beethoven; La Bohème, de Puccini; La Traviata, de Verdi. No plano pessoal Eugene Kohn reconhece ter mudado muito nos últimos anos. Hoje seu grande objetivo é ser "verdadeiramente feliz" e está conseguindo realizar isso só fazendo o que gosta. "Isso permite que eu fique mais feliz e em conseqüência, torno minha família mais feliz. Posso ficar mais tempo perto deles, viajar com eles, etc".

À época, Eugene morava em Nova York e era regente do Metropolitan Opera House, a casa de óperas mais importante do mundo. Começou como pianista e acompanhou, entre outros cantores, a célebre Maria Callas. Pavarotti levou-o para a Itália, onde aprendeu italiano e fez Lucia de Lammemoor, de Donizetti. Em 1975, voltou para os Estados Unidos, onde trabalhou até os anos 80 em companhias menores. Debutou no Metropolitan com Gioconda, com Renata Scotto fazendo o papel central.

Até então, havia regido em Roma, Stuttgart, Bonn e considerava importante não ficar só num país, mas viajar pelo mundo e particularmente, achava fundamental estar no Brasil, sendo responsável pela direção musical deste O Navio Fantasma. Isso porque acreditava que o Rio de Janeiro tendia a se transformar num dos grandes centros culturais do mundo, revivendo a década de 30 quando tinha lugar no cenário internacional da música. Importante para ele é conseguir trazer à tona talentos e toda a carga de sentimentos dos outros, dos intérpretes e músicos, que tem sob sua direção. Depois da temporada carioca, Eugene seguiria para Tóquio, onde ia dirigir concertos e quatro orquestras diferentes com Plácido Domingo.

 

 

De volta ao Teatro Municipal

para entrevistar Carmo Barbosa

 

Enquanto espero o Carmo, verifico como, afinal, o compositor foi inspirado a escrever sobre este famoso Holandês Errante, personagem central desta ópera. E isso eu leio no livro do maestro, que está esquecido sobre uma cadeira no palco. Registre-se que já é outro dia e estou novamente no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, nos bastidores da montagem de O Navio Fantasma, de Wagner, para continuar a maratona de entrevistas.

Consta que Wagner teve seu primeiro contato com a história do Holandês Errante no verão de 1838, através da novela de Henrich Heine: Memórias de von Schanabelwopsky. "Este tema me atraiu de tal forma", escreveu mais tarde no seu Eine Mitleilung an meine Freunde, "deixando uma marca de tal forma indelével, que no devido tempo me vi compelido a trabalhá-lo". Deixo o livro e vou finalmente entrevistar Carmo Barbosa, que me encontra justamente no momento em que Eugene vai para o piano".

"Não esqueçamos de que ele foi acompanhante de Maria Callas e é regente do Metropolitan, a maior casa de ópera do mundo", diz Carmo, enquanto atravessamos o palco, a caminho do seu camarim no andar de cima, para a entrevista. E afinal quem é este jovem — 36 anos, à época, barítono dramático tão elogiado não apenas por críticos do mundo todo, mas especificamente agora por Eugene Kohn: "Você viu no ensaio ele me jogava beijos" e por Gerald Thomas, o diretor desta montagem, que confessa "não posso ouvir o Carmo cantar, começo a chorar, não sei o que é". Carmo dá uma gargalhada maravilhosa, meu Deus que potencia de voz!  "É sim, ele chora, não consegue falar, me ensaiar. E ficou pasmo quando soube que eu tinha vindo de Agudos para o Rio, de avião. Ele acha incrível ter avião no interior de São Paulo".

