Sophia

 

Sophia foi o nome que lhe deram.

 

E quem a batizou foi Antenor, o Velho, que a trouxera pra fazenda em lombo de burro, nos idos de lá vai bolinha. E era tão linda e imponente em sua capa de brocados que Júlia, a Velha, dela enciumou-se. E tinha razão a bisavó, pois que Antenor deu à Sophia a cabeceira da mesa. E à noite, após a sopa, era nos braços e abraços de Sophia que o bisavô fumava cachimbo, lia poetas franceses em voz alta ou apenas sonhava.

 

Quando nasceu Heloísa, Júlia engoliu a ciumeira toda e dividiu com Sophia acalantos e aleitamento. E até mesmo deixou que a filha, algumas vezes, dormisse no colo de Sophia.

 

Heloísa aprendeu piano, francês, aquarela e bordados. E foi Sophia quem, silente e compassiva, lhe ouvia tocar Pour Elise, recitar versos de Corneille, talvez por isso, foi o retrato de Sophia sua melhor pintura e foram pra Sophia seus mais delicados pontos.

 

No casamento de Heloísa e João Manoel, Sophia aparece na foto oficial dos noivos e em todas as demais que foram feitas adiante, quando iam nascendo os meninos. E esses meninos tomaram rumo pela vida e deles nenhuma notícia houve que mereça ser contada. E na fazenda só ficou Nieta, a única menina, que cuidava do que restara da família. E de Sophia.

 

Nieta, de nome Antonieta, conheceu Miguel quando já ia pelos 40 e ele passava dos 60. Viúvo, pai de muitos, avô de outros tantos, Miguel era catalão de Barcelona, marinheiro, quando há muitos anos chegara ao Rio de Janeiro e por lá fizera sua vida sabe o demo aprontando o quê. Quando enviuvou e já sem braços que suportassem as amarras e os lemes, tomou o rumo do interior, na intenção do que desse e viesse. Assim foi que num fim de tarde pediu pouso na fazenda. E foi ficando.

 

João Manoel, que já variava pra mais de década, passava a vida cochilando nos abraços de Sophia quando um dia, bem desperto e com roupa de domingo disse à mesa do almoço:

 

— Homem viúvo e moça velha morando sob o mesmo teto só consinto se houver casório. Foi conselho de Sophia que me disse durante o sono, num sonho e que assim se faça, ou o moço siga estrada que por aqui já cumpriu feito.

 

E casaram-se na capela da fazenda, onde poucas semanas depois se fez velório pra João Manoel.

 

Nieta, seca e alta, peito chato e os cabelos embranquecidos, mesmo assim ainda sonhava que Miguel se encantasse com suas outras prendas: seu silêncio, seu recato, seu cuidado com as coisas da cozinha e o doce de abóbora com coco que ninguém melhor fazia. Porém, assim não foi. Era nos braços de Sophia que Miguel passava as noites e fazia a sesta, pois que não há espanhol que não a faça.

 

Nieta, Antonieta, Maria Antonieta abriu o próprio ventre com a navalha de seu pai, às 8:45 da manhã de um domingo, depois da missa. Com a mesma navalha com que um pouco antes pusera fim a Sophia, rasgando-lhe o brocado desbotado, expondo forros e molas, entranhas e vísceras e jamais alguém soube contar se o sangue que inundou a sala toda foi da mulher ou da poltrona.

 

 

 

 
 
 

 

O Presente

 

 

Meu nome é Sebastiana Maria de Souza Carvalho, apelido: Tiana. Tenho 58 anos, sou viúva, mãe de 2 rapazes e 1 de uma moça, avó de um casal de crianças lindas como lindos só o sabem ser os netos. Vivo sozinha numa casinha modesta e, somadas minha aposentadoria de professora e a pensão que me deixou o Falecido, diria que vivo com dignidade. Eventualmente, engordo a renda mensal fazendo renda de bilro, arte que aprendi com minha avó, que foi mestra das navetes e dos fios. Dos bilros não sei, naqueles idos as mulheres eram discretas. Estou acima do peso, confesso. Os cabelos, pintados a cada quinze dias, estão louros e ondulados, foram negros um dia como asas de urubu, porque graúna eu nunca vi. Preciso ir ao dentista, mas tenho medo. A pressão se mantém estável graças a uma dieta saudável e não fosse uma artrose na cervical, eu diria que gozo de excelente saúde. Me distraio vendo novela, indo ao banco, conversando com uma ou outra vizinha, passando a limpo meu caderno de receitas... enfim, uma vidinha normal, arrumadinha.

 

Mas outro dia a Adélia, minha melhor amiga, telefonou bem cedo, era um sábado. Excitadíssima. Soubera de um baile que haveria no clube. Um Baile da Terceira Idade, uma confraternização pelo final do ano. Sugeriu que fôssemos. Em princípio me recusei. Segundo a Organização Mundial de Saúde a terceira idade  é só a partir de 65 anos, ainda me faltam 7!!! Porém, ante a insistência dela e a perspectiva de uma noite agradável na companhia de pessoas alegres e divertidas, concordei. Passei o vestido que usei no casamento de minha filha. Fiz as unhas. Escovei os cabelos. Me achei bonita.

