PIROFAGIA
 
Poesia,
cáustico manjar
que agrada mariposa e lâmpada.
Adentra-se consentidamente,
destila a vítima por dentro em versos
e a oferece em cálice a si mesma e a outros.
Desmancha o miolo até a casca em palavras
até que não reste
nenhum segredo.
Prognóstico:
overdose ou degredo.

 

 

METEORO

De antevéspera
faço-te este poema amorfo.
Não virás amanhã,
claro-evidente.
Faço-o antes do tempo,
porque na hora do susto
preferimos o lábio ao grelo.
E depois do gozo
como sabê-lo?
Antes mesmo de ti
dei-te curvas e, talvez, mais cabelo,
que por certo não haverão.
As cores, cicatrizes imaginadas,
essas sim, serão.
Não por ti, por mim,
que sem saber como,
sempre sei destas.
Talvez por bruxaria ou pela falta de pejo com que vasculho segredos.
Chegarás e, depois de quebrar-te
mais da metade ao romper-me a atmosfera,
haverá um atropelo.
Queimaremos bons versos
e nossos melhores verbos
em comentários absolutamente
desnecessários e cubículos.
(Ah! Como gostaria de colocar ridículos nesse espaço mínimo que serão nossos comentários! Não o farei, perdoem-me
os tímidos. Queimaduras são inevitáveis, sim, não ridículas. Por isso, mais que dinheiro, melhor termos pérolas de sobra. Não pense que
foi, palavra, tijolo-trocado o cubículos depois do desnecessários. Saberás somente depois de muitos meteoros. Oxalá os tenham muitos, e eles, os comentários, ficarão cada vez mais desnecessários e cubículos. Preferirás os olhares.)
Paralisada e afôlega,
vendo-te a queimar meus ares
e tu cada vez mais vermelho,
estarei momentanemente feliz.
É provável que caias em minhas águas,
três quartos ou mais de probabilidade.
Tenho somente um quarto seco,
quem sabe menos.
Sou tanta fumaça
que já estou a derreter pólos
e a molhar o resto.
Se me caíres n'água serás breve,
e, de ti, lembranças,
a chegarem às margens como ondas,
cada vez menores.
Mas se me tocares no seco,
entretanto,
será grande o estrago.

 


CONFESSO
 
nem tudo que disse foi acerto,
que não reconheço quase nada como erro,
que volto atrás em promessas sérias,
que muitos chutes foram trave,
que trave, para mim, é um quase acerto,
o limite do engano... e isso é grave.
 
que era eu ao telefone
porque tem dias, poucos, que um alô é muito
e o muito, muitas vezes me cala.
 
confesso
quis também um silêncio salmoura
que me reconhecesse antes mesmo de ser alô
e também se calasse
que dissesse sei que foi você,
porque só seu silêncio me dói
e isso bastasse.

 


VESTIMENTA

É dessa liberdade dos que questionam
e de novo e de novo se resta dúvida.
Desses que dizem assim não pode ser,
quando não pode.
Desse sorriso dos que escolhem a hora de sorrir
e o fazem por alegria, não para aliviar a dor.
Desses que não se surpreendem se o imprevisível está à porta,
pois sabem, ele, previsivelmente, sempre vem.
Desse jogar basebol em estádio iraquiano,
ler o alcorão com americano
e rir dessa rima pobre que traz em si rico conteúdo humano.
Desse sentir-se pequeno diante do mais pequenino
e a muralha que o protege do falso soberano.
Desse fazer o que se é capaz e pelo menos um pouco mais,
que desenterra as mãos para o trabalho
e as têm vezes quatro quando o Pai questiona.
Desses que o mofo não trava os passos
e a porta larga sempre lhes tira o ar.
Que estão felizes no palácio ou na caserna,
que endurecem com a jornada
e só param com a vitória, ainda ternos
que eu visto a camisa.

 

"CORRER COM LÁGRIMAS NOS OLHOS..."*

É por não ter tempo para ouvir o lamento
que cheguei até aqui.
Cravejada de balas, com membros ceifados
que cheguei até aqui.
O tempo desse poema é para que cuspam as balas
minhas entranhas.
Para que eu cresça de novo feito lagarta.
Aos meus inimigos, em um pergaminho,
o segredo de minha imortalidade.
Em cada túmulo que lhe aponto jaz um sacana que me matou,
na lápide: descanse em tormenta, Seu Canalha, e que o diabo o carregue,
e sobre ele um escarro no lugar de flor. Nada mais.
Nenhum nome. Nenhuma lembrança.
Deles, tatuado em minha pele, o ensinamento.
Talvez, enterrado em mais de um túmulo, o mesmo idiota.
Risco que corro por não lembrar nomes.
Já cuspi a última bala e cresceu minha última unha.
Esse poema termina aqui.

