Rodrigo Leão – José Aloise, como foi participar da antologia "O Achamento de Portugal", de Wilmar Silva?

 

José Aloise - Tem gente que detesta antologias. Não é o meu caso, pois espontaneidade é fundamental. Foi com honradez, discernimento e respeito que recebi o convite do poeta e editor da anomelivros, o Wilmar Silva. Dialogar com as raízes portuguesas sempre foi importante pra mim. Primeiro, porque o meu sobrenome é português e galego (Bahia/Vahia). Participei da antologia com o soneto desprendido "O País que Não Conheço Deu-me Um Bisavô". Incorporei ao poema o sobrenome, "lá no meio da baía vislumbra um castelo / lá no meio da baía vislumbra um cardume", pois os Bahias/Vahias, nas Idades Média, Moderna e Contemporânea eram/são pescadores simples de sardinhas das baías do Norte de Portugal e Galícia espanhola. Nas minhas pesquisas sobre essa alcunha e sobrenome, identifiquei um personagem interessante: Jerônimo Bahia (ou Baía sem a letra H). Parece que saiu mais ou menos fugido de Portugal. Ele chegou nas Alterosas por volta de 1680/90. Instalou-se em Pitangui, uma das cidades mais antigas de Minas Gerais. Acredita-se que veio atrás de ouro. Segundo, pela grata coincidência: o meu bisavô (João Bahia da Rocha), que era rábula (advogado prático. Fez um curso de seis meses na cidade do Rio de Janeiro, por volta das décadas de 1880/90) nasceu em Pitangui. Transferiu-se para minha cidade natal — Bambuí —, na juventude. Casou-se por lá, e exerceu a função de advogado prático. A feitura do poema é uma homenagem, um diálogo com a minha linhagem portuguesa e mineira. No meio do caminho existe um outro diálogo com algo que permanece, que falta e me deixa meio inquieto: a história e o mar. O mar, pra mim que sou mineiro, evoca um turbilhão de imagens, memórias e algo abstrato. Faz lembrar as pinturas da Maria Helena Andrés e suas cores movediças. As coisas que faltam são como cores movediças e imaginárias: um tempo de procura da eternidade, um estado de espera, do relembrar, da reflexão, da paixão que todo poeta tem pela palavra. Não existe nada mais eterno do que o mar e aquilo que está acima dele: o céu. A imensidão do mar e do céu retoca o ser mineiro, nascido no meio das montanhas, e faz nascer emoções incontroladas. Caramba, esse negócio de explicar uma poesia é uma coisa meio perigosa, incerta e mágica. Poesia não se explica, sente. Num trocadilho, é um sentido de necessidades dentro de uma necessidade de sentidos. Entretanto, como na antologia do Achamento tinha uma temática, eu não acho que seria impertinência relatar o que me levou a escrever o poema...  

 

 

RL - A matéria de seus poemas é a imagem? Qual a importância da imagem para a sua poesia?

 

