Relógio I
 
Onde começa o dia?
Na claridade do Sol
ou no escuro
da meia-noite?
Que relógio reflete
a imagem do tempo
que habita no obscuro
tic-tac?
 
As esperas parecem incontáveis
nas horas que escorrem.
São Relógios de Dali
que escapam entre os dedos.
 
Que relógio absoluto marca
minha idade?
Quero um relógio sem hora
pra contar meu tempo.
 
Que hora sem tempo
é a hora da morte?
Em que calendário vibra
o que está para nascer?
Que relógio marca o
nascimento do poema?
Para onde vai a hora
que não volta?
 
Tempo, em que passado
começa teu porto?
Qual a direção futura
do teu cais?
 
 
 
 
 
Relógio II
 
Os minutos soam fugidios.
Os segundos voam sem limite
na brevidade do dia.
 
Perco-me nas horas do relógio
sem memória,
mas não ignoro o insistente
carpe diem
dos ponteiros.
 
Habita o tempo no relógio?
Fragmento do (in)finito,
meu paradoxo concreto
relógio de parede.
Os números são os mesmos,
mas o tempo não se repete
e faz os instantes únicos.
 
Cronos, meu Senhor,
não meça meus passos
tão rápido!
Deixa que eu ouça a voz
de Dirceu
despertando Marília.
 
Se fosse palpável,
seguraria o instante
e o prenderia na memória
da infância,
onde tudo é lembrança
e saudade.
 
 
 
 
 
Fluxos
 
"Uma pessoa não entra no mesmo rio duas vezes;
na segunda vez não é o mesmo rio nem a mesma
pessoa".
Heráclito de Éfeso, 500 a.C.
 
Os dias se movimentam
em procissão contínua
águas de Heráclito
nos diferentes rios
relógios nas longas noites
siderais
astros e seus atos
em danças geométricas
 
Estrelas se formam
a cada instante que
inspiro
respiro
raios de sol tocam
seus acordes
nas frestas dos ventos
que copulam nas asas
dos pássaros
meu filho sorri no
mistério da existência
 
Silêncio ruído solstício
morte nascimento guerra
gira o mundo
em ritmo novo
repetição
sempre igual...
 
 
 
 
 
Fluxo II
 
Nasci na entranha antiga
do tempo
pertenço às gerações guardadas
no princípio do mundo
secreto
 
Trilho o caminho incógnito
que me leva ao destino
que não sei se
é finito
ou perene
 
É certo que não decifro
a existência hermética
presa aos movimentos
dos equinócios
antes e depois
pulsante vaivém de
ontens
hojes
amanhãs
 
Pássaro na gaiola,
labirintos me perderam
de mim,
quero o fio que
Ariadne deu a Teseu.
 

 

 
*
 
Sou lua:
com fases, que não são quatro,
mas muitas, instáveis,
frágeis e oscilantes
como as marés
à mercê
do tempo mutável.
 
Escondo-me e mostro-me
nos contínuos fluxos.
Pairo suspensa e inquieta
no brilho sonâmbulo da noite.
Ilumino a solidão dos amantes
e as feições dos prantos poéticos.
No meu eclipse, sou o próprio Sol.
 
Vago em órbita excêntrica
e distante
do eixo consciente.
Tenho faces ocultas
com crateras, pegadas
de astronauta,
elipse,
esfera,
fera, dragão.
 
Pareço incompleta,
mas junte-me no fim dos ciclos
e me verás inteira
e luminosa.
 
 
 
 
 
(De)Composição
 
A asa
é um mistério
elaborado
no casulo.
 
Compõe-se de
espera
a borboleta.
Decompõe-se
a lagarta.
 
 
 
 
 
Fênix
 
I
 
Coabitam em mim
as cinzas dos dias passados
e o fogo presente, que me alimentam
para uma nova vida.
Será que vivo?
O tempo que passou foi meu?
Renasci quando?
Rasgo os versos e digo que vivo!
 

II
 
Sou única nesse milagre de ser.
Símbolo da regeneração,
rememoro a vida e reinvento-me
no calor do fogo — em meio à morte aparente.
Sinto-me recriada no calor da luta diária.
Criatura breve, transmutada no infinito
nascer-morrer.
Da cinza cotidiana, surge esse poema
de palavras que chegam silenciosas e
lavradas em brasa.
 