*Lobão

 


DIFERENCIAL

Congelei notícias à tua partida.
O tempo parou e todas as prensas.
Como magazine velho de ante-sala
tive arrancada a garota da capa,
ainda assim espero que me folheies.
De minha parede levastes
um sorriso falso de Monalisa.
Prendestes os segredos de meu diário
em infinitas grades de jogo da velha.
Faltam para as duas, dez, a mais de três horas.
O relógio ri em dolo.
Num canto, só, demoro.

 


GULA

roubo um gole de via láctea
me vigia enquanto pode
uma lua de bigode

 


SIMPATIA
 
Te bebi naquele dia
porque era réveillon
e tu, minha sopa de lentilha

 


BRIGADEIRO
 
Há três dias ele não liga.
Bato na mesma tecla:
— Não ligo!!!

 

 

REALISTA II
 
Fim de expediente.
No prato da periferia
muita carne moída e ora-pro-nóbis.

 


FANTASIA

Festa de Halloween.
Tiro minha máscara
e saio vestida de bruxa.

 


HERESIA

Entreabertos
meus lábios diletos
blasfemam:
— Não mais lhe quero!
Os meus, devotos eternos seus,
sussurram trêmulos:
— Não creio! Não creio!

 


*

Tarde de verão.
Filamentos de nuvens
assinam a obra.

 


VERDADE PATOLÓGICA CRÔNICA
 
A cabeça da Maria Antonieta
depois de cortada
ainda mexia os lábios,
beatos juram ser prece última ao Altíssimo.
Talvez. Fosse eu, rogaria ao carrasco.
É, para falar é preciso cabeça.
Para ser ouvido, garganta.
Tem os que dizem que a fala vem do coração.
Concordo, mas só a que demora.
Aterradores são os recados da natureza
quando nos voltamos contra ela.
Alguns tiros pararam o coração do Che Guevara.
Muitas mãos não conseguiram fechar seus olhos.
Reza a lenda que do corpo de Antônio de Pádua
os vermes pouparam a língua,
será que a verdade a deixou insossa?
De minha vida talvez nada que possa sobreviver
ao dia da minha morte.
Minhas palavras são unhas que tento cravar
nas páginas da História.

 


DESACATO

libertinagem antes que eu arda
meus dedos querem
invadir a tua farda

 


INCONCORDANTE

Meus olhos chorou.
Neles lágrimas para um só.
Alma plural, verbo singular.
O outro jaz.
Perdão, foi o melhor que pude.
A dor cavou,
mas não encheu o açude.

 

 
 
 
 
ORIGAMI

Como fosse outra criatura,
pássaro em dobradura,
eu, em minha escritura.
 
Existo no que omiti
fundido no que forjei.
Num papel bem dobrado
finjo-me ser.
 
Pendurado num barbante,
último ensaio antes da corda,
bato asas em sua janela
até você me ler.
 
Para me safar
atrás da página dobrada,
numa língua inventada,
advirto:
Não sirvo para ser lido
                          tampouco para voar.
 
 
 

BLUES INACABADO PARA U'A ROSA PROFANA
 
Só menti as falsas verdades.
Questão de escrúpulos.
Lamberia seus pés
se estivessem aqui.
(Para animar-me a libido, somente.
Bah! Só, minto.)
Duvido de sua esperteza,
nem eu me conheço tanto.
Nem no livro proibido
que troquei por minh'alma
existe anjo
de cauda tão escandalosa.
Será este o segredo da Rosa?
— Belzebu! Profana!
Profano seus templos.
Desfolha este velho mal-me-quer, desfolha!
Ainda sou o marlin
que venceu o arpão?
Este, que sem relutar,
se entrega ao amor
de antemão?
Camélia! Sus tetas
amal-limentam-me
em seu
Cale-se!
Cale-se você, antes que eu lhe cometa!
 
 
 

BOM MOÇO
 
Flerto com uma rima fácil
ela percebe, sacode a anca
e meu poema se manca
 
 
 

BRÁULIO
 
Cegos de amor
teus dedos lêem meu zíper:
Decifra-me, que te devoro!
 
 
 

SEM LUVAS
 
Tento não deixar pistas,
mas não consigo.
Impressões dentro do cofre e no umbigo.
 
 
 

PODÓLATRA
 
Debochados.
Teus pés caminham certos
De meu tropeço.
 
 
 

VÍCIO
 
Em torpe sonho
tua boca banguela
mastiga minha poesia concreta.
 
 
 

AGENTE DUPLO
 
Minha lingua safada
transcreve mensagens cifradas
em tua orelha e panturrilha.
 
 
 
 
(imagens de spaceyplum graphics)
 
 
 
 
Roberta Silva (Belo Horizonte, 1971) é Sweet Ragi (ponto de vista feminino) e Gulab Song (ponto de vista masculino). Vive em Belo Horizonte, tem poemas e contos publicados na Web, é inédita em livro.