JA - Sim, grande parte das minhas composições poéticas lida com a questão da imagem ou remete, insinua algo relacionado a ela. Em parte, por influência das artes plásticas, pois sou colecionador. Inclusive estou trabalhando uma nova série de poesias visuais intitulada Farnesianas (diálogos com os objetos do falecido artista plástico mineiro, o Farnese de Andrade). Um dos poemas dessa série  — "O @njo de Ph@rnese" —, publicado na minha coluna Um Outro Exercício Estético do site Cronópios de São Paulo, faz parte do catálogo eletrônico da Mostra Internacional de Poesia Visual e Eletrônica, promovida pela Academia Ituana de Letras, SP, e a London School, Inglaterra. Pois bem, num viés estético e interdisciplinar também tem a questão da comunicação social, pois parte da minha formação é no campo da comunicação social. Não que a poesia tenha que ter uma mensagem, que é atributo específico da informação. Longe disso! As possibilidades de sentidos são múltiplas. Tento dar espaço a diversas vozes e diversas imagens, o que possibilita uma alternância entre o visual e o verbal. Corresponde de certa forma à minha inquietação e detona uma certa carga de tensão e reflexão na linguagem que, metaforicamente, é um reflexo da crise de falta de contemplação do mundo contemporâneo. Como observou o jornalista e escritor Alécio Cunha (Jornal Hoje em Dia, Belo Horizonte): "De certa forma, os poetas funcionam ainda como uma poética das imagens, articulando dúvidas existenciais do homem contemporâneo, cada vez mais fragmentado e dissimulado entre anseios e aporias". É aí que entra a questão da imagem, não renegando os clássicos, a modernidade e o progresso técnico. É aquilo que o Fabrício Marques pontua em Pavios Curtos: o embate Imagem Contra Imagem. É meio apocalíptico, pois chegamos a um ponto em que não vemos mais as imagens. São elas que nos olham, desconfiadas, prontas para o bote. E, ao mesmo tempo, parte da memória morreu — Guy Debord no livro A Sociedade do Espetáculo já falava sobre isso na década de 1960. Agora, é claro que as escolhas imagéticas são pessoais. E isso vale para a televisão, a internet, o vídeo, as artes plásticas, a poesia, o romance, etc. Creio que temos que nos dar e criar a possibilidade de um stop, uma parada para contemplar mais. Seja, ou melhor, principalmente, na leitura de nossas vidas bem como na leitura e feitura/escritura de algo no campo da literatura. Pois tudo está tão efêmero, rápido, condicionado. As imagens externas, numa rapidez medonha, passam por cima das nossas memórias e nos relegam da contemplação. Tudo fica obscuro pelo excesso, e não pela falta de imagens. Gosto muito da epígrafe do livro do José Saramago — O Ensaio Sobre a Cegueira —, no qual ele cita o Livro dos Conselhos, também conhecido como o Livro da Cartuxa: "Se podes, olhar, vê. Se podes ver, repara". A importância das imagens na minha poesia é um ato de escolha mais pleno e revigorante na linguagem. Escolher um tipo de imagem que traduz em mim uma cosmovisão do mundo entrelaçado com as artes plásticas, a comunicação social — gosto muito das idéias do francês Michel Maffesoli que vislumbra a estética como um vetor comunal, um vetor de comunicação — e a criatividade. Algo que possibilite ao leitor um certo despertar e reparar que existem vozes e imagens diferentes, lacunas no texto que apontam necessidades mais íntegras e pessoais. É claro, cada qual com as suas escolhas: caminhar para outros campos, iluminar outras imagens, associar coisas díspares, valorizar lembranças esquecidas e que valem a pena ser lidas, vistas, sentidas e refletidas. Não nego que gosto da Teoria da Recepção em Jauss, Iser, Gumbrecht e Luiz Costa Lima. Como também das idéias dos professores Arlindo Machado da ECA/USP e Nelson Brissac Peixoto da PUC/SP.  

 

 

RL - Como vê poetas como Glauco Mattoso e Roberto Piva? Com que olhos escreve poemas escatológicos?

 

JA - Uma bela dupla de paulistas! De uma contemporaneidade vital: ambos exploram o corpo e suas fissuras. Gosto muito dos livros Paranóia do Roberto Piva e Poesia Digesta do Glauco Mattoso. A transgressão na madrugada, a poesia estomacal, a visão 1961 (ano em que nasci), náuseas, alucinações, desarticulações, citação de Murilo Mendes, "Ninguém ampara o cavaleiro do mundo delirante", o crânio que gosta da batucada dos ossos, o volume do grito (até parece que o Piva mergulhou num sono helicoidal em Edvard Munch. Eu não sei se vocês sabem, mas no quadro do expressionista, logo abaixo daquela ponte, na Oslo antiga, tinha um hospício. Quem me falou isso foi um escritor norueguês, o Axel Fugelli. Nem sei se ele ainda tá vivo!), as putas de São Paulo, enfim, Piva em seus delírios desvairados e criativos mergulha num diálogo com a literatura, o teatro, as artes plásticas, a urbanidade, as vísceras dos garotos, e escreve uma poesia de primeira qualidade. Há algo de sagrado e profano que desliza e solta em seus poemas um tipo de linguagem misteriosa, que amplia. A poesia do Piva faz lembrar o Globo da Morte. Sim, o Globo da Morte de um imenso circo. As motocicletas a toda velocidade: uma, duas, três, quatro e cinco, zuando e sufocadas pelo globo. Tem algo de comédia, de ironia fina. Lembra-me um imenso puteiro, aquilo que não queremos ver. A poesia do Piva é um incômodo fértil para as nossas consciências bestas. Engraçado: acredito que somente quem perdeu a virgindade na juventude com uma puta e freqüentou cabarés e zonas boêmias  (que é o meu caso) entende o que eu estou falando... Tudo é uma questão de ambiente. O poeta é como o gato, acostuma-se com determinados ambientes, cidades, ares, tempestades e até pessoas (algumas). A poesia satírica do Glauco Mattoso, um fescenino das letras, não se submete a nada. Ele é um transgressor genial da língua. Enxerga aquilo que muitos com pares de olhos não vê (isso vale também para quem usa óculos de grau e está sentado nas bancas acadêmicas). Tem dois sonetos dele que gosto muito: o 143/Higiênico e o 613/Evacuado. Lembra Pasolini. Ah, estava esquecendo: não escrevo poemas escatológicos com lentes de contato, prefiro escrevê-los com os óculos, acompanhado dos meus 10 graus de miopia. Como aqueles da série Carne Trêmula que estão na Germina — Revista de Literatura e Arte. O poema Havanola, que também está no livro Pavios Curtos, foi uma homenagem ao jornalista e escritor cubano, o Pedro Juan Gutiérrez. Também um fescenino da melhor espécie. Porém com uma diferença, parece que ele gosta muito de loiras, não tenho nada contra (a última notícia que tive dele, fiquei sabendo que estava com uma norueguesa). Pessoalmente, eu tenho uma maior predileção pelas negras e mulatas cobertas de chocolate bem brasileiro...