 

O salão do clube estava belíssimo. Todo enfeitado de flores de papel crepom, cor-de-rosa. Uma orquestra. Um cantor. Uma noite amena, de lua cheia. Dancei com alguns senhores elegantes e muito distintos. Cheiro de cigarro e cerveja nos sorrisos que a mim trouxeram lembranças de  melhores dias.

 

À meia-noite a orquestra parou e o Diretor Social do clube anunciou que haveria um sorteio entre as senhoras presentes. O prêmio, uma surpresa. Minhas pernas tremeram quando ouvi o meu número sendo sorteado. O coração disparou quando me dirigi até o palco para receber o meu prêmio. Uma caixa enorme embrulhada com papel azul e laços de fitas brancas. Desatei os laços, rasguei o papel, abri a caixa e de dentro dela saiu o  prêmio.

 

Só meu!

 

E era belo como uma carro alegórico da Beija-Flor! E tinha mais músculos do que carne de sopa! E o corpo jovem recoberto de tantos pêlos que fariam inveja ao Tony Ramos! E os olhos ávidos por minhas carícias oscilavam entre o azul e o lilás, como os da Elizabeth Taylor! E a língua, carmim, prometia deliciosas lambidas, anunciavam loucuras e delírios! E ele me olhava com olhar faminto por amor e companhia. Me desejava com a fome atávica dos desejos!

 

Não resisti. Me enrosquei naquele corpo jovem, apertei seus músculos de encontro a minhas carnes flácidas, deixei que me lambesse todinha, enquanto minhas mãos exploravam seus músculos, enquanto minha voz rouca inventava palavras até então jamais ditas por minha boca, que eu desconhecia fosse tão devassa.

 

 

Hoje ele vive comigo, come da minha comida, dorme em minha cama, acalenta minhas noites, enfeita meus dias, engalana minha vida...

 

Um homem!

 

Estranho que quando conto isso, todos pensam que ganhei um cachorro. E a dúvida me angustia: há tanta diferença assim entre um e outro?

 

 

 
 
 
 

Quarteto Dissonante

 

 

Valéria e Cristiano eram vizinhos de Marlene e Jurandir.

 

O apartamento de Marlene e Jurandir era próprio, a cobertura de Cristiano e Valéria era alugada. Maria Eduarda e Mateus, os filhos de Cristiano e Valéria, iam para a Escola Americana levados pelo motorista da madrasta de Cristiano. Marlene levava Jaqueline e Júnior para a escola pública, de metrô.

 

Cristiano jogava bridge e Jurandir ia ás reuniões do Sindicato. Marlene fazia boneqinhos de biscuit e Valéria tinha aulas de Literatura Francesa Medieval. Maria Eduarda e Mateus faziam equitação, o padrasto de Valéria era sócio da Hípica. Jaqueline e Júnior faziam ginástica olímpica no Clube do Sindicato, onde Jurandir era Diretor Social. Cristiano dirigia um carro importado da empresa do padrasto de Valéria, Jurandir dirigia uma Kombi com a logo de seu lava-a-jato pintada na lataria.

 

Quando Valéria e Marlene entravam juntas no elevador, o perfume francês de uma fazia a outra espirrar e a colônia da Avon da outra fazia a uma prender a respiração. Marlene sempre sorria, Valéria sempre fingia não perceber. Se Jurandir e Cristiano cruzassem no elevador, o primeiro falava sempre sobre o último jogo do Flamengo, Cristiano torcia pelo Bayern Leverkusen.

 

E Jurandir foi eleito síndico em reunião privativa de proprietários. Seu lema de campanha: Confraternização & Solidariedade. Primeiro ato do novo síndico: uma festa no salão. Circular nas caixinhas de correspondência: todos fantasiados, às mulheres, docinhos e salgadinhos; aos homens, cerveja. Na noite da festa Maria Eduarda e Mateus, debruçados na varanda da cobertura, viam a algazarra das crianças no playground que sempre lhes fora proibido e onde Jaqueline e Júnior reinavam absolutos. Cristiano escutava Mahler, Marlene estourava pipocas na cozinha do salão. Valéria chegou do cabeleireiro e tomou o elevador de serviço na garagem, Jurandir entrou com ela, carregando engradados de cerveja.

 

E o black out!

 

Entre dois andares. Nos primeiros segundos, tentativas. Aperta esse botão, mexe na porta, calor, uma cerveja, parece que vai demorar, que merda de perfume forte.

 

Mateus e Maria Eduarda fogem pela escada, Cristiano vai atrás.