É verdade, ele explica que pegou o avião em Bauru, foi até São Paulo e de lá veio para o Rio. Enfim, ninguém pode negar, foi um difícil trajeto. Mas então é isso, Carmo Barbosa nasceu em Agudos, a 350 quilômetros de São Paulo, filho de uma cantora, "ela fazia a Verônica na Semana Santa e eu adorava vê-la cantando", tem ascendência italiana e portuguesa. O pai, português, mas filho de italianos e a mãe, filha de italianos, enfim, a família toda ligada em musica erudita. "Meu pai tinha dois álbuns, um da Traviata e outro de Il Pagliaci, de Leoncavallo e eu cresci neste ambiente musical de gente que adorava cantar". Começou a cantar muito cedo e em 1973 participou do Primeiro Festival de Campos do Jordão, organizado pelo maestro Eleazar de Carvalho. Os maestros estrangeiros convidados ficaram de tal forma impressionados com sua voz, que organizaram sua ida para os Estados Unidos. Providenciaram bolsa, e logo Carmo partia para Nova York para ficar dois anos — acabou ficando cinco na Manhattan School of Music.

"Minha facilidade com línguas também me ajudou muito. Nunca tive problemas, aprendo rapidamente". Registre-se que ele fala inglês, francês, italiano, alemão. "Alemão eu fiz na Goethe Hause, na Suíça". "E há ainda uma certa capacidade histriônica que tenho e que talvez tenha sido responsável por uma equiparação rápida com os americanos, com uma formação anterior mais intensa". Paralelamente à escola, ele participava de concertos, de espetáculos de ópera na New York City Opera que é uma companhia itinerante que viaja pelo país. "E preciso viver na Alemanha para entender o espírito tedesco, a diferença do latino", ele diz. "É preciso ter vivência para poder aprender a maneira diferente que o alemão tem de enfocar a vida, e a pessoa não consegue fazer uma bela performance do repertório alemão se não entender este espírito".

 

 

Carreira e cachês

de nível internacional

 

Carmo viveu dois anos na Suíça, dois na Alemanha, respectivamente cantando na Ópera de Zurich e na Ópera de Lunenburg. "O repertório que desenvolvi ali foi fantástico: Elixir do Amor, de Donizetti, que me deu a chance de me apresentar com o Pavarotti em Filadélfia, que tem o Teatro de Ópera mais antigo dos Estados Unidos". Aliás, para julho ele já havia agendado o Festival de Wagner de Varsóvia, na Polônia, e ia aproveitar para dar um giro pela Itália, que define como um estado de espírito: "arte, beleza, saúde, atmosfera maravilhosa". Carmo vivia há quinze anos do canto lírico, tinha cachês de nível internacional e admitia que poucos cantores brasileiros têm este privilégio.

 "Sobre esta montagem ele afirmou: "Cantar grandes papéis wagnerianos e em especial, o Holandês, é uma das maiores experiências humanas", citando o crítico norte-americano Norman Bailey. Concordando com ele, Carmo considera que este personagem é de fato uma das mais completas experiências humanas para um artista. "Momento sagrado em que voce deixa o plano meramente terreno para passar para um nível superior". Não consegue dizer objetivamente se acredita na vida eterna: considera que a vida, esta própria existência, tem ela mesma, capacidade de revelar aspectos transcendentais. Acostumado a participar de montagens de óperas contemporâneas, considera genial o enfoque feito por Gerald Thomaz de O Navio Fantasma, já que pretende ser "uma reavaliação crítica de um determinado momento histórico, onde as forças do drama tradicional adquirem com o trabalho dele, uma realidade plástica extremamente convincente. Não acredito que haja o perigo dos conservadores e tradicionalistas não se sentirem atraídos pelo charme e wit da concepção dele".

 

 

Drama musicado

 

Entre seus personagens preferidos, cita o protagonista de Woizzeck, de Alban Berg, obra dodecafônica, das mais difíceis do repertório mundial, em função do volume vocal, aliado a uma intensidade dramática. "Wagner faz drama musicado. A voz passa a fazer parte do processo sinfônico. Enquanto na maioria dos compositores, a orquestra acompanha o cantor, em Wagner, orquestra e canto fundem-se num só corpo. Um só corpo direcionado no sentido de mostrar as idéias do compositor".