 

        

RL - Por que você escreve?

 

JA - Tá aí uma baita pergunta, que merece muita reflexão... O Millôr até escreveu um poema sobre isso. Um poema bem-humorado. Ele usa uma ironia interessante: “Escrevo porque escrevo. Se me pagassem eu só falava”. Pra mim o pagamento maior são as leituras feitas pelo outro. Entretanto, eu acredito que, no fundo no fundo, a gente acaba escrevendo é pra gente mesmo e para alguém, um leitor  em especial, que escolhe o seu livro. Esse alguém pode ser o pai, a mãe, a namorada, o filho, o padeiro, o verdureiro, o jovem, o adulto... Escreve-se para a eternidade. Escreve-se para ter a companhia das palavras. Escreve-se para ser ou não escritor, você decide!? Escreve-se para ter uma breve história do espírito — uma bela novela do Sérgio Sant'Anna. É claro que tem a questão da solidão necessária, de expressar algo encardido que habita... Outros escrevem para ser ou tentar ser compreendido... Gosto muito do pensamento do José Saramago, quando lhe perguntaram qual é a função da narrativa. Acho que as palavras do português valem como uma tentativa de resposta a sua pergunta: "O ser humano tem sempre necessidade de narrar aquilo que vê, que sente, que observa. Como resultado da imaginação, cria, inventa histórias, todas elas com uma relação com a realidade. Evidentemente, nunca está tudo completamente narrado, não está tudo completamente explicado. Cada escritor é um mundo, e cada um de nós quer expressar o mundo. Se o consegue, melhor ou pior, é outra questão. O ser humano não pode ficar calado, nem é característica da espécie ficar em silêncio. Somos tão ou mais faladores que os papagaios". Uma possível complementação do pensamento do Saramago, são as palavras de Roland Barthes: "Escrever é sacudir o sentido do mundo". Ou, se você for pensar bem, usando um extremismo: escreve-se para retardar a morte. Pois escrever é um combate. Um problema. Uma pulsão de vida. Um desafio contra os cacos do tempo, estampado pela rainha: a morte.

    

 

RL -  Com quantas metáforas se faz um poema? O poema se faz com metáforas?

 

JA - Depende do poema... Da sua construção, elaboração, idéia... O poema depende também do poeta, do suporte... A questão não se restringe ao uso ou não da metáfora. A primeira vista o poema se faz com metáforas e imagens. E outras coisas a mais... Aliás, as duas palavras na poesia podem significar a mesma coisa. Concordo em parte com o falecido Sebastião Uchoa Leite quanto ao uso do expediente e recurso da metáfora: existem poemas e articulações da linguagem que abusam dela. Acho que o João Cabral fazia o mesmo tipo de crítica no passado. Creio que temos que usar todos os recursos para a imaginação poética: relações fonéticas, palavras, alusões semânticas, sentidos, não-sentidos, visualidade, sonoridade, prosódia, conotação, frases, citações, etc. O poema se faz com articulações na linguagem. Aí eu concordo novamente com o falecido Sebastião: "Para que uma articulação funcione, não basta ser 'sensível', é preciso atenção e percepção das formas, sejam visuais ou linguísticas".   

 

 

RL - Qual a importância que "Pavios Curtos" tem na sua obra? Fale sobre o livro.

 

