Carta a Sam Shepard Antes que Seja Tarde Demais

                                        A Marcelo Montenegro

pois é, Sam,
aqui não há desertos para se atravessar
num Cadillac vermelho conversível,
ouvindo o grito das estrelas
como nesses road movies
de poeira e asfalto.

aqui, meu velho, a solidão
é uma ordem de despejo
que dói primeiro na alma,
como um soco bem dado na cara.

ando fodidamente apaixonado,
bêbado e infeliz, confundido
com essas sombras que vão saindo
de dentro de um blues muito antigo,
roendo a noite, devorando a noite,
essa noite vadia e desabitada
em que quase me desprezo
a ponto de cuspir, com raiva,
no sorriso idiota do outro
que me olha, encarcerado,
no espelho

na verdade, Sam,
anda tudo tão-caos, tão-cão
que, se não fosse essa covardia escrota,
ensaiaria um passo de dança, um vôo-livre
— pássaro de cinco asas —
num copo de vodca e barbitúricos,
no banheiro imundo de um motel perdido,
ouvindo a trepada impossível
do casal do quarto ao lado.

ando fodidamente apaixonado, Sam,
entre um uísque barato
e uma mulher sem nome,
desejo e repulsa, inferno e céu,
e agora, não ria, dei pra achar bacana
até uns boleros de Ravel.

assim, meu velho, quer dizer,
do jeito que vão as coisas sem que eu vá com elas,
melhor estar morto na próxima cena.
e o nome disso, talvez, como saber?,
ainda seja amor.

 


Uma Tristeza Através

Cartas... bilhetes... recados... avisos.
Uma tristeza através.
Toda memória é um sonho indeciso.
Já a vida, essa é real e de viés.

Real e de viés como a arqueologia da desesperança.
Pinturas... retratos... imagens que não reconheço.
Nesses desabitados estilhaços de lembrança,
quanto mais me recordo, mais esqueço.

Quanto mais eu ardo, nessa tarde
De alheio cristal azul, mais eu tardo e anoiteço.
E sigo, diluído em sombras e saudade,
e me despeço de tudo que não fui e desconheço

e penso, inevitável, que a solidão
inútil das coisas é só mais um segredo
que guardamos sem ódio ou paixão
como quem vive ou ensaia o próprio degredo.

Lembra quando toda música era magia
E, sem saber, qualquer verso vencia a vida?
Lembra quando sorríamos pra fotografia
certos de que toda história é uma ilusão perdida?

 


Pesares

1.

apesar dos césares
das arenas
           dos radares
           das antenas

a gente se escalavra
— sem alento
ou palavra —
se adia
um momento
         feito chuva
que não estia


2.

apesar dos pesares
dos problemas
         dos olhares
         dos dilemas

a gente continua
— sem tormento —
senta a pua
suaviza
          feito vento
                    mandando brisa

 


Depois do Último Atentado

qualquer dia, de repente,
a gente acaba se encontrando,
numa dessas esquinas perturbadas
de um poema angustiado.
(como aquele do Iessiênin
a um Maiakovski desesperado)
e só então você vai ver,
que ainda arrebento o silêncio
(feito essas janelas estilhaçadas
depois do último atentado)
e ao invés de cortar os pulsos
e estragar as paredes do motel,
te mando um cartão-postal
de um lugar qualquer,
só pra dizer que, por aqui,
as coisas continuam indo mal.

 


Janela Aberta Para o Caos

dilacerado de desejo
e poesia,
transpassado pelo mistério
que se anuncia
como qualquer sonho pouco
visto sem ênfase ou paixão:
todo poeta é um santo
profeta
bastardo
deserdado
e louco
a meio caminho
entre o desespero e a revelação.
todo poeta é um tanto
inocente
vadio
cruel
e demente
entre a castidade e o cio:
ferido de morte,
no cerne na língua,
sofrendo diário,
à mingua:
escrevo só o que renuncio:
Cérbero abatido, Medusa horrorizada
diante da possibilidade do espelho,
único e vário,
crente de que toda ilusão
é ilusão de nada,
palavra naufraga no dicionário,
cega pro que não se pode viver:
todo poeta é uma janela
indiscretamente aberta para o caos
certo de que nem todo dia
é um bom dia pra se render.

