O lançamento da coleção com todas as músicas de Noel Rosa, em cima do trabalho monumental do pesquisador Omar Jubran, é um marco na história da MPB. E traz de novo para primeiro plano o maior mito da música popular brasileira.

 

Noel morreu em 1937, aos 26 anos, na condição de mais popular compositor brasileiro. Consta que nos anos que se seguiram à sua morte, foi relegado ao ostracismo. Depois, teve suas ressurreições. A primeira foi no início dos anos 50, quando seu maior parceiro, o paulista Vadico, retornou dos Estados Unidos, onde fez nome como violonista e arranjador, e preparou os arranjos para um hi-fi com músicas de Noel, interpretadas por Aracy de Almeida. Tenho em minha coleção esse disco histórico, graças a São Pelão, meu santo dos discos impossíveis. O disco tem o valor histórico de recuperar Noel, mas não chega a ser uma obra prima. Os arranjos são muito chegados aos sambas canções da época, Aracy troca a malandragem pelo vestido de noite, perdendo muito do sabor de Noel.

 

Curiosamente, a grande ponte entre o samba tradicional e a nova música — João Gilberto — não gravou Noel. Preferiu os sambas mais sincopados de Geraldo Pereira, Dorival Caymmi e Ari Barroso. Na época, alguns comentaristas, provavelmente egressos da bossa nova, consideravam fora de moda as letras com narrativas de Noel. Quem diz isso é Ruy Castro, em seu livro sobre a bossa nova. Confesso que não me recordo desse tipo de preconceito. A verdade é que a bossa nova não descobriu Noel porque João Gilberto não gravou Noel, seja lá qual for o motivo.

 

Minha geração foi apresentada a Noel através de um show histórico de Maria Bethânia, quando pela primeira vez ela trocou a roupa de guerrilheira de "Carcará" pela de cantora romântica. Já varávamos noites cantando "As Pastorinhas" (Noel e João de Barro), "O Orvalho Vem Caindo", "Com Que Roupa" e outros. Com Bethânia vieram "Três Apitos", "Último Desejo" e um enorme elenco de sambas lentos e românticos.

 

Bethânia se incumbiu de recuperar o gênio pela segunda e definitiva vez. A partir do final dos anos 60 ele estaria irreversivelmente entronizado no altar dos criadores da música popular brasileira.

 

A coletânea levantada por Jubran é preciosa por reconstituir a trajetória do gênio. No início de carreira, Noel foi influenciado pela música regional dos "Turunas da Mauricéia" — o grupo que veio do norte, constituído, entre outros, por João Pernambuco, Meira e Luperce Miranda. Eu já tinha ouvido as canções regionais de Noel em fitas que tenho em casa, reproduzindo a série "Nos Tempos de Noel Rosa", que Almirante gravou para uma rádio, não me lembro se a Nacional ou a Mayrink Veiga.

 

Noel também transitou pelo choro. Mas é considerado por muitos críticos o pai do samba moderno, o compositor que teria feito a transição do maxixe para o samba, o branco que fez a ponte com os compositores negros. De fato, Noel foi parceiro de Cartola e de Ismael Silva, no início dos anos 30. Mas, embora aqui no Brasil a gente valorize demais o "pioneirismo", me parece que Ismael, Cartola, Ari Barroso e outros também já produziam sambas que até hoje são contemporâneos.

 

Independentemente de seu pioneirismo ou não, Noel foi dos compositores fundamentais. Quando João Máximo escreveu sua biografia — em minha opinião a maior biografia já escrita sobre um músico popular no Brasil —, o compositor já estava reconhecido e consagrado. Emergiu do relato um personagem fascinante, cruel (capaz de botar fogo em mendigo), sentimental, ferino e, ao mesmo tempo, lírico, com todas as características que se juntam em uma pessoa brilhante mas complexada pela deformação do queixo — produzido por um fórceps mal conduzido, no seu parto.

 

Com esse misto de ressentimento sem perder a esperança, de sarcasmo sem perder a doçura, o guerreiro capaz de se render a um mero aceno de carinho, Noel não foi apenas dos maiores compositores do país, mas aquele que mais se aproximou da alma brasileira.

 

 

[Crônica publicada, originalmente, no livro O menino de São Benedito. São Paulo: Senac Editora, 2002]

 

 

 
 
junho, 2007
 
 
 
 
 
 
 
Luis Nassif, introdutor do jornalismo de serviços e do jornalismo eletrônico no país. Comentarista econômico da TV Cultura. Vencedor do Prêmio de Melhor Jornalista de Economia da Imprensa Escrita do site Comunique-se em 2003 e 2005, em eleição direta da categoria. Membro do Conselho do Instituto de Estudos Avançados da USP e do Conselho de Economia da FIESP. Autor de O jornalismo dos anos 90, e Menino de São Benedito, finalista do Prêmio Jabuti de 2003 na Categoria Contos/Crônica. Em 1995 lançou o CD Roda de choro, solando bandolim, semi-finalista do Prêmio Sharp de Música Instrumental. Edita o blogue Luis Nassif Online.