JA - Dizem que a vida começa aos 40. Talvez seja o caso, pois com Pavios Curtos criei a coragem necessária e desengavetei um punhado de coisas. Tem poemas lá de mais de 10 anos atrás. É híbrido neste deslocamento temporal, e, também, na linguagem. O tempo, através da imagem — a temática central — em diálogo com determinada tradição literária: Rimbaud, Apollinaire, Baudelaire, Drummond, Bandeira, Faustino, o concretismo e até a delicada poesia escatológica do Piva. Na minha inquietude, ainda acredito que tudo ou nada brota de alguma coisa, brota de uma fonte e diálogo com o passado. Temos que aceitar, exercer e dialogar com certas influências recebidas dentro da procura de uma certa originalidade. E aí vou fazendo o meu caminho... Pavios Curtos é dividido em cinco partes. Nele desponta uma poesia mais lírica, pendendo para uma parábola sobre o tempo e a cor que mais gosto: o amarelo. Em Curtos, mais prosaica, crio interfaces com algumas citações, escritores, artistas plásticos e até Fellini (de maneira implícita). O viés Concreto em sua renúncia de texto,  aparece na terceira parte, influenciado, principalmente, pela idéia do triângulo em suas dobras — Amílcar de Castro — e a questão do vazio em expansão — Franz Weissmann —, aliás, artistas plásticos neoconcretistas. Na parte Imagens — o cerne do livro —, é uma travessia mais reflexiva sobre a obscuridade do mundo em que vivemos, caracterizado pelo excesso de imagens. Na última parte — Variantes — faço, entre outras coisas, uma breve apresentação fracionária da minha pessoa, homenagem a dois poetas portugueses de quem gosto, Florbela Espanca e o geminiano Fernando Pessoa. Termino com o poema "Xadrez", relembrando de modo subentendido o lance de dados de Mallarmé. Engraçado, somente depois que o livro foi publicado é que parei para pensar: a palavra variante é uma constante no jogo de xadrez. Dependendo da abertura empregada temos infinitas variantes, combinações, posições, escolhas de lances e seus desdobramentos...           

 

 

RL - Quais são os escritores que fazem a sua cabeça?

 

JA - Caramba, inúmeros. Tanto na literatura quanto em outras áreas. Só para citar alguns: Faustino, Drummond, Bandeira, Pessoa, Piva, Luiz Vilela, João Cabral, Fonseca, Eco, Apollinaire, Florbela, Baudrillard, Gullar, Leminski, Sérgio Sant'Anna, Juan Brossa, Dylan Thomas, Muniz Sodré, Lya Luft (poesia), Rui Mourão, Pedro Juan Gutiérrez, Rimbaud, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Kafka, Ana Miranda, Calvino, Pound, Wilde, Hemingway, Hilda Hilst, Chico Buarque, Cortázar, Borges, John Ashbery (Auto-retrato num Espelho Convexo é um dos melhores poemas que já li na vida), etc.

 

 

RL - Qual a importância que o jogo de xadrez tem em sua vida?

 

JA - Tem toda uma trajetória. Aprendi na infância. Joguei muito xadrez na juventude e parte da vida adulta. Estudei aberturas, meio-de-jogo e finais. Li um bocado sobre a história do xadrez. Era da equipe do CXBH (Clube de Xadrez Belo Horizonte, fundado na década de 1940). Tenho predileção pelo jogo do imortal Alekhine, Bob Fischer e o nosso genial Mequinho (espero que ele esteja bem de saúde). Não sou muito chegado a Gasparov, mas o cara é uma fera. Ele venceu o Deep Blue várias vezes. Participei de alguns torneios em Minas, Brasil e exterior. Hoje, jogo muito pouco. Nunca pensei que fosse jogar contra uma máquina: o Fritz — um programa de xadrez no computador. Pra mim, o xadrez e o tabuleiro são símbolos importantes e gratificantes. Aliás, quando morei em Cuba (década de 1990), freqüentava o Clube José Raul de Capablanca em La Habana, bem perto da Prensa Latina. Foi na Prensa Latina que conheci o Pedro Juan Gutiérrez, bem antes de ser publicado aqui no Brasil pela Cia. das Letras. A primeira dádiva do xadrez é o encontro. Um encontro para um embate, ou um bom combate. Alternam-se no tabuleiro luzes e sombras. Com as peças e a mente temos a oportunidade de mudar alguma coisa. Ir entre a razão e o suporte emocional, significa pra mim um estado de alternância dos acontecimentos, alternância do tempo, alternância das cores, métrica, decisão, exaltação e contenção. Um jogo da vida enquadrado num espelho em conflito. Um problema exprimindo o embate da razão contra o instinto, da ordem contra o acaso, diversas possibilidades para um destino... Engraçado, talvez seja por causa do tabuleiro e suas 64 casas, metade branca, a outra preta, o xadrez me remete ao concretismo e o realismo mágico (dois opostos). Ao jogar xadrez, sinto-me como um menino, um rei. Um menino jogando o Jogo do Rei, o Rei dos Jogos.

 

    

RL -  Você escreve poemas concretos. Como vê o panorama da poesia concreta hoje no Brasil? Fale um pouco de suas experiências com a visualidade de poemas.

