A idéia é excitante e instigante. Franco Moretti se propõe a analisar a literatura, seus movimentos, sua formação e transições através da configuração cartográfica. Em outras palavras, ele montou, no sentido mais literal da palavra, mapas da literatura européia do século XIX, no gênero de sua especialidade, o Romance.

 

A premissa é de que, ao visualizar a movimentação dos ambientes pelos quais os personagens e seus enredos caminham, constata-se uma possibilidade completamente nova e original de entender a realidade descrita (e formada) pela palavra. Como é a Londres vista pelos olhos e livros de Dickens? Ou a Grã-Bretanha pelos de Jane Austen, Paris nos romances de Balzac, a Espanha de Cervantes, a Escócia pelos personagens de Walter Scott? Mais do que a simples visualização: o que os mapas podem nos dizer dos próprios autores? Como a geografia interfere na feitura de seus livros? Quais são e onde se localizam os becos pelos quais transitam Sherlock Holmes e seu elementar companheiro e, mais importante, como isso pode nos ajudar a compreender o modo como Conan Doyle concebe a cidade e suas divisões sociais?

 

A idéia de usar mapas na crítica literária não é lá muito original, como constatou, surpreendido, o próprio Moretti, ao iniciar os trabalhos de pesquisa para esse livro. Na verdade, a lista é bem grande; e, inclusive, à medida que são mais modernos, mais coloridos e cheios de detalhes ficam. No entanto, há uma enorme diferença nas respectivas propostas. Para aqueles atlas literários, o mapa é somente uma figuração, uma ilustração dos pensamentos já expressos e concluídos pelo texto; são apêndices coloridos. Para Moretti, a formatação do mapa não conclui nada, não é o final do trabalho; ao contrário, isto só determina o começo dos questionamentos. Com o material na mão é que chega o momento de se perguntar: E aí? O que isso mostra? O que se pode perceber? Qual pensamento devo seguir daqui para frente?

 

O resultado é fascinante. O texto leve, bem cuidado e didático de Moretti aliado aos mais de noventa mapas, figuras, tabelas, compõem uma das mais belas obras lançadas nos últimos anos, tanto pelo seu aspecto gráfico, proporcionando um verdadeiro espetáculo visual, quanto no apuro técnico e no esforço despendido pela acumulação de dados, cruzamentos de informações e sua compactação cartográfica que, percebe-se, deve ter custado muita força bruta, considerável paciência e bastante suor.

 

É muito fácil compartilhar do entusiasmo de Moretti. De repente, tudo fica muito claro! Tomemos os livros de Jane Austen, por exemplo (ela e Walter Scott compõem o primeiro capítulo deste Atlas). Observemos as cidades onde seus personagens convivem, nascem, casam e morrem. Aos nossos olhos levanta-se uma Inglaterra literária-cartográfica inédita, curiosa e diferente. É óbvio que da simples leitura dos seus romances já sabíamos de sua ruralidade, do mercado de casamentos, da ascensão dos novos-ricos e da formação da metrópole em contraponto a uma existência rural; a novidade não está nisso. A questão é que se pode enxergar tudo isso em um relance. A imagem fica valendo por verdadeiros ensaios. Notemos como o número de cidades é tão restrito e como todas ficam tão próximas entre si. Notemos como geralmente são os homens que viajam (para o "estrangeiro", para um lugar estranho, exótico e indefinido) enquanto as mulheres ficam em suas terras natais. Isto é, enquanto não se casam: são elas que vão acabar morando na casa do seu amado. Esse final é a conclusão feliz de uma série de incidentes envolvendo a posse formal, ou não, de uma terra própria (no campo, no mundo rural) sendo que as personagens femininas que terminam mal são as que resolveram viver na cidade, em Londres, é lógico; ou então, as que tiveram uma educação francesa!

 

É interessante notar, também, o que Não é mostrado por Austen: nos mapas "austenianos" não existe a Irlanda, nem a Escócia, nem o País de Gales nem a Cornualha. Inclusive, nem o Lancashire, todo o Norte da Inglaterra e a respectiva Revolução Industrial...

 

Nada disso é casual ou coincidência, embora não tenha sido consciente. Ao escrever, e desta forma transcrever sua época, Austen está expressando sua realidade. Física, geográfica e ideológica.

 

O capítulo II tem como eixo os romances de Balzac e Dickens, com cada um retratando, mistificando ou revelando a Paris e Londres modernas. Para dar conta de uma complexidade maior, de uma modernidade avassaladora e assustadora, Balzac é obrigado a revirar o esquema do romance tradicional, suplantando o sistema binário de Austen, fielmente seguido por Dickens (campo/cidade, felicidade/infelicidade, ordem/caos, heróis/vilões). Pela primeira vez, Toda a cidade é retratada, com seus recantos escuros e sua luxuosidade esplendorosa junto com ... um terceiro elemento, o fator intermediário, a classe média, a fútil (e rica) burguesia ascendente. Balzac, assim, cria o Romance Moderno em sua plenitude.

 

Para Moretti, a Literatura não "acontece" no espaço; a Geografia não é um receptáculo ou uma caixa aonde a história cultural é jogada. A Geografia DETERMINA a Literatura. Configura os enredos, delimita os caracteres, induz os escritores, cria os estilos. A Geografia Cultural é apresentada como um método único e privilegiado de análise; "Atlas do Romance Europeu", sua defesa apaixonada e sua aplicação exemplificada, um autêntico manifesto. E Moretti deve ser, então, o seu profeta.