Daí que é preciso, segundo Carmo Barbosa, ter um volume vocal muito grande para cantar as obras de Wagner. Entre suas obras preferidas Carmo cita justamente O Navio Fantasma; O Barbeiro de Sevilha, de Rossini; Yerma, de Villa Lobos, que fez em première mundial no Rio; a Tosca, de Puccini; Aída de Verdi; Ártemis, de Nepomuceno; Porgy and Bess, de George Gershwin; Werther, de Massinet; Die Beiten Schnitzen. Entre as contemporâneas fez de Zador, tres óperas em première mundial: A Hand of a Bridge, Yehe, The Magic Chair. Fez ainda inúmeros concertos como a Nona Sinfonia, de Beethoven; Réquiem, de Brahms; Sinfonia dos Dois Mundos.

Carmo considera o público do Rio muito fiel, sendo ele o único artista brasileiro que canta duas temporadas este ano. No palco ele se sente em casa, mas fica sempre nervoso, porque é sempre a primeira vez. "É alguma coisa muito orgânica, talvez porque o palco é continuação do ato de amor". Além de cantar, que é sua vida, Carmo gosta, quando pode, de descansar na sua casa de campo em Agudos, onde sai de barco para pescar e esquece do mundo. Literalmente. E também quando tem disponibilidade, nos fins de semana, vai a uma discoteca, porque ninguém é de ferro, e então, curte um rock.

Apesar de ter gosto musical bastante amplo, reconhece que quando precisa de um relax, que ele chama de yoga-musical, recorre a um Debussy ou um Ravel. Reconhece que não teria chance de ter feito no exterior este vasto e difícil repertório: no Brasil ele canta papéis pela primeira vez, ritual usado no mundo da ópera e que ele explica. "Para se cantar em grande teatros como no City Ópera de Nova York, por exemplo, o número de vezes que se fez aquele determinado personagem, é fundamental. E aqui no Brasil eu faço papéis importantes pela primeira vez, ou seja, não há esta exigência". Recentemente, Carmo foi convidado para fazer o Rodrigo, no Don Carlo de Verdi, na Ópera de Paris. Como estava no Brasil, recusou o convite, já que o prazo era muito exíguo: tinha de sexta a domingo para ensaiar e estrear na segunda e, ainda, por ser a primeira vez que faria o personagem. Adepto do trabalho esmerado, Carmo Barbosa gosta de fazer bem ou não fazer. Descobriu que ao invés de ficar correndo de um lugar para outro, mais importante é fazer menos trabalhos, mas bem feitos, do que chegar ao topo rápido, sem o devido vital supporting. Como divide seu tempo entre o Rio de Janeiro e o exterior, tem duas acompanhantes: no Brasil, Eliane Caram e nos Estados Unidos, Margareth Singer, que à época estava na Ópera de Hannover. Naquele momento estava muito interessado no trabalho de Gerald Thomaz e do Eugene. "A regência dele é genial". Fora isso, está muito feliz com esta equipe de pessoas extremamente motivadas e de altíssimo nível.

 

 

Finalmente, o Coro

 

De volta ao palco, Thomaz ensaia o Coro, este mesmo que todos dizem que é tão importante. Converso com Silea Stopato, secretária da Associação do Corpo Coral, que faz a Maria neste O Navio Fantasma. Ela começa me dizendo que o Coro do Teatro Municipal do Rio de Janeiro é antigo e sempre teve um alto nível artístico. Quanto às declarações que saíram na imprensa sobre o relacionamento do Coro e o Gerald Thomaz, afirma que não existe, de verdade, qualquer espécie de desagravo. "Ele é uma pessoa muito simpática, de fácil relacionamento. Se por acaso há pessoas no Coro que não concordam com seu jeito de trabalhar, ou sua concepção de espetáculo, é um problema subjetivo". Silea acredita que ao Coro compete interpretar da melhor maneira o que o regisseur pedir, não compete julgar a concepção do espetáculo. Gostar ou não, vai ficar por conta do público. Inclusive, tudo é relativo: há pessoas que vão gostar, outras não. Ela admite que houve problemas, mas de falta de tempo de ensaio como gostariam e isso por uma série de circunstâncias, entre as quais, o fato de terem sido impedidos de realizar ensaios, já que uma ala do teatro estava em obras.