 

JA - Discordo das pessoas, escritores e artistas plásticos que falam que a fonte e o legado concretista estejam em declínio. Que foi um movimento, uma vanguarda datada. Que já deu o que tinha de dar... Ainda neste mês de dezembro de 2005, eu escrevi uma matéria especial, ensaio biográfico sobre o falecido escultor neoconcretista Franz Weissmann (1914-2005), para a revista Zunái, e deixo bem claro que o concretismo não está presente somente na poesia e artes plásticas. Neste mundo pós-utópico, os desdobramentos e absorções estão aí na moda, design, publicidade, televisão, vídeo, cinema e a internet. Por exemplo, a poesia visual e eletrônica feita para esse novíssimo suporte chamado internet do Élson Froes, Joaquim Branco, Hugo Pontes, Jorge Luís Antônio, Paulo de Toledo, Marcelo Sahea, só para citar alguns nomes, estão aí firmes. São poesias consistentes, apuradas e inteligentes. Por aí você vê que não tem como negar que a vitalidade concretista ainda está viva. Engraçado, eu fico meio puto com alguns poetas que falam que não tiveram influências do concretismo... Que não assumem e/ou tem dificuldade em romper com a unidade tradicional que é o verso. Pois poesia também é geometria, gestualidade, som, cor, movimento e fusão, relação gráfica das palavras com a imagem... O futurismo, o dadaísmo e o construtivismo já evocavam esse tipo de discurso e criatividade no começo do século passado. A poesia também tem que usufruir dos recursos tecnológicos para a sua renovação enquanto linguagem. Agora, não podemos pegar a poesia como uma fórmula para fazer poesia. Aí também não... Seria uma deturpação das idéias concretistas. Eu acho que estou falando algo que a maioria dos poetas falam. Em todo o caso, vamos lá, vamos continuar... A metalinguagem, o humor, a ironia, por exemplo, são recursos inteligentes e muito importantes também para a renovação da linguagem. Acho que vou parar por aqui, pois esse assunto pode consumir todo o espaço da entrevista. Eu fico no meio do caminho: misturo o concretista com algo mais lírico. A razão é importante, mas em excesso... Necessito de certas liberdades... Intuição, expressionismo, alguns simbolismos... Temos que manter uma relação com a realidade, entretanto, entendendo que a poesia transcende essa aproximação. Vou trasladar o que escrevi na Zunái: "O vocabulário geométrico se presta à expressão da complexa realidade humana, e não lhe suprime a imaginação. Um movimento não dogmático, sem abandonar a problemática da forma. Uma síntese entre a razão e a emoção". Cada poeta e artista tem que preservar a sua individualidade, a sua história, os seus valores e a sua liberdade criativa. O leitor já deve ter observado que sou mais chegado ao Neoconcretismo, que não deixa de ter idéias do concretismo no seu cerne. Gosto das esculturas do Weissmann e Amilcar de Castro, dos poemas do Gullar. Vamos ser concretos, vamos ser precisos: na parte final da resposta da pergunta sobre a influência de Minas na minha poesia, mais embaixo, dou detalhes sobre uma nova série que estou trabalhando, Farnesianas, diálogos poéticos visuais com os objetos do Farnese de Andrade.

       

 

RL - Qual a importância da Internet no seu dia-a-dia?

 

JA - Na vida prática, facilita um punhado de coisas. Leituras de jornais e revistas que não sou assinante; contato e comunicação com familiares, amigos e colegas distantes; pesquisas diversas; cotações no mundo das artes plásticas; transações bancárias, etc. E o principal: uma certa rapidez e divulgação do que escrevo. E isso vale pra mim e outros colegas. No trato literário, uma importância fundamental é o suporte para a poesia visual e eletrônica. Entretanto, devemos refletir com mais afinco as palavras de Marshall McLuhan: "Os homens criam as ferramentas, as ferramentas recriam os homens". O diretor de cinema Marcelo Masagão, no documentário Nós que Aqui Estamos Por Vós Esperamos, utiliza essa ponderação de McLuhan. Ela está no livro Understanding Media (Os Meios de Comunicação Como Extensões do Homem, Cultrix, 10a. Edição, 1995) escrito em 1964, e traduzido para o português por um escritor concretista, o Décio Pignatari.

    

 

RL - Walter Benjamin dizia que o cinema era a maior das artes. Existe arte superior à outra?

 

JA - No contexto histórico em que Walter Benjamin escreveu, faz sentido dizer que o cinema, pela sua acessibilidade, popularidade e grande meio de divulgação do mundo dos acontecimentos — inclusive a arte — para as pessoas (Cultura de Massa), exerceu/exerce uma função que outras artes não conseguem (quando escreveu sobre isso, Benjamin estava sob o efeito de uma forte crítica aos dadaístas). É próprio do cinema essa grandiosa capacidade de aproximar as pessoas da tela. À câmara e à imagem instrumentalizada do cinema, como afirmou Benjamin, abre-se a uma experiência do inconsciente visual, assim como a psicanálise nos abre a experiência do inconsciente instintivo. Agora, quando se fala na palavra arte, não podemos esquecer de uma outra: a estética. Aí a discussão muda de rumo. Acredito que cada arte elege o(s) seu(s) suporte(s), o(s) seu(s) público(s), o(s) seus juízo(s) estético(s), a(s) sua(s) fruição(ões), o(s) seu(s) interesse(s), etc. Em resumo, há tempos, quando li A Obra de Arte na Época de Suas Técnicas de Reprodução ficou pra mim o seguinte: desde a pré-história, o homem sempre construiu obras de arte. Elas são para os homens, como edifícios necessários à morada. Da mesma maneira que ele precisa de uma morada, também necessita da obra de arte, pois ela já está intrinsecamente ligada à sua história. Assim como, no decurso da história, o homem constrói novas moradas, constrói também novas obras (suportes) para que a arte também possa se perpetuar. Mesmo que eles (os suportes) sejam o cinema, a fotografia, o vídeo, etc.

