Eu conheci a morte na madrugada do meu aniversário de vinte e sete anos.

         Eu estava deitado na areia de alguma praia da costa oeste, esperando que talvez aquele barulho, ondas do mar, crianças gritando, pudesse me ajudar a dormir. Jim estava esquentando água e John devia estar dormindo, apesar do barulho. Alguns putos jogavam futebol e pareciam querer impressionar Kelly e Mel, provavelmente se afastariam quando descobrissem quem nós éramos.

         A expectativa de que a água tocasse meus pés era terrível.

         Eu não dormia há quase quatro dias.

         A morte chegou como uma beach girl bronzeada, vestida com um bikini e uma Levis cortada num short. Mas eu sabia quem ela era. Ela se deitou ao meu lado e ficou olhando para cima, fingindo contar estrelas, enquanto eu olhava para ela fixamente. Eu tinha passado os últimos dois dias a base de speed e álcool, mas aquele momento para mim foi de uma sobriedade extrema, eu tinha a mais perfeita noção do que ela queria. A mais perfeita noção daquilo ao qual eu não poderia escapar.

         "Devo lhe convidar para uma partida de xadrez?", disse eu, sempre querendo ser o espirituoso, sempre falando bobagens em momentos solenes. Eu sempre acreditei em Deus, porém nunca fui reverente, nunca me ajoelhei diante dele, nunca implorei por nada. Meu pai já havia me alertado sobre aquele momento. E havia me pedido que, quando eu estivesse diante dela, pedisse para que o levasse em meu lugar. Isso antigamente, na época em que ele ainda se importava comigo. Fez isso segurando meu braço com muita força e com uma voz firme, de quem sabe o que está falando, mas não havia nada que eu pudesse fazer. Eu não faria tal pedido diante de uma loirinha que fingia contar estrelas enquanto fazia semicírculos com o calcanhar.

         "Eu tenho aguardado por esse momento durante muito tempo", disse ela, finalmente olhando para mim, a morte tinha os olhos negros, o que era muito apropriado. John saberia o que dizer naquele momento, ele percebia as nuances da vida com uma clareza incrível, sempre escreveu letras mais profundas que as minhas, era triste que eu nunca tivesse dito isso a ele.

         "Isso eu sei", disse, apenas. A morte havia me seguido de Detroit até Larned, Kansas, uma vila cuja população não passava de cinco mil, mais uma das idéias de John, "nutrir as raízes com água pura", dizia ele. Eu transando com uma garota local e a morte me olhando, sentada num divã vermelho do outro lado da sala. Jim tocando violão e rindo, pedindo para eu gozar nos peitos dela, John vendo televisão, todos ocupados, jogando cartas. E a morte lá. Eu não tive dúvidas de que era ela, ninguém mais havia se dado conta de sua presença, a morte estava a milhares de milhas do mar e vestia o mesmo bikini, o mesmo short jeans. Havia embarcado na primeira classe, junto conosco, sempre fingindo não me ver, folheando algum livro, pedindo um tapa-olhos para a comissária, mas quando eu cheguei para John e perguntei para ele qual era a da garota de bikini e jaqueta jeans, apenas para ter certeza, ele me olhou com um ar estranho e disse que não sabia do que eu estava falando, virou para o lado e dormiu.

         "Eu também", disse eu, não fazia sentido guardar segredos da morte. Meu tio Cameron tinha uma oficina de carros em cujas paredes ele pendurava dizeres orientais, e aquilo era tão engraçado, a princípio quem via perguntava o que diabos era aquilo, meu tio ia e dizia o significado e o nome do autor, "'Aos quinze, orientei meu coração para aprender/Aos trinta, plantei meus pés firmemente no chão/Aos quarenta...'", assim ia até "'Aos setenta, eu seguia os desejos do meu coração, pois o que eu desejava blá-blá-blá-blá-blá'. Sun Tzu". Aí o sujeito ficava sério, dizia que era bonito e tal, mas não demorava e era inevitável, eu ficava olhando para a cara do sujeito até que ele não se agüentava e caía na gargalhada, "Mas cadê as garotas peladas?!", "Eu não sei, eu não sei...". Era natural que eu pensasse no meu tio Cameron naquele momento. Grande tio Cameron... eu mal sei o que dizer sobre ele.

         "O que você está esperando?", quis saber a morte, e fazia sentido, o que eu estava esperando? "Eu estou refletindo sobre a futilidade da vida", diria eu, para ser honesto, mas eu apenas me deitei em cima dela e a beijei nos lábios. Eu não tenho o mínimo interesse em contar vantagem ou mentiras. Eu deitei o meu corpo sobre o corpo da morte, ao menos assim me pareceu, e ela suspirou como uma garota de dezessete anos. A morte suspirava como uma garota de dezessete anos e nesse instante a água do mar tocou seus pés, mas não os meus, pude sentir suas pernas se encolhendo sob as minhas. Eu não sentia medo, mas meu corpo tremia.

         "Eu não estou preparado", murmurei, taí uma coisa original para se dizer diante da morte, taí uma coisa que ela nunca tinha ouvido. A morte acariciou meu rosto e mordeu o lábio inferior, voltou os olhos para os rapazes que jogavam futebol e por alguns segundos eu achei que teria alguma chance. Ela então olhou para Kelly, pareceu hesitar por alguns segundos, como quem cogita possibilidades. Se a morte fosse muda tudo seria muito mais fácil, todo mundo que olhasse para ela poderia fingir não perceber toda a eloqüência da vida, todo mundo que olhasse para ela poderia assumir que ela simplesmente não tinha nada a dizer.

