©jonathan nourok
                                       
 
 
 
 
 
 
 
 

Partes Humanas (CASTEL-BLOOM, Orly; tradução Viviane Gouveia. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2003) lembra os filmes recentes de Steven Soderberg e Alejandro González Iñarritu1, tanto por possuir um plano geral, onde um tema se desenvolve, envolvendo questões políticas, econômicas e sociais, como por manter, ao mesmo tempo, pequenas histórias que se desenrolam penduradas nele, como móbiles, ora apresentando um caráter fragmentado, ora interligando situações. Em ambos os filmes, ou como em outras produções cinematográficas contemporâneas, a miséria humana é exposta por meio de situações-limite vivenciadas pelas personagens, geralmente assentadas nos grandes centros urbanos, e que nos são apresentadas aos poucos, situação a situação, sem uma ordem, cabendo a nós, expectadores, remontar seqüências e adivinhar as conexões.

No caso do livro, o "inverno extraordinário" que acomete os habitantes de Israel ao final do mês de Tishri, associado aos ataques terroristas árabes, forma o cenário onde serão narrados e vividos os dramas das personagens que dão vida à obra, numa relação onde estes aparecem implicados de forma tal, que as realidades individuais se tocam em pontos inesperados, resultantes das ações do clima, do espaço em conflito, ou mesmo da mídia.

As personagens são muitas: Kati Beit-Halahmi, Liat Dubnov, Adir Bérgson, Tasaro Tasama, Íris Ventura, o Presidente Reuven Tekoa, Boaz Beit-Halahmi, Angélica Gomeh e alguns outros que também circulam pelas histórias pessoais, pelas cidades de Tel Aviv, Jerusalém e Lod, pelos bairros... Aliás, os nomes, tanto de pessoas, grupos, lugares, operações migratórias e até mesmo aqueles que são atribuídos aos meses, perpassam todo o romance juntamente com o ambiente de "pobreza, recessão, desemprego, tédio, desespero e pânico existencial", formando um roteiro no qual as ações aos poucos transcorrem.

O recorte das circunstâncias em que se encontram as personagens acaba sempre por denunciar a tensão e o medo vividos por elas, por uma via que ressalta e denuncia valores diferentes, atitudes mesquinhas e individualistas, preconceitos de toda ordem, num tom muitas vezes oscilando entre o patético e o trágico.

Muitas das personagens sofrem com algo que as identifica e ao mesmo tempo as exclui das ordens estabelecidas: Kati, Boaz e Íris sentem-se fracassados diante da pobreza e dos rumos aos quais suas escolhas pessoais lhe conduziram — Kati é descendente de judeus do Curdistão, o que fez com que a família de Boaz lhe renegasse a sua parte na herança e os excluísse da família; Íris, por sua vez, é uma mulher divorciada com três filhos, sofrendo o abandono, pela segunda vez; Liat e Adir são filhos da primeira mãe solteira de Israel — Liat é amante do dono da academia que freqüenta e Adir sofre de asma crônica; Tasaro é etíope. O judaísmo, que poderia servir como identidade, apresenta-se apenas nos cerimoniais de morte, na dicotomia judeus e árabes, como hipótese de sobrevivência para Kati e Íris, em estereótipos e em algumas canções escutadas por Boaz, antes de sua morte.

 

A mídia, o sensacionalismo e as ilusões decorrentes dos modelos que dita, também participam do enredo. E isso se dá de maneira ácida, pois ela retrata os acontecimentos que envolvem o estranho inverno, os ataques de homens-bomba e a pobreza que assola a população, sempre dando um jeito de comercializar algo, como os guarda-chuvas anunciados pelos meteorologistas famosos, ou explorando furos de reportagem em torno da desgraça de famílias, como a de Kati, e até na forma de intercalar notícias dos ataques terroristas a diferentes seqüências de músicas, dependendo da quantidade de mortos envolvidos.

Além disso, sempre emergem do discurso das personagens valores fúteis e massificados, como o culto ao corpo, as vantagens da beleza, a valorização do exótico e dos bens, o desejo da fama e de trabalhar na TV — em Liat, Tasaro, Íris e Kati, respectivamente —, e que se chocam com as frustrações pessoais que normalmente envolvem temas mais verdadeiros e humanos, como o desejo de ter um companheiro, casar ou exercer uma profissão menos humilhante.

Apesar da presença da mídia permeando e interagindo-se com as histórias, em alguns momentos, um narrador chama a atenção pelas pequenas considerações que faz a respeito dos mecanismos utilizados para desviar a atenção do estado de calamidade e do fato de Israel ser "um dos lugares mais deprimentes do mundo". Isso quebra um pouco a atmosfera anestesiada provocada pelos canais de comunicação — que, de certa forma, tornam ficção os acontecimentos —, para tentar transmitir um pouco de compreensão de uma realidade que se altera rapidamente.

