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"Embora eu haja visto e conhecido o suficiente da humanidade para ter plena consciência de que, provavelmente, ficarei sozinho em minha crença, e que já serei feliz se não incorrer em nenhuma acusação pior que a de excentricidade, nem por isso me sinto coibido de asseverar que considero, e sempre considerei as dívidas do intelecto entre as mais sagradas exigências da gratidão". Coleridge, Biographia Literaria, 1817

 

 

Me agrada uma epígrafe fazer tanto sentido para um texto. Em "exigências da gratidão" eu suponho que se possa encontrar esse anátema que é, aqui & nesta época, mostrar quem são seus predecessores e demonstrar o quanto fazem parte de sua obra.

Essa gratidão que é ao mesmo tempo um modo de partilhar leituras sem dar a papinha na boca das crianças é chamado, nos Estados Unidos do Brazil, "pedantismo"; porque a gente tem de achar um jeito de punir alguém que teve a ousadia de ler alguma coisa que ignoramos. Quem você pensa que é, maluco?

 

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Há pouco mais de dez anos, quando comecei a pensar sobre o meu metiê, i.e., a poesia, evidentemente contava quase que apenas com o funcionamento do meu próprio ouvido para questões de métrica, já que esses livros sobre metro são uma verdadeira desgraça: "este é o decassílabo. tem dez sílabas. pode ser acentuado na..." etc & etc.

Eu era bem jovem, de qqer forma; não obstante, achava isso uma imbecilidade total, já que não serve para absolutamente nada. Bilac, Bandeira, Said Ali, etc.: c'est tout la même chose inutile.

 

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(Que o caro leitor e a cara leitora entendam métrica como todo tipo de truque sonoro num poema, e não somas e subtrações na cabeça ou nos dedos, tentando-se preencher uma quota prefixada no verso).

 

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Contando apenas com o funcionamento do meu ouvido, ele me dizia que os grandes poetas não pensavam em métrica como a tortura acima descrita nos parênteses; que não podiam estar interessados em cumprir uma tabela; que eles, por fim, só podiam se preocupar com a qualidade do som ― com tudo o que isso implica, naturalmente.

E que, preocupando-se com a qualidade do som, perceberiam que, mesmo no nosso caso, o caso da língua portuguesa, há o elemento da duração, o tempo — como diriam em música — e que a duração, embora fosse muito mais notável em latim ou grego (línguas que se baseiam prosodicamente nisso), não poderia ter desaparecido por completo, pelo fato aliás bastante ordinário de que nada desaparece por completo.

Isso era o que o meu ouvido me dizia, porque a maior parte dos poetas & das pessoas dedicadas a estudá-los costumam achar isso um absurdo, ou um petty detail como aqueles que Jack Nicholson imita, como vítima de transtorno obsessivo compulsivo (TOC), em As good as it gets.

Talvez não por acaso, seu personagem era um escritor.

Mas quando, um ano atrás, nesta mesma Officina, colhi a melhor definição de concisão num exemplo fornecido por um músico1, não imaginava que, desta vez, um gramático perdido nas areias do tempo me traria conforto espiritual.

João de Barros, na Grammatica da lingua portuguesa (Olyssipone), publicada em 15402, escreve justamente abordando o que eu tentava dizer com exemplos da doppia no italiano ou com exemplos de ditongo em português. Vou transcrever o trecho para vossa comodidade. Diz ele:

 

Espaço de tẽpo, por q huas sam curtas e outras longas, como nesta diçã. Bárbora, q a primeira e longa. & as duas sã breues. Por que tãto tẽpo se gásta na primeira, como nas duas seguintes, à semelhança dos musicos, os quáes tanto se detẽ no ponto desta primeira figura bár, como nas duas derradeiras, bo, ra. E os Latinos e Gregos, sentẽ milhor o tẽpo das sylabas, por causa do uerso, do q ô nós sintimos nas trouas: por q casi mais espera a nóssa orelha o consoãte, q a cãtidade, dado q a tẽ.

 

"Dado que a tem". Não é exagero dizer que você não encontrará gramáticos nos últimos 30 anos que tenham percebido isso; ou que, esbarrando no assunto, tenham notado sua importância. E poucos poetas terão percebido que, assim como o aspecto silábico, a duração é indispensável. Kilkerry, que teve alguma educação em grego & latim, e sabia tirar algum proveito dela além de recitar declinações caso lhe pedissem educadamente, estava atento à duração, por exemplo, na "Harpa Esquisita".

 

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As artes de poetar medievais do português (ou galego-português, como queiram) são códigos de regras sem vida. Uma arte bem mais interessante se extrai dos poemas de El-rey Don Alfonsso e dos de Martim Moya.