         "Não há porque se envergonhar", a mão da morte deslizava suavemente sobre o meu estômago, sobre o meu coração, e isso não poderia ser bom, mas era. Eu a beijava com meus olhos abertos, enquanto tentava desesperadamente lembrar de tudo aquilo que já haviam falado sobre "o beijo da morte", todas as conotações e significados de uma imagem tão bela.

         "Espere um momento", disse eu. A morte me olhou nos olhos, parecia interessada. O problema com a morte não é o término da vida em si, mas a sua interrupção. Todos aqueles sonhos que você guardava no fundo do seu coração, todos eles: eles não vão mais se realizar. Tudo aquilo foi algo que nunca existiu, que nunca vai acontecer. Sempre que uma pessoa próxima a você morrer, ali estava uma pessoa que ainda desejava algo da vida, que sonhava com uma viagem ao redor do mundo, com a fundação de um império, com uma noite ao lado de alguém, com uma corrida numa montanha russa, mas agora é tarde, nada disso vai acontecer, nada disso importa mais.

         "Eu não abro exceções", respondeu ela, enquanto descia o zíper da minha calça.

         "De que você está falando?".

         "Eu estou falando sobre você se igualar aos seus semelhantes...", disse a morte.

         "Eles não são meus semelhantes", protestei.

         "É claro que são. Você sabe que são. Você não pode fugir à sua natureza...".

         "Quem é você para falar assim comigo?", a morte ficou surpresa, parecia não fazer idéia do que eu estava falando. “Quem você pensa que é para estreitar os meus horizontes dessa forma?”

         "Como pode não perceber que eu estou tentando lhe dar o presente mais incrível?...". Eu não sabia como responder a essa pergunta. Eu sabia que era verdade o que ela dizia.

         "Eu agradeço por isso". Era como se minha alma estivesse vazia. "E eu aprecio isso". A morte olhava para mim, incrédula.

         "E qual é o problema?". Ouvi a voz de John me chamando. "O que está incomodando você?".

         "Eu não sei", disse eu, me deitando ao lado da morte, fingindo contar estrelas.

         "Você gostaria que eu fosse embora?".

         "Não", disse eu. Achei que fosse chorar ali mesmo.

         "Então qual é o problema?".

         "Sabe qual é o problema?...", uma lágrima desceu de um dos meus olhos, "Você sabe...", eu chorei, tentei pensar em alguma coisa para dizer, "eu sempre me deitei...", a água tocou meus pés, minhas pernas, minhas costas, a morte riu da minha expressão de susto, de dor, depois pareceu arrependida, preocupada. Certamente não era digna de minha confiança.

         "Você quer entrar na água comigo?", perguntou-me ela.

         "Sim", respondi.

         A morte me tomou pela mão e deu alguns passos em direção à água, e era claro que eu desejava ir com ela. A morte poderia me levar para qualquer lugar, para onde ela quisesse que para mim estaria tudo certo. Olhei para trás. Os rapazes haviam parado o jogo e Kelly dava risadas indecentes de alguma piada que um deles havia contado. Agora isso sim era decadência. Jim dirigia um Fairlane verde musgo tão velho que dali mais parecia uma rocha coberta de algas. Ouvi a voz de John, mas nem sinal dele, nem de Mel. Segui em frente.

         Eu nasci e me criei em New Orleans, minha mãe não me amamentou, e corria uma lenda na minha família que dizia que a primeira vez que eu vi os seios de uma mulher eu já tinha mais de um ano de idade. Teria sido durante um desfile de Mardi Gras, eu estaria sentado nos ombros do meu tio Cameron e ele teria me dito para dar um dos meus colares para uma garota. Ela teria me mostrado os seios dela, como é de costume, e eu teria aplaudido efusivamente, aplaudido e gritado do topo dos meus pulmões. A morte tirou a calcinha e mergulhou, eu não fazia mais a mínima idéia do que estava acontecendo, do que eu estava fazendo, do que estava por vir. Eu mergulhei também, nadei em direção à morte, busquei-a no vazio do oceano escuro, tateando como um cego que testa a lâmina da faca, ansiando como um viajante que percorre a planície que dá no abismo, encontrei-a em meus braços.

         E foi ali mesmo que eu conheci a morte.

         Eu, Edward Webster, conheci a morte na madrugada do meu aniversário de vinte e sete anos, em alguma praia da costa oeste de cujo nome não quero lembrar-me.

         A última coisa que eu vi foi o Fairlane verde musgo de Jim, tão verde e sujo que mais parecia um ser vivo. Eu tentei ver qualquer um dos meus amigos, mas nenhum deles estava ao meu lado.

 

 

(imagem @todd davidson)

 

 

 

 

Sophia Tenório Becker (Curitiba-PR, 1979). Formada em Publicidade e Propaganda pela PUCPR, trabalha como publicitária. Apaixonada por Literatura, um dia poderá citar Machado de Assis, Jorge Amado, Thomas Mann, Kafka, William Faulkner e as irmãs Brontë como influências, se puder chamar a si mesma de escritora. Escreveu duas peças de teatro encenadas por um grupo de teatro que ajudou a fundar quando era estudante; um manuscrito de romance não-publicado; e A Paixão de Barbarella, drama que terminou de escrever em abril de 2006. Vive em Curitiba.