 

Por certo, torna-se necessário refrear o entusiasmo contagiante e absorvente, conter o fascínio pelas cintilantes considerações do autor, considerar o texto do modo mais cuidadoso possível e reconhecer as várias armadilhas contidas em suas proposições.

 

O problema maior reside em considerar os termos objetivos da equação como se fossem "A" representação objetiva da realidade. O perigo está em esquecer o poderoso sentido subjetivo da construção do pensamento. O que Moretti propõe é o seguinte: peguemos os dados "objetivos" irrefutáveis (números, "fatos", enredos, localizações, etc), cruzemos as informações, conheçamos as intermediações e joguemos isso para o plano horizontal visível, como os mapas e as tabelas. Para conhecer a realidade, portanto, bastaria dar uma olhada na imagem. Pelo seu "método", por onde começaria a verdadeira pesquisa? Pela interpretação dessa realidade cartografada? Mas, Interpretação não é Subjetivação? Não depende, em último caso, do plano do pesquisador, de seu conhecimento acumulado, de sua orientação ideológica?

 

Mais (e pior): a subjetivação começa, na verdade, na própria feitura da organização dos dados. O pesquisador (o "cartógrafo cultural", digamos assim) precisa delimitar de antemão qual o recorte necessário para caber dentro daquele determinado plano. Quando olhamos para o mapa "objetivo", estamos observando uma realidade já demarcada e direcionada anteriormente, quer tenhamos consciência disso ou não.

 

Essa é em tudo e por tudo, uma velha discussão: qual a real validade da aplicação dos critérios e métodos das ciências exatas para as ciências humanas? A junção de diversas vertentes científicas trabalhando em parceria pode resultar em verdadeiras explosões criativas, como o demonstrou a Escola dos Annales ou de Frankfurt, mas também podem acabar em algumas aberrações como a História Quantitativa, que consegue reduzir a história humana a puras estatísticas.

 

O terceiro e último capítulo do "Atlas" beira pelos perigosos limites da extrapolação científica, demonstrando de forma cabal a fragilidade do método "morettiano". O foco muda: nos dois primeiros capítulos, Moretti mostra como o espaço ficcional é determinado pela geografia, através da literatura; agora é a literatura se movendo pelo espaço físico da geografia. Isto é, vemos como se comportam e como se espalham os diversos gêneros literários pela Europa durante o século XIX. As tabelas e os gráficos tomam o lugar preferencial dos mapas. (É curioso observar como os críticos norte-americanos, depois de torcerem o nariz para os capítulos 1 e 2, taxando-os de superficiais, alegram-se com o 3, e dizem que aqui, sim, entramos na verdadeira contribuição teórica de Moretti. Por "coincidência", os norte-americanos fanáticos por estatísticas e números tabelados são os criadores da História Quantitativa).

 

Nós, do século XXI, já sabemos de antemão como termina essa linha histórica: pela preponderância dos modelos literários do Romance francês e inglês pelo resto da Europa. As tabelas comprovam-no, somente. O alarmante são as conclusões rasas e quase levianas advindas disso. A insuficiência de dados, a inexistência ou perda de arquivos bibliotecários antigos e o uso indiscriminado (e quase irresponsável) da tirada de amostragem, critério estatístico por excelência, fazem com que a média numérica seja tomada pela representação da história cultural per si. Com alguns saltos teóricos pelo meio, chega-se a conclusão de que é a geografia que comanda, como a formação dos gêneros e seus respectivos estilos, sua configuração espacial, a influência do centro para as periferias, enfim, sua existência no plano físico.

 

O surpreendente é que nenhuma de suas contradições diminui a importância nem o brilho, muito menos a beleza, deste Atlas. Ele joga lenha, de uma forma muito elegante, saudável e lúdica, divertida até, em uma discussão de cuja resolução só beneficia o pensamento humano. E, no final, fica a tremenda vontade de adaptar o Atlas para o nosso país. Como seria observar um mapa de São Paulo através da obra de um João Antônio ou um Marcos Rey, o Rio de Janeiro por Machado de Assis e Lima Barreto, Salvador por Jorge Amado?! Quem se habilita?

 

 

 

 

_____________________________________________

 

Franco Moretti. Atlas do Romance Europeu — 1800-1900. São Paulo: Editora Boitempo, 2003.

 _______________________________________

 

 

 

 

agosto, 2003

 

 

 

 

Claudinei Vieira. Escritor, roteirista e poeta. Professor de roteiro de cinema. Resenhista de literatura e humanas em sites como IgLer, Paralelos, Patife, Desconcertos. Tem artigos publicados na Folha de São Paulo e um conto premiado pelo jornal O Estado de S. Paulo. Curador e fundador do Cineclube Pandora, que atuou, originalmente, no Departamento de História da USP e realizou mostras e eventos relacionados com cinema em bairros de periferia de São Paulo. Organizador e professor no workshop on-line de roteiro de cinema Cidade dos Homens, projeto conjunto Educine — O2 Produtora. Realizou o documentário Só Podia Ser Mulher, de 2003, sobre a situação da mulher na região norte de São Paulo. Editor do Desconcertos.

 

Mais Claudinei Vieira em Germina

> Contos