 


Curta-Metragem Solidão

sorrir é revelar
o íntimo segredo dos dentes.

ando meio ateu
descrente
alguém a quem
todo o gesto
soa indiferente.

entre nós
— você e eu —
(entrementes)
só há um resto
de sombra
na divisa do sonho
marcando a vida
que entra pelo cano.

entre nós
há uma palavra que enferruja
um céu distante
adivinhando chuva
gosto estranho de fim de ano
e uma solidão que passa
em segundo plano.

 


Bilhete Encontrado no Bolso do Casaco

poder, não posso:
isso
de comer a carne
e roer o osso
já é vício
 
dessa vida-safada,
dessa vida-cahorra,
dessa vida-danada,

que me toma e aprisiona
num fundo sem fundo
                    (masmorra)

que me confisca
o mundo
e me doma

só a voz arrisca
e atenta,
tímida a dizer
que já não agüenta,

como bem pode ver,
essa obrigação diária
em ter

o coração aberto,
as mãos espalmadas
e o olhar deserto.

 


Inviolável Corpo

corpo-claro
como estas manhãs
sem sonhos

corpo-raro
margem impossível
e alheia travessia

corpo-abrigo
intervalo
          entre
o vivido
e o imaginado

corpo-corpo
inútil corpo
como corpo qualquer

corpo-gozo
que se gasta
no prazer
de outro corpo
que se gasta em outros
que de outros corpos
é o prazer que
se gasta
em nós

porque assim nos
é dado
sofrer.

 


Ala Dos Feridos

            A Rodrigo Garcia Lopes

escrevo com essa gana
de quem erra no alvo
ou morre de sede
escrevo como um cego
que topa pelas paredes
e naufrago,
no escuro, se escalavra
implorando pra ser salvo.
escrevo com essa gana
de quem se entrega,
se deita,
renega
e aceita
o cio viscoso da palavra.
escrevo como quem se engana,
como quem se arrisca
num vôo incerto
feito um louco varrido
que nunca sabe ao certo
onde fica
a ala dos feridos.

 


À Emily Dickinson

a palavra está morta
irremediável 
mente 
morta

          (bruta, besta,
          alucinada 
          mente 
          morta)

a palavra está morta
e, como um cancro,
apodrece em nós.

 

 

Tessitura Impossível

teço
lento
esta
mortalha
(mortalhamente),
que há de cobrir tudo
um dia,
quando a vida
(essa náusea em ser),
ou o mundo
me devolver
só e mudo,
(quem diria?)
ao meu inútil estado
de Poesia.

 
Partilha
 
toma estes braços
que já não servem
 
estes olhos
que já não sentem
 
estes pés
a medir passos
a deixar rastros
na pétrea superfície
dos dias
 
toma estas palavras
que já não prestam
a esta voz
de boca inútil
de desejo fútil
a marcar a carne
a roer a carne
no intervalo perfeito
dessa perfeita falta
de amor
 
toma esta ausência
em mim assimilada
esta angústia estúpida
que já não vale
                     nada.
 
 
 
 

Arqueologia da Solidão

no baú de madeira
— mogno enegrecido —
uma história imperfeita
de desconsolo, de desabrigo:

alguns versos avulsos
amarelecidos com o tempo
retrato polaroid desbotado
instantâneo vazio
de qualquer paisagem

um exame de sangue
um teste emocional
uma bula rasgada
nas reações adversas
um cartão de natal
postado aleatoriamente
de um lugar qualquer
do mundo
distante e estrangeiro
(como é, sempre hão de ser
os lugares quaisquer
do mundo)

uma partitura manchada
disco de vinil partido
livro sem capa
palavras em pedaços
bilhetes datas convites
que souberam a nada
e brotam sob a tênue pele do esquecimento

uma carta de amor
dizendo
"eu te odeio te odeio te odeio"
eco reverberando na noite
insonemente acumulada
na memória da carne
dos músculos da vida
distribuída e dada.

no baú de madeira
— mogno enegrecido —
a alma dilacerada quase em paz
sofre a lembrança e o aviso
de que aqui os dias
resistem iguais.

 

 

Ilustrações do Medo  

Tenho medo de atravessar a noite,
essa noite enorme e liquida, sem lua,
quando todos os gatos são pardos,
o vento fere o rosto feito um açoite,
abrindo a pele, rasgando a carne,
doendo as forças e perdendo os caminhos,
enquanto o passo vacilante continua.

