A VELOCIDADE CONTROLÁVEL DO VÁCUO

 

a força que leva o veleiro

não é a do vento

 

a vela

que o vento não apaga

se olhada

do ângulo certo

é uma asa

 

não movida

pelo motor traseiro

do vento

 

nada

a empurra

 

vácuo

criado pela diferença

entre a velocidade do ar

no lado convexo

e no lado côncavo

que a suga

 

há um buraco negro

um buraco branco

que me leva

 

que me vela

 

quanto maior o vácuo

mais se navega

 

navegar

é preciso

viver

é navegá-lo

 

(Luis Dolhnikoff e Mário Fuchs)

 

 

 

 

 

 

OU

 

o homem é um animal quando nasce

mas uma divindade ao morrer

 

porque uma divindade ao morrer nasce

na etérea existência eterna do espírito

 

o que eterna e etereamente existe

não é nada, coisa ou animal

 

não sendo nada, coisa ou animal

é anjo, arcanjo, deus ou demônio

 

homens são anjos, arcanjos, deus ou o demônio

depois de mortos

 

não podem, portanto, ser deus nem o demônio

pois preexistentes à morte

 

homens mortos são anjos novos

ou demônios menores

 

motivo de alguns ascenderem ao céu

outros ao inferno descerem

 

ou tudo isso

ou nada disso

 

e o homem é um animal quando nasce

e quando morre, ventre de vermes

 

ninguém sabe, é tudo o que se sabe:

o debate dura há milênios

 

porque da morte, o significado

é o do tempo de agostinho ao contrário

 

dele sabe-se o que seja

quando não se deseja dizê-lo

 

porém não se sabe

quando se deseja

 

quando se deseja dizê-la

da morte se sabe

 

pois da morte se fala

para não sabê-la

 

pois tudo que da morte é dito

é diferente de nada

 

diferente do silêncio

que a morte fala

 

ouvimos a morte nos enterros:

por isso nos mantemos em silêncio

 

em silêncio sabemos

o que a morte cala

 

por isso choramos em silêncio

por isso choramos

 

 

 

 

 

 

DESCASCAR MAÇÃS

 

enquanto minhas mãos pesam

essa maçã

penso em outra:

não em outra

maçã-coisa

mas em uma

maçã-nome:

pomme

 

maçã que não se pega

nem se come

como o poema

 

o poema não como

o pomo

 

o poema, porém

se tampouco útil

não é de todo inútil

 

não é útil

como a maçã quando há fome

 

como a maçã quando a fome

impõe que se coma

a maçã mais à mão

ainda que seja um pão

 

o pão do pomar

e o fruto da padaria

são todos o mesmo alimento

que dá ao corpo alento

para a lenta devoração da vida

 

por isso comer é inútil

 

por isso é útil

ao que serve:

manter a inutilidade

de tentar livrar-se da necessidade

 

aquilo que serve

para o que sirva

roupas para o frio

teto para a chuva

remédio para a febre

comida para a fome

serve para preservar a vida

para a morte

 

e a vida preservada

para a morte

tem de ser vivida

 

por isso preservar-se para a morte

não é inútil

 

tampouco útil

 

a morte não tem utilidade

 

não tem utilidade a vida

 

o poema, porém, não é inútil

pois dizê-lo

é como dizer da maçã

ser efemeramente útil:

ou se ingere

ou apodrece

 

e dizê-lo especialmente da maçã

não é verdade

ao ser verdade

para tudo que não é maçã

 

(para tudo que não é maçã

o tempo é o pomar

onde se maturar

ou se podar)

 

dizer que o poema é inútil

é falso

porque a verdade

 

porque verdade

para a inútil utilidade

de cada coisa

 

o poema é útil

para servir a inutilidade

descascada

 

 

 

 

janeiro, 2007
 
 
 
 
Luis Dolhnikoff (São Paulo, 1961). Autor, entre outros, de Pânico, poemas, apresentação de Paulo Leminski (São Paulo: Expressão, 1987), Microcosmo, poemas (Olavobrás, 1991), da trilogia poética Consubstanciações I, inédita, e de Sobre Sísifo, poemas, a sair pela Ateliê Editorial. Desenvolveu, em paralelo com a poeta Josely Vianna Baptista, um trabalho conjunto com o artista plástico Francisco Faria, que resultou numa exposição no Museu Oscar Niemeyer de Curitiba (abril 2005) e no Instituto Tomie Otahke de São Paulo (setembro, 2005). Sob auspícios de uma Bolsa Vitae de Artes, dedica-se à redação do ensaio e à organização da antologia do volume ReVisão de Pedro Xisto. Mais informações no PopBox e no Jornal de Poesia.
 
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