 

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Basil Bunting3 sugeriu que o poeta componha em voz alta, porque "poesia é som".

Pode ser que alguém se comporte de um modo muito estranho depois disso, incomode os vizinhos, mas o crucial aí é que a coisa é evidentemente aplicável ao conhecimento pontual de um aspecto necessário da poesia: o como aquilo soa, como funciona sonoramente.

E há de fato alguns versos desde Homero até cummings nos quais você só percebe o que está acontecendo se ler em voz alta. Sousândrade, via Homero, ofereceu alguns exemplos disso no "Guesa Errante", como Augusto de Campos demonstrou. Aconteceu em Ovídio, também, nas Metamorfoses.

Se aquele código sonoro em algum momento se separar de seu significado, se você puder apreciá-lo como certas pessoas apreciam o vinho, espalhando-o pela boca, tentando separar os sabores um a um, tentando compreender a relação entre eles, você estará lendo o poema.

 

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Ressaltei em algum lugar que o trabalho de tradução de Paulo Henriques Britto o levou a algumas conclusões muito boas, sendo uma delas a exploração da pauta acentual, que dá num método mais ou menos próximo do modo como Fernando Pessoa traduziu o "Corvo", de Edgar Allan Poe.

 

Tradução, não poesia; mas traz para o português um tipo de preocupação prosódica e musical específico, um cuidado de artesanato.

 

Artesanato já se entendeu como a chave d'oiro do onipresente soneto, e contar os carneirinhos da métrica regular, com o cuidado eufônico de evitar hiatos & sinalefas meio bruscas, porque a poucos poetas ocorria que um poema não é uma almofada, mas um objeto estético completo, ao qual cabe definir percepção em linguagem, e não oferecer mais uma simples comodidade doméstica para o leitor.

 

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Não sou contra o verso regular. Não sou contra nada, por princípio, dentro de qualquer arte. Mesmo a idéia de dinamitar o verso, mesmo o monte de poesia visual que se produziu no século XX me interessam muito, e em todas as suas variedades (embora nada me impeça de constatar que Joan Brossa é ainda imbatível no gênero visual): você encontra aplicações para isso, beleza & instigação em toda parte. A besteira vem de quem não distingüe um 22 com só uma bala de uma metranca de 60 tiros por segundo4.

A besteira surge de uma atitude que nem as velhas modas nem a novas conseguem superar: o indivíduo, presumidamente escritor, que não pensa. Há deles entre as velharias empoeiradas, e há deles entre a novidade mais serelepe. Há deles em países subdesenvolvidos (perdão, em desenvolvimento), há deles nos países desenvolvidos (perdão, exploradores).

Eles são uma maioria bem-sucedida, eles se aproveitam da notória confusão do meio, essa que os críticos debatem em viagens muito agradáveis para seminários chamados "a crise da crítica", et ainsi de suite.

Não há times para os quais torcer, porque realmente não é esse o caso, mas o Brasil, acostumado mais a umas coisas do que a outras, confunde o que deve fazer diante de uma coisa & outra, e decide que basta, enfim, torcer pro seu time ganhar.

 

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Nem faz muito tempo, estive numa discussão que perguntava sobre a poesia atual no Brasil. A minha hipótese é que as pessoas fazem essa pergunta por um de dois motivos: a) querem extrair, com esse expediente, um who's who, evitando o trabalho pessoal de ler com cuidado, prazer e discernimento; b) querem ver o circo pegar fogo. Ou as duas coisas.

O circo pegou fogo, é claro, porque lá estávamos eu & minha grande boca.

 

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Você não pode, ou não deve embora democraticamente possa, falar contra a qualidade em arte. Porque o óbvio oposto disso é dizer que passem os bois com suas pesadas cavalgaduras, já que estamos aceitando qualquer coisa.

Não é fascista nem old-fashioned dizer que tal ou qual texto simplesmente não presta. A primeira pergunta honesta a se fazer é: como se lê poesia no Brasil?

Dê uma olhada nos jornais; nas revistas especializadas; nas universidades ― não vou dizer "olhe o público", porque o público não gosta de ser acompanhado com uma lupa, e porque recentemente no Globo um crítico levantou aquela pecha imprestável de "poesia para poetas" visando a impugnar com isso um bom poeta que acabava de publicar um livro importante.

 

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(Parênteses: e é uma alegação absurda por pelo menos dois bons motivos. O primeiro: não se pode julgar o mérito de um livro a partir do pressuposto de que possa ser um tipo de poesia difícil, e que o público leitor torceria o nariz para ele. Isso é o mesmo que dizer: "bom, somos todos uns idiotas, ninguém se interessa por isso. Por que você não escreve tipo um Walkírias? Por que raios você não facilita as coisas pra gente? Qual é o seu problema?".