Tenho medo de virar a chave,
de abrir a porta e descobrir
que estou sozinho outra vez
e já não adiante mentir:
ligar o rádio, o chuveiro, a TV,
andar pela casa, parar na janela,
fumar olhando a rua deserta,
dar um crédito ao céu cinza, pesado,
sufocando a voz numa canção
que a gente canta baixinho
e toma o lugar de uma oração.

Tenho medo de sair por aí,
de acabar dançando no meio-fio,
bêbado, infeliz e amargurado
como quem acaba de cair
de um décimo andar desolado
sentindo a fria-lâmina do vento,
ou de se afogar nas águas diáfanas desse rio
que bem poderia ser o perdido Aqueronte
a nos condenar ao esquecimento.

Tenho medo de enlouquecer
à meia-noite, nostálgico e melancólico,
diante do espelho partido
que denuncia o enorme silêncio 
saído de dentro dessa ausência
em mim assimilada
que se interroga o próprio destino
enquanto, lenta, naufraga
entre sentimentos ordinários,
prestações atrasadas, tarifas de embarque,
a vida em faturas, esfregada na cara
como um desses velhos crediários
que a gente não precisa, mas paga.

 

Roteiro Sentimental De Uma Noite Fracassada

Eu vou dizer que você não entende nada desses tangos muito antigos,
de Borges, Cortazar, Arlt, Gardel ou das plazas cinzentas de Buenos Aires
às duas da manhã de um dia qualquer de Abril, quando os lilases anunciam nossa lenta devastação.
Eu vou pedir outra vodca, um maço de Marlboro e escolher um Sinatra na jukebox.
Eu vou olhar nos teus olhos e pedir para que não tenha ilusões
porque, não, decididamente, eu não te amo para além da noite derrotada lá fora
e não há escolhas, salvaguardas, afetos ou cenas líricas que possam violar, de repente,
essa crosta claustrofóbica, nostálgica e indiferente que perturba as palavras e vai parindo o silêncio.
Eu vou olhar para o teto, contar as frestas e rachaduras, pensar nessa alma igualmente arruinada
e sorrir um desses sorrisos premeditados, que a gente guarda para a ocasião certa
entre o abandono absoluto e a sensação de que, passado tanto tempo, se está completamente fodido.
Eu vou acender outro cigarro, pedir a conta e te convidar para sair.
Então, vamos juntos, nós dois, pelos calçamentos amarelecidos da noite.
Eu, pensando que ainda dá pra reconsiderar aquele suicídio eternamente adiado.
Você, se perguntando onde estava com a cabeça quando se apaixonou por um cara esquisito feito eu.
Depois, na esquina, tomamos um táxi, quando as estrelas estão a ponto de desabar
(Nessa hora é bom resistir à tentação de contemplar o céu e latir pra lua sufocada lá em cima),
e saltamos antes do taxímetro cobrar por essa vida que passa, em câmera lenta, na janela do carro.
Eu vou dizer que não adianta, afinal, você não entenderia mesmo o abismo que parte a madrugada.
E caminhando ao meu lado, na ponta dos pés, você vai me dar um beijo, manchando o batom
como quem sabe que a noite, ao menos dessa vez, vai dar em nada.

 

(imagens, respectivamente, ©jim dine e scott lesiak)

 

 

Márcio Scheel (Ibitinga, SP, 1978). Ensaísta, professor, poeta e escritor. Mestrando em Estudos Literários pela UNESP — Araraquara. Vencedor do concurso de ensaios Jorge de Lima no Contexto Universal da Poesia – 2004, promovido pela Academia Alagoana de Letras. Escreve uma coluna de crítica literária para o jornal Tribuna Impressa de Araraquara. Blogue atualizado de acordo com as mais precárias circunstâncias: www.marcioshell.blog.uol.com.br. Gosta de Frank Sinatra cantando I've got you under my skin, filmes antigos e livros que nunca estão na lista dos mais vendidos. De quando em quando, desiste do ser humano só para se certificar de que somos nossa única e desafortunada esperança. Ainda acredita no poder redentor da poesia. Autor dos romances inéditos Impressões e A Inevitável Tristeza dos Domingos. Dizem que já sorriu mais.