Esta idéia de que a realidade a todo instante se modifica parece estar na base da construção do romance. A forma fragmentada e descontínua de cada narrativa pessoal, somada aos eventos que repentinamente tomam rumos absurdos — como a gripe saudita e o ciúme que matam Liat logo no início; a morte de Boaz num ataque terrorista depois de sua visita ao Doutor Amihud Shilo, especialista, vidente, solucionador de problemas; os cinco minutos de fama de Kati, que a levam a chantagear um funcionário do banco em que trabalhava limpando o chão, igual à cena da novela; o presidente que vaga pelo país consolando as vítimas e seus familiares e que, ao final, precisa decidir se compra ou aluga um apartamento para sua filha em Boston —, além de aumentar o clima de incerteza, banaliza e ridiculariza ainda mais as personagens, desviando o debate público da violência para as miudezas de um cotidiano que finge não se dar conta de que está completamente afetado por conflitos de toda ordem.

 

Outro fio que conduz o texto é a morte, não somente por Liat e Boaz, que morrem aos nossos olhos, ou pelos mortos transformados em números informados pela mídia. Todos os personagens vivenciam espécies de morte, verdadeiras ou simbólicas. A pobreza e a insatisfação pessoal são a morte para Kati, Íris e Boaz — Íris se abala com a morte de Liat, sua amiga, e trabalha para Adir durante o luto de sua irmã; Kati sente a morte de Boaz; Boaz sente a morte de rabinos queridos; Adir, além da morte da mãe num canyon nos Estados Unidos, depara-se com a morte repentina de Liat e quase morre em uma de suas crises de asma; Tasaro sobrevive ao deserto e perde o pai no meio do caminho, além de manter uma relação apartada com sua família; Angélica Gomeh perde o marido e o filho de forma trágica; e o presidente anda pelos enterros. A morte acaba sendo o elo entre as histórias e as personagens, uma vez que é a partir delas que as personagens se tocam, como no caso dos velórios, onde estão, ao mesmo tempo, Adir, Tasaro, Liat (morta), Íris, Angélica, o presidente Reuven Tekoa (que, por isso, cancela sua visita a casa dos Beit-Halahmi).

 

Os deslocamentos no espaço, os dias e os meses bem marcados, associados à rememoração do passado de cada personagem, revelando origens e crenças, pintam um quadro que possibilita a visão das condições de vida numa Israel do século XXI, onde valores cosmopolitas convivem com as diferentes tradições, muitas vezes, numa relação tensa.

Um exemplo disso é a relação entre Adir e Tasaro. Se, por um lado, é um casal aparentemente moderno — ele, branco e com boa condição financeira; ela, negra,  "uma deusa exótica com uma boa história, um enredo pessoal, nacional e social", por outro lado, vivem o dilema de morarem juntos e Adir não querer casar e ter filhos, por causa do preconceito dos "outros", por causa das bombas, dos tiroteios, das mortes e da verdadeira loucura que ele considera Israel, cogitando, até mesmo, viver no Canadá com Tasaro, para fugir de tudo. Tasaro, por sua vez, apesar de ter consciência do preconceito e do racismo, tem vergonha de sua origem, de seu passado na Estação Rodoviária Central e de sua família, depositando na carreira de modelo, nos seus conhecimentos televisivos de hebraico, e numa gravidez, a aceitação social. Com isso, suas vidas parecem continuar, como a de tantos outros, no lugar.

 

O título do livro traz em si um pouco do humano de que são feitas essas histórias, num jogo que usa as imagens dos corpos despedaçados pelas bombas —  "Têm de fazer o reconhecimento de pedaços de seus parentes. Dentes, mãos, sapatos, anéis. De ataques assim não se sai inteiro. Uma pessoa explode em mil pedaços" — como eco irônico e ao mesmo tempo trágico. E talvez, nesse sentido, seja possível perceber a tonalidade cinematográfica da obra: muitos acontecimentos, detalhes das personagens, uma coleção de calendários antigos, uma dor de dente, um sonho estranho, fatalidades marcando vidas com um antes e um depois... Mesmo assim, estas pessoas continuam a olhar para o futuro junto dos filhos que virão, das máquinas de lavar e empregos, apesar das esperanças entrecortadas pelo frio anormal, pelas mortes, pelo medo e pobreza.

 

 

 

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1 Traffic e 21 gramas respectivamente.

 

O texto foi indicado por Moacir Amâncio, professor de Literatura Hebraica, na FFLCH da USP, para publicação em Germina.

 

abril, 2005
 
 

Iara Maia Covas é aluna de Letras, Português/Lingüística, da Universidade de São Paulo.