III
 
A cada dia, novas dores e a certeza
de que nada sei.
Tudo reaparece e eu tenho que
viver a plenitude do hoje,
sem hesitação.
 

IV
 
Entre mim e o mundo,
o renascer mágico e oculto
que me faz ser nova e inteira
todos os dias em que
agonizo na dor e renasço no amor.
Tal como o mito, levanto-me discreta e lúcida.
Eis aqui meus versos eternos.
Abro minhas asas para o infinito e vôo mais uma vez.
 
 
 
 
 
Odisséia
 
Vivo em circunviagem.
Ulisses sem Ítaca, tenho saudade
de quem me espera.
Tantas voltas dou, Penélope tecendo,
faço meu caminho em mares profundos.
Um porto de vez em quando me faz companhia.
A cada gesto de partida,
mais perto fico da chegada.
Nas tormentas, procuro o desconhecido
no espaço cíclico.
Viajo sem regresso previsto.
Peregrino sem âncora ou bússola.
Nas travessias cruéis,
entre Cila, Caribde e Ciclopes,
enfrento naufrágios, armadilhas
e expectativas.
Encantam-me Circes, olhares e palavras.
Retorno pela memória.
Navego pelo visto, ouvido e amado.
Só assim me livro do exílio.
Encontro-me esperando por mim
no meio de tantos sonhos tecidos
enquanto eu crescia.
 
 
 
 
 
Equilíbrio
 
Labirinto
é para se perder
no meio das rotas
tortas
ou
retas
 
Bom é achar
abrigos
caminhos
portas
destinos
 
Ideal
é transcendê-lo
em vôo
como Dédalo
 
Não tão perto
do sol
como Ícaro
 
Labirinto é
para achar
o caminho
do meio
 
 
 
 
 
Alquimia
 
Cronos, enganado,
engole pedras.
Sísifo, castigado,
carrega sua pedra.
Drummond,
de retinas fatigadas,
vê pedras no caminho.
 
Pedras
sísifo-drummondianas
cansam os sapatos,
as retinas,
o olhar petrificante
da Medusa.
 
A pedra no sapato,
nos rins,
nos olhos cansados,
é a rotina de cada dia.
 
Atire a primeira pedra
quem não quer
o segredo
da Pedra Filosofal
da Poesia:
transformar
pedra em poema...
 
 
 
 
 
Esfinge
 
Decifra meu enigma
e toda a verdade,
toda a essência
por trás do verso.
 
Segue pela trilha do meu corpo
e revela a paisagem escondida.
Repousa sem tédio no meu abraço.
Implora pelo princípio e fim
de cada ato.
 
Descobre o segredo que habita
onde me esquivo,
onde a pergunta é só disfarce,
reverso.
 
Se me escondo,
é para devorar melhor.
 
 
 
 
 
Herança
 
Em um dia qualquer do tempo cíclico,
o mesmo número, um novo começo.
Último e primeiro misturam-se
no calendário infinito dos meses.
Mas cada dia é único e novo.
Milagre ou castigo?
Meu Érebo é aqui.
O castigo é viver o cotidiano.
Sou submissa, tal Fênix, ao renascer.
Herdei de Sísifo o subir-descer,
empurrando a vida
no acúmulo dos dias.
Perdi-me na obediência às flechas de Cupido.
Se tento sonhar, escapa o sono.
Sedenta e faminta,
persigo o que nunca alcanço,
qual Tântalo em seu tormento.
Meus desejos escapam
no tonel sem fundo das Danaides.
Prometeu, criador dos homens,
padeceu ante os deuses,
quem sou eu para lamentar?
Quero a cicuta de Sócrates.
 

 

Solange Firmino. Professora do Ensino Fundamental e de Língua Portuguesa e Literatura do Ensino Médio. Participou de algumas antologias poéticas e jornais literários. Primeiro lugar no IV Concurso Nacional de Poesia Intervalo 2005. Tem trabalhos em verso e prosa (artigos e crônicas) no Blocos Online, assina a coluna "Célebres Cenas" no e-zine Entre Palavras e edita o blogue Solange.