antologia de poemas  

 

Cristiano Moreira. Rebojo. Florianópolis: Editora Bernúncia, 2005

 

 

 

 

 

 

 

ornamento às escusas do homem

vago, além da fruta efêmera

do suco sangue que bebo

da figura  teia de fogo

qual aquela no espelho dos olhos.

 

superfície dilacerando estrelas

caídas no ouvido do  mar.

 

funda o arrasto na surdez

trilham correntes vivas

repletas de intransferível saudade.

 

prefiro sangrar sozinho

esquálido torvelinho

sem mencionar o mérito.

 

teço na noite sem abas o alpendre

e ao mar deito-me cansado.

 

 

 

 

 

 

 

 

rebojo é um dia ao avesso

onde sopra um frio invertido.

 

o vento vem escanhoar

a face do rio

de escarlate tingido.

 

descem águas do monte.

embaça travessia da balsa de aço;

 

trás chuva no regaço

alagando bueiros

desmanchando canteiros.

 

nas bocas de lobo fidúcia

flor pálida de toda angústia.

 

 

 

 

 

 

 

 

Lá, só sal

 

Para Marcelo Steil

 

 

 

O pescador

em alto mar

junto ao pé de galo

ouve a respiração do sal

 

larga o espinhel com sangue e uma certeza:

o oceano

é um palíndromo imenso.

 

 

 

 

 

 

 

Lâmina – espelho: espanto!

 

a lata usada como balde rolava de bombordo a boreste, rodopiava no centro do convés e, no entanto, nenhuma luz acesa. somente vento solapando o costado. no interior da baleeira, último garrafão de vinho terminara, tornara-se um palíndromo:  só cacos.

a lata permanecia como único som na imensidão da costa sul, único som audível dentro da tribuzana, próximo ao cabo de Santa Marta, não havia outro cortejo de vozes a não ser o corte do vento lanhando pulmões deixando esvaírem-se gritos no ouvido de quem tentava dormir junto ao medo. mas não , não havia mais que a lata, recebendo um vermelho multiplicado; golpes de luminárias sobre as sal-picadas gotas turvas sob a luz de top, topando com as vagas e fugindo, fingindo não importar-se com o destino. o verdugo não mais resistia fora da lâmina d’água; lamina aliás, em  chuva de navalhas inchadas cujas carnes trêmulas já emulara. noite. era sexta-feira santa....naquela tarde, contra os protestos da tripulação, ordenara o mestre que afiassem bem as facas para cortarem os cações e arraias, e que a chuva anunciada pelos cúmulos-nimbos, lavasse o sangue sobre o convés.

 

 

 

 

 

 

 

 

"as ondas suspenderam a respiração por um minuto

em homenagem a um peixe que morreu"

                                                 

                                        Murilo Mendes

 

 

 

ouço o rio

algo assovio de silêncio

 

ouço, mouco mas ouço

o ossuário e seu ranger subaquático

 

ouço o aço

abrindo a pele do rio

ouço o ruído de hélice

agulha

que aglutina, sutura

        tece a soltura

das tesouras em movimento

sutra entre ondas e estilhaços de sol

 

eu navegante observo

as saias das margens

 

ouço navios

como quem ouve pássaros

no adorno de seus ninhos aquáticos

 

 

 

 

 

 

 

 

céu pedrento, traz chuva ou vento.

assim o oráculo experiente dos pescadores mais antigos

alerta contra qualquer previsão.

 

baleeiras nestes dias devem abraçar-se ao leito

do rio ancorado à margem, terra firme

é igual um simulacro de segurança...

 

desistiu da viagem. no entanto,

ao sair do barco, tropeçou

tentou agarrar-se à gaivota voando baixo

mas a cabeça encontrou antes

o trapiche escuro com os dentes arreganhados.

 

 

 

 

 

 

 

 

RAMALHETE DE ROCHAS

 

 

 

"Todo rio é um convite ao sobressalto, à morte através de chamas e venenos terríveis. Todo rio é um convite ao amor entre raízes milenares e campos roxos sulcados por veios de cristal"

                                                                                                        Cláudio Willer

 

 

I

 

sobre o molhe vaga

o sal 

o sol 

o lume no

movimento inconsútil, eterno:

diáfano lençólíquido

de salivas montanhescas

a regir regar e ranger

os dentes contra este

ramalhete de rochas

 

aqui inicia a vastidão.

 

 

II

 

neste vergal de pedras

há um olho hirto

                    aberto

                    convulso

indicando limites

no deslimite do  rio Itajaí – açu

 

além do pontal de terra

a luz do trilho

é o brilho antigo

dos liames linfáticos

de anêmonas e mães d’água.

 

 

III

 

reiteram-se  manhãs

nas manhãs v a z a n t e s

imagens fugidias levam

em mil pétalas barrentas

trinta mil olhares indiferentes

 

além de baleeiras, bateiras

(papa - lavagens) repletas de puçás

e um homem com dois terços de vida e meia visão

mergulha no vidro os braços de madeira

 

somente ele na solidão de remador

ouve no átrio a cidade ecoar.

 

 

IV

 

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V

segue assim o soldado

com seu elmo de barro

marcha para o mar

ao quebra-mar.

sua armadura insondável

dourada como o imperador

é agora antes de mais nada

casca errante. suja e rota

simples lama na calçada.

 

o rio

dilacera o pulso

na boca da barra

(cimitarra de rocha)

sangra mar afora.

 

 

 

 

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Cristiano Moreira: rebojo@terra.com.br

Editora Bernúncia: bernuncia@terra.com.br

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dezembro, 2005