Quando à sua performance nesta montagem: é a primeira vez, em treze anos, que cantava O Navio Fantasma e lamentava que não se fizesse, como antigamente, mais óperas e que a temporada de ópera não fosse tão intensa quanto poderia ser. Meio soprano, Silea cantava há 17 anos na ocasião, tendo protagonizado a Carmem de Bizet e o papel feminino mais importante da ópera de Werther de Massinet. "Nosso interesse é ver o Teatro Municipal trabalhando a todo vapor, ocupando seu verdadeiro espaço, trazendo para o público do Rio de Janeiro, uma arte de maior qualidade".

 

 

E afinal, tudo isso, e a matéria não sai:

estamos no Rio de Janeiro

 

Depois de ter feito uma das mais gostosas matérias da minha vida, imaginem meu horror, quando ao levar a dita cuja para o editor da Manchete, que a encomendara, fico sabendo que ele queria, afinal, só uma entrevista com o Gerald Thomaz. Digamos que a matéria estava de fato muito longa, mas em todo caso, fiz cortes ali mesmo na redação e deixei oito laudas com a entrevista do Gerald. Alguns dias depois, vejo que na edição em que ela deveria estar, havia uma outra intitulada Senta que o Gerald é manso.

Fiquei arrasada, imaginem a minha cara com todo o elenco, o Gerald, Daniela, e todos entrevistados, que eu adorei conhecer. Foi duro, fiquei com uma péssima imagem da imprensa carioca, que sobre o mesmo espetáculo, publicou naquele O Dia, matéria intitulada Não vi e não gostei. Pois o que posso dizer é que vi e não gostei da ideologia da imprensa carioca. Aliás, este fato, com mais detalhes, conto na matéria publicada no Cronópios: Ai Love Rio ou Ai de Ti Copacabana (clique aqui para lê-la). É isso, mas e daí? Que fazer? A vida tem dessas coisas, companheiros.

 

 

 

> Para saber mais sobre Gerald Thomaz e seu repertório, clique aqui.

 

 

 

dezembro, 2007

 

 

 

 

Ana Lúcia Vasconcelos é licenciada em Ciências Políticas e Sociais pela PUC de Campinas, com mestrado em Filosofia de Educação pela Unicamp. Como atriz e jornalista, atuou em Campinas e São Paulo, tendo trabalhado em vários veículos da Editora Abril: Grandes Personagens da Nossa História, Música Popular, Mestres da Música Universal, Revista Escola, Enciclopédia Abril, Revista Nova, Cláudia Moda, Revista Pop. Como free-lancer trabalhou em dezenas de jornais e revistas: Suplemento Cultura de O Estado de S.Paulo, IstoÉ, Shopping News, Revista Artes, Leia Livros, Folha de São Paulo, DO Leitura, Etiqueta Moda Profissional, Revista Visão (inclusive, uma capa que foi reproduzida na  Seleções do Reader's Digest em 19 países da Europa e Estados Unidos) e vários house organs. Foi editora de um jornal de Campinas que já não existe: Jornal de Hoje. Escreveu no Diário do Povo e Correio Popular, Revista Vívere, Jornal de Domingo, City News, entre outros desta cidade. Na televisão, foi assistente de produção e apresentadora do programa Semanário das Artes, que depois passou a se chamar Em Cartaz e é o atual Metrópolis, da TV Cultura. Participou como atriz do programa Ator na Arena, dirigido por Ziembinski, e da peça Natal na Praça, de Henry Ghèon, na TV Cultura de São Paulo. Foi pesquisadora de Arte da novela Os Gigantes, de Lauro César Muniz, na Rede Globo de Televisão. Atuou ainda como produtora e apresentadora do programa Ponto de Vista, da TV Thathi, da Rede Manchete de Campinas, em 1995.

 

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