 

A camiseta suada, o perfume francês, a mão de Jurandir é áspera. Cristiano elogia as pipocas, Marlene enxuga as mãos no avental. O peito cabeludo de Jurandir em nada lembrava o peito bombado de Cristiano. Os peitos fartos de Marlene em nada lembravam o silicone de Valéria.

 

Ainda são vizinhos, não mais se cumprimentam no elevador. As aulas de Literatura Francesa Medieval aumentaram para 3 vezes por semana nos mesmos dias das reuniões extraordinárias do Sindicato. Além do bridge há também jogos de xadrez e gamão e aos bichinhos de biscuit foram acrescentados outros, de pelúcia e cursos de capinhas de botijão de gás, liquidificador, etc. e tal.

 

E Maria Eduarda e Mateus, Jaqueline e Júnior brincam no playground até a hora que bem entenderem. De médico.

 

 

 
 

 

Hotel Rodoviária

 

o mofo traçava nas paredes mapas de estranhas paisagens...

 

eram riscos na minha alma arranhões que por ali foram deixados por outra alma que traçou mapas em minha vida e que pra lugar algum me conduziu que não pro mesmo eterno sempre ponto de partida e os recomeços trazem em sua essência a esperança de que possa ser diverso quando diverso só é apenas o modo como se conta uma história e todos os enredos se misturam e todas as histórias são a mesma história

 

a lâmpada  vermelha desfocava os objetos que projetavam...

 

sombras sombras soturnas sombras perdidas em muros em chãos sombras dos ecos das vozes da vida vida perdida em muros em chãos

 

a estatueta de porcelana barata era de uma deusa...

 

imolada no altar de todas as perdas dilacerada como se alma me fosse retalhada abrindo sulcos por onde escorresse  a bílis que corria em minhas veias pois que sangue já não tinha desde que me esvai nas esquinas de tantos desencontros ofertando o que me foi negado como se eu me negasse a receber o que me fora prometido

 

um cheiro azedo, de vinho velho, impregnava...

 

o lençol que descobrira meus desejos tinha nódoas de todas as cores como se os líquidos em que me desfazia a cada toque pudessem ter as cores de todas as sensações e medos e rebeldia e covardia e tesão e o prazer de me sentir sugada esvaziada morta a cada orgasmo renascida a cada orgasmo viva a cada orgasmo como se meu princípio e meu fim estivessem gravados nas linhas da palma daquela mão que afagava como mesmo ódio com que batia que batia com o mesmo desejo com que afagava

 

o letreiro, de néon vermelho, iluminava a noite como se fosse um...

 

farol de perdidos navegantes porto seguro em mar de tempestade raio de sol por dentre as nuvens negras ombro peito descanso fim da busca perda desencanto vontade de que assim não fosse sabendo que só assim é que era que seria  para sempre  e nunca mais e a caligrafia trôpega da navalha escreveria o final da minha história da minha vida do meu sonho de nunca acordar

 

Hotel Rodoviária, aqui começa e termina a sua viagem.

 

 

 

 
 
 

Para sempre e nunca mais são expressões que não fazem parte da vida

 

 

"E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura

 Com o solene decoro de seus ares rituais

 "Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado

 Ó velho Corvo emigrado lá das trevas infernais!

 Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."

 Disse o Corvo, "Nunca mais..."

Edgard Allan Poe

 

 

Escorria vermelho pelo queixo mas era marca de batom que sangue já não havia em qualquer veia artéria corpo que era vazio e o batom pingava no papel deformando frases que foram palavras palavras que foram atos atos que foram sentimentos sentimentos que foram machos alguns até que foram homens e nenhum fora verdade pra que o corvo repetisse "para sempre" ensaiava uma biografia como se soubesse que bio é vida como se pensasse que vivera que passara deixando rastro de acácias em alheias sacadas e gosto de tâmara madura no deserto daquelas mãos que descobriram seus mistérios seus segredos revelados e a marca que a gilete deixara onde agora uma algema lhe prendia às palavras lhe prendia as palavras que furiosas tentavam romper os nós que as cordas as vocais amarravam e apenas uma baba azeda escorria derretendo o batom que escorria pelo queixo deslizou pelo pescoço fez caminho pelo peito e era ácido que perfurou o seio esquerdo fez buraco abriu cratera perfurou o coração que caiu sobre o papel com que o embrulhou e fez caminho pra lixeira.

 

Livre, 8:55 de uma manhã de domingo dourado, vestiu seu menor biquíni e foi dar um mergulho naquele pedacinho do Atlântico que banha Ipanema.

 

Feliz!

 

 

 
 
 
Ro Druhens. Escritora, poeta, primeiro lugar no concurso  "Ferreira Gullar para poesia em língua portuguesa", promovido pela Editora Uapê, em 1999, participou da coletânea Alguns Contistas Contemporâneos (Editora Uapê-RJ). No prelo, o livro O que transborda pelas margens, a ser publicado em 2006. Escreve no blogue Engrenagem. É uma das Escritoras Suicidas.