     

 

RL - Você é de Minas. Como encara a tradição que Minas tem na literatura? É angustiado por alguma influência forte de seu estado?

 

JA - Sempre trabalhei bem na minha cabeça as questões da tradição e a liberdade. A psicanálise tá aí é para nos ajudar, não é mesmo? Mas, sem bairrismo, eu tenho o hábito de falar o seguinte: aqui em Minas, se não nasce poeta é contista. Com um pouco mais de prosa vira cronista, novelista ou romancista. É assim mesmo, pois em quase toda cidade existe alguém escrevendo, ou alguém falecido que deixou algumas linhas, versos ou cartas. Lembro-me de quando morava em Uberlândia e trabalhava num jornal. Tive uma idéia meio estranha para uma pauta do caderno de cultura (estava substituindo um colega, pois a minha editoria era outra: esportes). Visitamos mais de cinco cidades pequenas: não deu outra. Confirmou-se a minha tese: em cada uma delas existia ou um poeta, cronista ou contista. Em todas, alguém tem uma prosa, um caso para contar. Faz parte da tradição oral das Alterosas, seja no Triângulo, Vale do Jequitinhonha, Norte, Vale do Rio Doce, Alto Paranaíba, na minha região (cidade de Bambuí, lá pelas bandas da serra da Canastra, perto da nascente do rio São Francisco), Campos das Vertentes, Zona da Mata, Sul, etc. Eis a fertilidade que brota em solo mineiro: o povo aqui tem uma memória de elefante. Vive-se de histórias do passado para lembrar a memória a todo o momento que existe uma luz não no final do túnel, e sim no começo. Eis a fertilidade da tradição... Nós, mineiros, temos uma carga barroca bem forte. Estava comentando isso com a minha amiga, a crítica de artes plásticas, Maria do Carmo Arantes, na semana passada, ao convidá-la para participar da minha coluna no Cronópios. A temática é a vitalidade das esculturas barrocas do Maurino Araújo (deve sair ainda no final de dezembro de 2005). Pois bem, advém daí os traços no inconsciente coletivo mineiro relacionado com a questão da tradição. Vem do barroco também um excesso de lirismo na linguagem, tanto na poesia quanto na ficção. Não que isso seja ruim. O grande exercício é saber conviver com a questão. Fazer uma ponte, ritos de passagens. Equilibrar as coisas. Aqui em Minas, mesmo em Drummond ou outro escritor por mais moderno ou contemporâneo que seja, existe uma pontinha do barroco: seja num romance de um Rui Mourão ou Carlos Herculano Lopes; nos poemas do Wilmar Silva, Ricardo Aleixo, Fabrício Marques, Maria Esther Maciel, Mônica de Aquino e até na aridez da poesia do Ronald Polito; nos contos do Luiz Vilela, João Batista de Melo; nas crônicas do falecido Roberto Drummond, Luís Giffoni, Rogério Miranda; ou nos trabalhos e pinturas de artista do porte de um Fernando Lucchesi, Miguel Gontijo, Jarbas Juarez, Yara Tupinambá, Léo Brizola, André Burian, Fernando Pacheco, Marcos Coelho Benjamin, dos falecidos Inimá de Paula e Álvaro Apocalypse; até a modernidade de Guignard e as esculturas do também modernista José Pedrosa dialogam com o Barroco, etc. É uma herança que entra pelo ralo familiar. Quem desmerecer esse tipo de influência do barroco ou está mentindo, ou não é mineiro. Todavia, eu não vejo a questão da tradição como um fardo. Vejo-a com respeito e elemento de diálogo para a linguagem. Falo assim, pois detesto o rótulo pós-moderno. Prefiro literaturas contemporâneas ou artes contemporâneas. Tudo no plural. Uma constatação: hoje em dia, os hibridismos e  variedades das coisas são bem complexas. No reverso da moeda, tem um colega que diz que hoje está tudo contaminado. Até mesmo o discurso da tradição. Poucas coisas são originais. Poucas são singulares. Para terminar de responder essa pergunta, estou trabalhando a série de poesias visuais Farnesianas, diálogos com os objetos do falecido artista plástico mineiro, o Farnese de Andrade, que foi um gênio. Farnese nos apresenta um universo original e reinventa-se — através dos seus objetos, ex-votos simbólicos e surrealistas — em metáforas, diálogos e indagações sobre a tradição. A tradição mineira. Suas obras são caracterizadas por um certo erotismo, tristeza e beleza de alguém que vê, enxerga e repara os diferentes sentidos na sua solidão desgastada, noites sombrias, sentimentos oceânicos, embevecidos pela ironia, maculados pela existência e escolhas perante o tempo e o espaço. Na série Farnesianas, procuro essas relações, usando as imagens dos objetos do artista em consonância com a transcendência das palavras. Não é um trabalho ilustrativo. É muito, mas muito mais que disso: um resgate do olhar e reflexões sobre a história corporal do homem. A corporalidade em Farnese de Andrade é muito forte. Na minha opinião, as dilacerações impostas pelo artista em seus objetos e bonecos têm muito a ver com as próprias dilacerações que os nossos sentidos físicos enfrentam na contemporaneidade.              

