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© alfred gockel

Um maestro me disse que o meu ouvido era perfeito. Não levei muito a sério. Um dia descobri que os grilos faziam um concerto em si bemol debaixo de minha janela. Escrevi o concerto na pauta e arrumei um gorjeio para o sabiá do vizinho. O maestro leu espantado a partitura e me nomeou afinador de instrumentos da orquestra. Ia tudo muito bem, até o dia que recusei usar fraque num concerto de gala. Larguei o emprego e, hoje, na falta do que fazer, vivo pondo na partitura a modulação das vozes das pessoas: o prefeito discursa em ré maior, o padre faz sermão em dó; o juiz condena os homicidas em lá maior; a vizinha geme de gozo em mi menor, assim por diante. Ah, eu estou contando essas coisas em dó maior. É o meu tom.
Não, não foi Ofélia, biruta e bela, que pousou no meu espelho, vinda de um verão antigo trazendo orvalho e nuvens deste inverno!

Foi este poema que pousou na mesa bordado no lenço de Madame Bovary e que não posso escrevê-lo com meu toco de lápis, no vidro da janela escancarada para a noite.

Era manhã cheirando a gardênia. Era outubro, não sei, sabia das bromélias que plantavas no céu e dos nardos morando em teu alpendre.

Era noite, não sei, e fiz o meu testamento, e te impus este legado de bem-querer e dez alqueires de afeto, desde que sejas guardiã e curadora de todas as Ofélias que nasçam nas noites antigas e que venham morar nestas noites em que fico embalando insônias e pequenos delírios!

Para Júlia

 

Batizei o reino da infância com o nome das coisas:
água pedra chão vento estrela
Fiz garatujas azuis
Pintei de verde o canto dos grilos
Havia um arco-íris em mim
e eu carregava a tarde e as chuvas do quintal
Uma princesa sem nome prometeu-me o corpo
por causa de um segredo que selei nos lábios
Palavras sufocadas ficaram-me ao peito,
desastres que não pude evitar por mais que evitasse.
O resto do corpo é um brinquedo de inventos
Fruto que se abre em gomos, mel de carícias.
Dádivas que te entrego sem saber o nome.


A Outra Ofélia
Juca Stradivarius

Paulo Celso (de Carvalho) Pucciarelli é formado em Direito pela USP, mora em Mococa, São Paulo, onde nasceu e onde exerce a profissão de advogado. Escreve pra compreender os limites do seu quintal, entre abacateiros e bananeiras. Colabora com alguns sites da net.