O segundo: me parece muito apressado pegar um livro recém-lançado, ainda quente do forno, e decidir que "naaaah, o público não vai ler isso, isso é puesia pra puetas". Qual o motivo da pressa? Quem compra tão rápido esses rótulos e os dispara nos livros? Parecem aqueles remarcadores de supermercado quando a inflação aumentava três ou quatro vezes ao dia. Enfim, fechar parênteses).

 

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Yeats disse para Ezra Pound que há as pessoas que gostam de pensar que se interessam por poesia, mas “não gostam de poesia, gostam de outra coisa em poesia”. Bingo.

Uma daquelas frases que definem tão bem um estado de coisas que suplementá-la com comentários seria um deslustre. Que a leitora & o leitor meditem nessas palavras oraculares do bom irlandês no nosso contexto.

 

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Como último lembrete, eu diria que a crítica inteligente produzida por autores brasileiros até bem famosos é meio posta de lado, talvez porque a marreta pese; porque o ferro dobre; porque a bigorna vacile. Estou pensando numa coisa: o texto sutil de João Cabral chamado "Poesia & Composição", lido na Biblioteca Municipal de SP em 1952, como uma conferência.

Tenham em mente a data, num primeiro momento, & depois finjam que Cabral é um poeta de seus trinta anos, criticando a configuração geral da poesia hoje, e não a de 50 ou 60 anos atrás.

 

A criação de poéticas particulares diminuiu o campo da arte. Em vez de seu enriquecimento, assistimos à especialização de alguns de seus aspectos, pois, em última análise, a criação de poéticas particulares não passa do abandono de todo o conjunto por um aspecto particular. Esse aspecto particular passa a ser considerado pelo artista que o descobre, o valor essencial da arte, e passa a ser desenvolvido a seu ponto extremo. Para muita gente, essa especialização significa um maior aprofundamento, absolutamente necessário se se quer fazer a arte avançar. Essas pessoas parecem contar com uma idade futura, em que todos esses aprofundamentos particulares serão aproveitados numa síntese superior. Entretanto, creio que esse aprofundamento é apenas aparente. Desde o momento em que a arte se fragmenta, desde o momento em que sua máquina é desmontada, sua utilidade, a função que aquela máquina exercia, ao trabalhar completa, logo desaparece. Os que a desmontaram têm agora consigo peças de máquinas, capazes de realizar pequenos trabalhos, mas incapazes de recriar aquele serviço a que a máquina inteira estava habilitada (…) Portanto, o que existe no fundo dessa fragmentação é o empobrecimento técnico. O poeta de hoje não poderia tentar todas as experiências. Sua técnica não é o domínio de uma ampla ciência mas o domínio do tiques particulares que constituem seu estilo.

 

Cabral defenderia ainda em 1954 o exercício de forma, como os poemas narrativos que ele próprio tirou dos romanceros espanhóis, para se contrapor aos murmúrios de 45, e que deram em algumas de suas obras mais notáveis. "O Rio", por exemplo.

Não porque a forma boa é a forma velha, como vêm depois os tacanhas te dizer quando você tem a fineza de apresentar o argumento, mas porque as formas se desdobram diante do novo uso. Dante não inventou a sextina, não inventou o soneto, mas presumo ser bastante óbvio que passaríamos pior sem sua sextina e seus sonetos.

Numa entrevista, quando lancei Descort, falei que o poeta hoje não se desdobrava o suficiente para abarcar em linguagem a época que vive. Isso era 2003, eu tinha 27 anos, & permaneço com essa mesma opinião hoje. Mas vejo os poetas da minha idade e mais novos divergindo claramente daquela pasmaceira, & posso supor que, apesar das forças em contrário, há um contingente de bons poetas novos que deverá mudar as coisas nos próximos anos. Estão começando a mudar faz algum tempo já.

Mencionei uma boa parte desses poetas na Officina, ao longo destes anos.

No texto em que falei sobre Éluard (achável, é claro, aqui, para sua maior comodidade: http://www.germinaliteratura.com.br/officina15.htm) e descrevi o movimento das massas modernas para a especialização em meros tiques, era isso o que queria obviamente dizer: presos a um -ismo qualquer, lá estavam os poetas de quarta ou quinta classe em suas trincheiras, cavadas por outros. Não pensavam em literatura de um modo mais amplo, e ai de você se mencionar alguém que tenha escrito sobre o assunto em outra língua. Ah, você não valoriza os nossos artistas.

Uma bela idéia de cultura. Só vale fabricação caseira. Qual é a definição de "provincianismo" mesmo? vocês aí com o pai dos burros?

 

 

 

Notas
 
        

junho, 2007