 

 

RL - Por que só começou a publicar após os 40 anos?

 

JA - É uma longa história, cheia de migrações. Comecei cedo no jornalismo, com 18/19 anos na década de 1980, em Uberlândia, Triângulo Mineiro. Fui repórter e editor de esportes. Mas, antes, já escrevia poemas na adolescência e juventude em Bambuí. Quando mudei para Belo Horizonte fui estudar economia (UFMG), e trabalhava num banco, onde fiquei quase 20 anos. Recebi algumas promoções. O banco absorvia quase todo o tempo: dedicação integral; tradução: fiz carreira bancária. Entrava às oito e saía após às 19/20 horas. Fora os trabalhos que levava para casa, final de semana, etc. Pois bem, somente depois dos 40 e com mais tempo, senti a real necessidade e coragem para colocar a cara no mundo da literatura. Também tem outra coisa: o processo de leitura, formação e amadurecimento.

       

 

RL - Você saberia traçar um perfil do poeta brasileiro? Quem é o poeta brasileiro? O que faz? Como vive?

 

JA - Outra pergunta danada... Venhamos e convenhamos, também tem outra coisa: hoje em dia, o poeta é como outro ser humano. Ou devemos/deveríamos ainda fazer/tratar a coisa como uma distinção messiânica/demiurga do ofício de escrever poesia como uma atividade em detrimento de outras atividades humanas? O perfil começa numa convicção: acredito que a poesia escolhe o poeta, e não o contrário. Nisso o poeta se distingui das outras pessoas.... Vou ser bem franco: eu tenho algumas idéias vagas a partir de mim, minhas vivências e algumas leituras sobre esse perfil do poeta brasileiro. Sabia que ainda tem alguns vivendo de vendas noturnas? Sim, eles batalham na noite e vendem as próprias edições, feitas de bolso próprio. Aqui em Beagá mesmo eu conheço um bom poeta que sobrevive assim: o Milton César Pontes. Não tenho certeza, mas outro bom poeta, o Tavinho Paes, do Rio de Janeiro, ainda continua vendendo os seus booklets no Baixo Leblon. Ou não!? Agora se vive bem ou não, eu não sei... Grande parte dos poetas trabalha em outras atividades para sobreviver. 95% dos casos. Arriscaria mais alguns palpites, mas vou parar por aqui. Vou refletir mais sobre o assunto...

   

 

RL - Você é jornalista. Qual a importância da resenha de jornal? Quem deve fazer a crítica: o jornalismo ou a universidade?

 

JA - A resenha é muito importante, seja a jornalística ou a acadêmica. Ela informa e ajuda a formar os leitores. Um desdobramento dela seria a crítica. Acredito que ambos os meios têm o dever e a obrigação de fazer a crítica. Cada qual com os seus olhares, suas demandas, suas leituras. Na minha opinião, um bom leitor, com certos conhecimentos teóricos, é capaz de fazer uma boa resenha e uma bela crítica. Enfim, esses exercícios não devem ser somente trabalhos específicos do jornalista e do acadêmico. Entretanto, deve-se tomar cuidado com algumas coisas: o compadrio de alguns jornalistas escritores e das editoras, as exigências publicitárias presentes nas redações dos meios de comunicação de massa, as vaidades gerais, principalmente a da academia...

 

 

RL - Para que serve a sua poesia?

