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Livro
apresenta as intermitências e duplicidades de uma das maiores
autoras da língua inglesa
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O que chama a atenção no primeiro lance de se abrir a capa dura,
encadernada, vermelho-renda, desta metro-edição dos Contos Completos (Cosac
Naify, 472 págs., R$ 59) de Virginia Woolf, além da presença de dois
expressivos retratos seus, tirados no intervalo de 5 anos (entre 1920-1925),
nos quais se nota a transição do claro-escuro em que se debatia sua alma
dúplice — é a ausência total de quaisquer dados sobre a autora ou sobre o
livro. Passado o índice, entra o leitor diretamente no mundo da escrita
vírgino-lupina (ou woollfiana) sem nenhum Virgílio que o possa direcionar
nessa excursão à selva obscura. Mas examinando as páginas finais em busca do
cólofon, vê-se logo a razão dessa inexistência biográfica ou prefacial. O
leitor brasileiro positivamente não tem medo de Virginia Woolf, apesar de
sua leitura inusitada: todos os seus romances já foram lidos em português em
traduções assinadas por escritores da excelência de um Mário Quintana,
Cecília Meireles e Lya Luft, e certamente sabe tudo a respeito da vida da
autora, já que foram publicadas no Brasil nada menos que três de suas
biografias (Quentin Bell, John Leeman e Monique Nathan). Além disso, vários
de seus contos, ensaios, diários e fragmentos biográficos constam da relação
de seus livros editados no Brasil. Faltavam os contos em sua completude — e
ei-los aqui na magnífica tradução de Leonardo Fróes, que acrescentamos sem
favor a esse trio de tradutores que o precedeu na prestidigitação de trazer
ao leitor brasileiro o lusco-fusco, as intermitências e duplicidades dessa
que é sem dúvida uma das maiores autoras da língua inglesa.
Virginia (Adeline V. Stephen) Woolf (1882-1941) — para os poucos leitores
que ainda ignoram os lances principais de sua vida — nasceu em Londres, e
era filha do crítico e historiador Leslie Stephen (1832-1904); sua mãe,
Julia Duckworth morreu quando Virginia tinha 13 anos, deixando-a com os
primeiros sinais de depressão, agravados com a morte do pai, nove anos
depois, quando ela tentou o suicídio atirando-se pela janela. Seus escritos
biográficos, durante muito tempo inéditos, revelam que aos 6 anos sofreu
abuso sexual por parte de seu meio-irmão, Gerald. Começou a escrever
profissionalmente em 1905, de início para o Times Literary Supplement,
artigos de crítica e contos, nem sempre assinados, o que tem dado grande
trabalho de identificação aos seus pesquisadores. Em 1909, Giles Lytton
Stranchey (1880-1932), escritor e historiador, dândi e homossexual, pediu-a
em casamento, mas o pedido, embora aceito, foi retirado em seguida, e
Virginia acabou se casando logo depois com o intelectual Leonard (Sidney)
Woolf. O casal foi viver numa chácara em Sussex, onde Virginia escreveu seu
primeiro romance The Voyage Out, publicado em 1915 e editado entre nós com o
título de A Viagem. Os Woolfs montaram uma pequena editora para uso pessoal,
que depois se tornou a prestigiosa The Hogarth Press, editando obras de
grandes nomes da literatura inglesa como T. S. Eliot, Katherine Mansfield,
E.M. Forster, e traduzindo para o inglês textos de Freud, Proust e Rilke. Em
1923, retornaram a Londres, e Virginia voltou a ser acometida por acessos de
loucura e constante desconforto com sua condição de mulher, o que a levou a
se internar várias vezes para tratamento. Em 1925, já mantendo uma estranha
atração por sua irmã, Vanessa, veio a conhecer a aristocrata bissexual Vita
(Victoria) Sackville-West (1892-1962), casada com o homossexual Harold
Nicholson, e iniciou com ela um platônico romance que durou 18 anos e lhe
dedicou o romance Orlando (1928). Sabe-se que os respectivos maridos também
trocavam figurinhas e outras coisas entre si. Em 1932, com a morte de seu
primeiro pretendente, Lytton Stranchey, as crises depressivas de Virginia
retornaram, mais freqüentes. Desesperada com seus tomentos existenciais,
recorreu ao suicídio, redigindo três cartas, duas ao marido, numa das quais
dizia: "Sinto que não podemos atravessar outra dessas épocas terríveis. Não
vou me recuperar desta vez. Começo a ouvir vozes e não consigo me
concentrar. Então estou fazendo o que me parece ser melhor. Você me
proporcionou a maior felicidade possível... Não posso mais lutar, sei que
estou destruindo a sua vida, que sem mim você poderá realizar-se." No dia 28
de março de 1941, Virginia encheu de pedras os bolsos do seu casaco e
afogou-se no rio Ouse, perto de sua casa. O corpo foi encontrado três
semanas depois numa das margens e suas cinzas enterradas sob um dos grandes
ulmeiros da propriedade onde viveu. (Estes dados foram extraídos do
excelente Dicionário de Suicidas Ilustres, de J. Toledo, Editora Record,
1999.)
