CONFESSO
nem tudo que disse foi
acerto,
que não reconheço quase nada como erro,
que volto atrás em
promessas sérias,
que muitos chutes foram trave,
que trave, para
mim, é um quase acerto,
o limite do engano... e isso é
grave.
que era eu ao telefone
porque tem dias, poucos,
que um alô é muito
e o muito, muitas vezes me
cala.
confesso
quis também um silêncio salmoura
que
me reconhecesse antes mesmo de ser alô
e também se calasse
que
dissesse sei que foi você,
porque só seu silêncio me dói
e isso
bastasse.
VESTIMENTA
É dessa liberdade dos que questionam
e
de novo e de novo se resta dúvida.
Desses que dizem assim não pode
ser,
quando não pode.
Desse sorriso dos que escolhem a hora de
sorrir
e o fazem por alegria, não para aliviar a dor.
Desses que
não se surpreendem se o imprevisível está à porta,
pois sabem, ele,
previsivelmente, sempre vem.
Desse jogar basebol em estádio
iraquiano,
ler o alcorão com americano
e rir dessa rima pobre que
traz em si rico conteúdo humano.
Desse sentir-se pequeno diante do
mais pequenino
e a muralha que o protege do falso soberano.
Desse
fazer o que se é capaz e pelo menos um pouco mais,
que desenterra as
mãos para o trabalho
e as têm vezes quatro quando o Pai
questiona.
Desses que o mofo não trava os passos
e a porta larga
sempre lhes tira o ar.
Que estão felizes no palácio ou na
caserna,
que endurecem com a jornada
e só param com a vitória,
ainda ternos
que eu visto a camisa.
"CORRER COM LÁGRIMAS NOS
OLHOS..."*
É por não ter tempo para ouvir o
lamento
que cheguei até aqui.
Cravejada de balas, com membros
ceifados
que cheguei até aqui.
O tempo desse poema é para que
cuspam as balas
minhas entranhas.
Para que eu cresça de novo feito
lagarta.
Aos meus inimigos, em um pergaminho,
o segredo de minha
imortalidade.
Em cada túmulo que lhe aponto jaz um sacana que me
matou,
na lápide: descanse em tormenta, Seu Canalha, e que o diabo o
carregue,
e sobre ele um escarro no lugar de flor. Nada mais.
Nenhum nome. Nenhuma lembrança.
Deles, tatuado em minha pele, o
ensinamento.
Talvez, enterrado em mais de um túmulo, o mesmo
idiota.
Risco que corro por não lembrar nomes.
Já cuspi a última
bala e cresceu minha última unha.
Esse poema termina aqui.
*Lobão
DIFERENCIAL
Congelei notícias à tua partida.
O
tempo parou e todas as prensas.
Como magazine velho de
ante-sala
tive arrancada a garota da capa,
ainda assim espero que
me folheies.
De minha parede levastes
um sorriso falso de
Monalisa.
Prendestes os segredos de meu diário
em infinitas grades
de jogo da velha.
Faltam para as duas, dez, a mais de três
horas.
O relógio ri em dolo.
Num canto, só, demoro.
GULA
roubo um gole de via láctea
me vigia
enquanto pode
uma lua de bigode
SIMPATIA
Te bebi naquele
dia
porque era réveillon
e tu, minha sopa de lentilha
BRIGADEIRO
Há três dias ele não
liga.
Bato na mesma tecla:
— Não ligo!!!
REALISTA II
Fim de expediente.
No
prato da periferia
muita carne moída e ora-pro-nóbis.
FANTASIA
Festa de Halloween.
Tiro minha máscara
e saio vestida de bruxa.
HERESIA
Entreabertos
meus lábios diletos
blasfemam:
— Não mais lhe quero!
Os meus, devotos eternos
seus,
sussurram trêmulos:
— Não creio! Não creio!
*
Tarde de verão.
Filamentos de
nuvens
assinam a obra.
VERDADE PATOLÓGICA CRÔNICA
A cabeça
da Maria Antonieta
depois de cortada
ainda mexia os
lábios,
beatos juram ser prece última ao Altíssimo.
Talvez. Fosse
eu, rogaria ao carrasco.
É, para falar é preciso cabeça.
Para ser
ouvido, garganta.
Tem os que dizem que a fala vem do
coração.
Concordo, mas só a que demora.
Aterradores são os recados
da natureza
quando nos voltamos contra ela.
Alguns tiros pararam o
coração do Che Guevara.
Muitas mãos não conseguiram fechar seus
olhos.
Reza a lenda que do corpo de Antônio de Pádua
os vermes
pouparam a língua,
será que a verdade a deixou insossa?
De minha
vida talvez nada que possa sobreviver
ao dia da minha
morte.
Minhas palavras são unhas que tento cravar
nas páginas da
História.
DESACATO
libertinagem antes que eu arda
meus
dedos querem
invadir a tua farda
INCONCORDANTE
Meus olhos chorou.
Neles lágrimas para
um só.
Alma plural, verbo singular.
O outro jaz.
Perdão, foi o
melhor que pude.
A dor cavou,
mas não encheu o
açude.