 

JA - Para alguma coisa ela serve. Já li que ela não serve pra nada. Como também já escutei vários poetas discursarem que a poesia serve para eternizar as palavras. Por extensão, vamos dizer também que a poesia sirva para eternizar o desejo das palavras, revigorar e dar novos sentidos para a língua, avivar a memória, libertar o sentimento e fazer explodir a criatividade. O valor da poesia não é a sua utilidade, e sim os seus valores de trocas e intercâmbios: as associações imaginárias tanto do escritor quanto do leitor. Todo aquele que tem um mínimo de sentimento de mundo, reage perante a cultura, a história, o tempo, o espaço e tenta se exprimir perante o mundo da vida, tem a capacidade de escrever um poema. Enquanto arte e literatura, a poesia ajuda a eternizar e redimensionar a infinita capacidade da humanidade de se manter viva. A poesia é o reino da palavra escrita, falada e visual dentro de um universo chamado silêncio. A poesia serve para abusar da sonoridade da língua. A poesia serve para espantar a morte.

 

 

RL -  Tem algum mote que o acompanhe pela vida? Alguma epígrafe?

 

JA - Sim, duas! A primeira, palavras do Walter Benjamin: "Toda a paixão beira o caos, a do colecionador beira o caos da memória". A segunda, Harold Bloom: "Poesia e crença são modos antiéticos de conhecimento, mas ambas partilham da peculiaridade de suceder entre a verdade e o sentido...". Já parei para refletir sobre isso várias vezes: uma citação suplementado a outra. Acima de qualquer verdade sagrada, a gente sempre procura algo que seja intrínseco ao ser: sentidos e significações para uma existência singular. Eu tenho essa necessidade da lembrança, do rastro, da trilha, de organizar as imagens esquecidas da memória, que clamam para ser lembradas. As artes plásticas ajudam a organizar o meu caos pessoal. Sempre digo que uma casa sem quadros é uma casa sem alma. Talvez, seja a verdade de uma pessoa solitária... É como escrevi em meu diário, e que está na contracapa de Pavios Curtos: "...Várias vozes se movimentam em minha travessia reflexiva. Com elas, as palavras, e aquilo que Borges chama de possibilidade de tecê-las em poesia. Eis a polissemia da vida em seu domínio e redenção: a liberdade de criação, que detona dentro da gente a procura de uma metáfora verdadeira de nós mesmos, um mistério infinito. A poesia é uma alternativa para a inquietude do homem contemporâneo, repleto de pavios curtos, inconcretudes, dilacerações, contaminações, perplexidades, e algumas transcendências, regidas pela memória incessante, sentimentos, convivências, cores, sinestesias, leituras, imagens multifacetadas, circulares e variantes...".

    

 

RL - Qual o papel do escritor na sociedade?

 

JA - Vou ser breve nessa resposta! Parafraseando Clarice Lispector: "Eu escrevo como se fosse salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida". Essas palavras são emblemáticas. O papel do escritor na sociedade é sempre salvar e resgatar a imaginação do mundo. Um ato de liberdade, segundo o Martins Amis. Eis o ponto e chama viva das possibilidades eternas: a liberdade. Então, também não deixa de ser um dos papéis do escritor na sociedade ser um guardião da liberdade. Kafka é um belo exemplo disso.

 

 

José Aloise Bahia nasceu em nove de junho de 1961, na cidade de Bambuí, região do Alto São Francisco, Estado de Minas Gerais. Reside em Belo Horizonte. Tem ensaios, críticas, artigos, crônicas, resenhas e poemas publicados em diversos jornais, revistas e sites de literatura, arte e imprensa na internet. Pesquisador no campo da Comunicação Social e interfaces com a literatura, política, estética, imagem e cultura de massa. Estudioso em História das Artes e colecionador de Artes Plásticas. Sócio-fundador e diretor de jornalismo cultural da ALIPOL (Associação Internacional de Literaturas de Língua Portuguesa e Outras Linguagens). Estudou Economia (UFMG). Morou em La Habana, Cuba, no começo da década de 1990. Graduado em Comunicação Social e pós-graduado em Jornalismo Contemporâneo (UNI-BH). Ex-repórter e editor de esportes dos jornais "Tribuna de Minas" e "O Triângulo" na década de 1980 (Uberlândia, MG). Diretor-Proprietário da Lanzini Comunicação Ltda., na década de 1990. Correspondente, colunista e articulista do site de literatura e arte Cronópios (São Paulo/SP). Autor de Pavios Curtos (poesia, anomelivros, 2004) e Em Linha Direta (no prelo). Participa da antologia O Achamento de Portugal (poesia, org. Wilmar Silva, anomelivros, 2005), que reuniu 40 poetas mineiros e portugueses contemporâneos. Mais na Germina.

 

 

 

 

dezembro, 2005
 
 
 

Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há Flores na Pele, entre outros. Participou da antologia Na Virada do Século — Poesia de Invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates. Edita os blogues Lowcura e Pesa-Nervos. Mais na Germina.