Os leitores aditos
da Woolf certamente não precisarão de nada mais para
correr aos contos completos lançados agora; mas, para motivar
aqueles que ainda ignoravam alguns dos lances biográficos mencionados
acima, seria oportuno dizer que a mente conturbada de Virginia, sua
indecisão ou ambigüidade sexual, seus traumas e depressões
refletem-se palpavelmente em sua literatura. Ela foi um dos primeiros
autores ingleses a pôr em prática o stream-of-conciousness
(aproximadamente, o fluxo do consciente), abolindo a exposição
sistemática e linear da ação, da descrição
e/ou do enredo, e subvertendo o conceito do tempo literário;
nas palavras de E.M. Forster, "ela impulsionou a língua
inglesa um pouco mais para dentro da escuridão". Um de
seus contos mais característicos é Objetos Sólidos,
que começa por uma visão sideral de dois pontos minúsculos
que se movem na areia de uma praia. Logo um zoom violento os transforma
em duas pessoas que conversam sobre política. Um estranho objeto
— um caco de vidro, uma lasca de louça? — encontrado
na areia chama a atenção de um deles, que é parlamentar.
O achado desenvolve no político uma obsessão por colecionar
fragmentos, levando-o a revolver monturos e transformar a cornija
da lareira num amontoado de detritos inúteis. A precisão
ou minúcia com que Virginia Woolf descreve esses fragmentos
é tão ou mais importante do que qualquer ação
que porventura a narrativa tivesse. Outro momento admirável
de prosa rendilhada, um verdadeiro pontilhismo literário é
o que se encontra em Azul e Verde. Como estamos falando da tradução,
é preciso que os leitores saibam que irão encontrar
nessa obra um digno respeito do tradutor pelas qualidades mais recônditas
e sublimadas da prosa virginiana. E, se conhecem os contos em inglês,
irão se comprazer com a perícia com que Leonardo Fróes
conseguiu, numa verdadeira tradução integral, reproduzir
em português essa dicção personalíssima.
Vejam
só: "The pointed fingers of glass hang downwards. The
light slides down the glass, and drops a pool of green. All day long
the ten fingers of the lustre drop green upon the marble. The feathers
of parakeets — their harsh cries — sharp blades of palm
trees — green, too; green needles glittering in the sun. But
the hard glass drips on the marble; the pools hover above the desert
sand; the camels lurch through them; the pools settle on the marble;
rushes edge them; weeds clog them; here and there a white blossom;
the frog flops over; at night the stars are set there unbroken. Evening
comes, and the shadow sweeps the green over the mantelpiece; the ruffled
surface of ocean. No ships come; the aimless waves sway beneath the
empty sky. It's night; the needles drip blots of blue. The green's
out. (Blue
& Green). Os dedos de vidro pendurados apontam para baixo. A luz,
ao deslizar pelo vidro, derrama uma poça verde. O dia inteiro
os dez dedos do lustre derramam verde no mármore. As penas
dos periquitos — seus gritos dissonantes — cortantes lâminas
de palmeiras — verdes também; verdes agulhas reluzindo
no sol. Mas não pára o duro vidro de gotejar sobre o
mármore; sobre a areia do deserto as poças ficam suspensas;
por elas cambaleiam camelos; as poças se assentam no mármore;
juncos as margeiam; e ervas se grudam nelas; aqui e ali uma flor branca;
o sapo salta por cima; de noite as estrelas são afixadas intactas.
Aproxima-se a noite, e o verde, varrido pela sombra, vai para cima
da lareira; a superfície enrugada do oceano. Não há
navios chegando; as ondas a esmo balançam sob o céu
vazio. A noite avança; das agulhas agora pingam traços
de azul. O verde ficou de fora. (Azul e Verde). Uma festa para os
olhos e o espírito.
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Virginia Woolf. Contos
Completos.
Tradução de Leonardo Fróes. Rio de Janeiro, Cosac
Naify, 2004.
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dezembro, 2005
Ivo Barroso nasceu na cidade de Ervália, em Minas Gerais. É poeta, ensaísta e tradutor. Entre as dezenas de livros traduzidos (veja aqui), constam: 30 sonetos, de William Shakespeare (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991); O livro dos gatos, de T. S. Eliot (Rio de Janeiro: Nórdica, 1991); Diário Póstumo, de Eugenio Montale (Rio de Janeiro: Record, 2000); Hipóteses de Amor, de Annalisa Cima (S. Paulo: Ateliê Editorial, 2002); O Torso e o Gato, antologia com poemas de Rilke, Shakespeare, Blake, Yeats, Eliot, Lorca, Baudelaire, entre outros (Rio de Janeiro: Record, 1991); e a tradução da obra completa de Arthur Rimbaud: Poesia Completa (Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. Organização de Ivo Barroso) e Prosa Poética: Uma estadia no Inferno (Rio de Janeiro: Topbooks, 1998) — agora, Ivo prepara o último volume: A Correspondência. Publicações de sua autoria: Nau dos náufragos (Lisboa: Minerva, 1981); As quatro visitações de Alcipe (Lisboa: Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, 1991); A caça virtual e outros poemas (Rio de Janeiro: Record, 2001. Prefácio de Eduardo Portella). Alguns prêmios recebidos: Prêmio Jabuti pela tradução de O livro dos gatos, de T. S. Eliot, em 1992; Prêmio Paulo Rónai da Biblioteca Nacional pela tradução de A novela do bom velho e da bela mocinha, de Italo Svevo, em 1997; Medalha de ouro Blaise Cendrars, concedida pela UBE, em reconhecimento à tradução de A novela do bom velho e da bela mocinha, de Italo Svevo, em 1998; Prêmio Jabuti pela tradução de Prosa Poética: Uma Estadia no Inferno — o segundo volume das obras completas de Rimbaud—, em 1998; Prêmio da ABL (Academia Brasileira de Letras) de tradução por seu trabalho no Teatro Completo, de T. S. Eliot, em 2005. Mais no Jornal de Poesia.
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