QUAL É MESMO O SEU NOME?

 

De toda a grana que eu havia ganhado nos últimos dois meses restava apenas uma nota de vinte e uma opção: ir ao cinema e assistir "O homem que não estava lá", último filme dos irmãos Ethan e John Cohen. Para sobrar algum trocado, decidi ir a pé e, para o meu desespero, o tal cinema ficava dentro de um shopping, no centro de Santo André.     

Já manifestei inúmeras vezes a enorme ojeriza, o asco e o ódio que eu sinto por shoppings. Mas sempre que posso, aproveito para descer o cacete nesses templos de adoração à estupidez humana. Neles a poesia não mofa, porque não existe. Tudo de plástico. "Fake". Engessado. Mas, enfim, eu não tinha alternativa. Então, quando deu seis horas da tarde, enfiei minha calça preta, meu tênis All Star, vesti a minha camisa do The Clash, peguei a jaqueta jeans e iniciei minha caminhada rumo ao antro dos imbecis, atrás de um filme de qualidade, que me desse alguma alegria. Resolvi levar também um livro do Baudelaire, de poemas em prosa. Julguei que talvez pudesse ter alguma utilidade.

Vinte e cinco minutos depois, eu já estava praticamente do lado da porra do shopping, quando pensei: "Não. Careta não vai dar pra encarar esse lugar!". E fiz uma parada estratégica num boteco que ficava bem em frente.

Tomei uma cerveja e um conhaque vagabundo. Também comprei um maço de cigarros Camel, tirei um e dei umas boas tragadas. Depois, tive a minha leitura interrompida pelo dono do bar (suponho), que sei lá por quê, contou-me que morou em Barcelona dois anos e que lá os catalãos boicotaram o consumo de gasolina nos postos locais, devido a um inoportuno aumento.

Fui cortês. Ouvi a história toda, sem mandar o cara tomar no cu e me deixar em paz. Como disse: deixei que falasse, enquanto terminava de beber meu conhaque. E quando troquei a nota de vinte, prometi pro cara que voltaria. Balela.

Entrei no shopping.

Puta que pariu!

Eu procurava a porra do cinema e achava que todos me olhavam assustados, comecei a pensar se não seria melhor desistir de toda aquela "radicalidade" e gastar o resto do dinheiro no bar do catalão. Não desisti.

Faltavam apenas dez minutos para começar o filme e meu amor pelo cinema falou mais alto. Fui até a bilheteria onde, separada por um grosso vidro à prova de balas e de qualquer tipo de contato humano, uma mocinha de cabelos presos num coque que a envelhecia pelo menos uns quarenta anos, me informou que "a sessão das sete horas já esta lotada, senhor". Ou seja, eu teria que esperar até às nove horas para ver o filme. Duas horas dentro do shopping! Aí, virou uma questão de honra: "Vou ficar, ver essa merda e pronto!" — resolvi.

Voltei à bilheteria, comprei o ingresso, descolei uma pilastra para me encostar e agradeci ao diabo por ter trazido o livro. E como nada me chamava a atenção naquele lugar do caralho, acendi um cigarro e enfiei a cabeça nas paranóias em prosa do Baudelaire. Quando achei que permaneceria por ali, entretido com aqueles poemas, apareceu aquela que me faria mandar à merda o francês genial e genioso.

Chegou à bilheteria um tanto quanto esbaforida. Comprou ingresso e imediatamente saiu do guichê, cavoucando a bolsa, até conseguir tirar de dentro um telefone celular. Fez uma ligação. Não teve retorno e isso a deixou puta da vida: — "Merda!" — reclamou.

Nesse momento, eu, que já tinha a minha atenção completamente voltada para ela, observei-a melhor e notei que seus cabelos curtos, pintados de vermelho, realçavam-se ainda mais dentro do seu visual exótico, devido a uma linda tatuagem tribal, localizada na parte de trás do seu pescoço. Usava uma jaquetinha de couro marrom e uma calça jeans, deliciosamente agarrada. Tinha uma bunda linda! Um corpinho bonito e um rosto que, se não era tão lindo, pelo menos, completava bem o conjunto de toda aquela obra. Era gata sim.

E seu jeitinho de perdida no mundo, alienada, aquele andar desgrenhado, o barulho do salto das suas botas, a sua ansiedade em tentar se comunicar com o babaca, que estupidamente insistia em não atendê-la, e todo o contraste criado pela aparente cara de "patricinha", que ela forçava, davam um encanto todo especial àquela mulher. Lá pela quinta vez que tentou ligar para o otário, nossos olhares se cruzaram. Àquela hora eu já estava sentado no degrau que dava acesso às salas de cinema.

Um cara com roupa de garçom do Mac Donald's perguntou-me se eu poderia me levantar dali, eu disse que não. Aí, ele foi buscar outro — que parecia gerente de sorveteria, vestido com uma camisa de manga curta e uma gravata de crochê preta —, que me fez a mesma pergunta. Eu mandei os dois pra puta que pariu. Ela riu.

Começamos a trocar olhares e então eu a vi mascando um chiclete, freneticamente, com cara de puta, olhando-me por cima do ombro. De repente, saiu andando e não precisava de mais nada.   

Quando o garçom do Mac Donald's e o gerente de sorveteria vieram em minha direção com outro — que usava um terno de funcionário de funerária — não esperei que me fizessem a mesma pergunta pela terceira vez. Levantei-me, passei por eles e fui direto atrás dela. Agora ela rebolava pra caralho e olhava pra trás, sorrindo, com cara de desafio. Eu, tal qual um cachorrinho, ia atrás. Quando cheguei perto, ela me olhou e sorriu mais, da porta do banheiro feminino. Não afinei, não!

Entrei com tudo no banheiro das mulheres. Limpo! Nojentamente limpo! Bem diferente daqueles em que eu costumava vomitar as minhas noitadas. Ela me olhou pelo espelho, com as mãos apoiadas na pedra de mármore da pia do banheiro. Riu de novo. Eu não...

Cheguei por trás, abracei-a, encoxando-a e enchendo as mãos nos seus peitos. Tasquei-lhe a língua na orelha, deixando minha mão escorrer por dentro da calça dela. Achei! Enfiei o dedo em sua buceta. E ela me respondeu, rebolando a bunda gostoso no meu pau, tão duro, que latejava dentro da cueca. Depois, ela se virou e enfiou a língua na minha boca, puxando os meus cabelos, e iniciando um beijo nervoso. Quando tentei jogá-la em cima da pia ela não deixou.

Empurrou-me, beijando-me, até eu entrar em uma daquelas cabines. Ajoelhou-se e ali mesmo chupou minha rola, como ninguém jamais havia chupado antes, fazendo-me gozar até no teto! Quando tentei virar o pau pra gozar nela, ela se preocupou em não sujar a jaquetinha e protegeu-se, usando a cara. Não deixei por menos, enchi-a de porra, até a última gota!

Quando terminei, estava de pernas bambas. Ela aproveitou-se e meteu as mãos no meu peito, empurrando-me, o que me fez cair de bunda na privada. Depois me olhou altiva, vitoriosa, com a cara melada e cheia de porra e sorriu, definitivamente. Com a mão direita, eu fiz o sinal de paz e sorri também. Ela saiu, lavou o rosto e voltou para o saguão do cinema.

Levantei-me, peguei o livro do Baudelaire que eu havia largado em cima da pia, e voltei correndo para a cabine. Rasguei uma folha e limpei-me (sabia que ele teria alguma utilidade). Vesti a roupa e quando abri a portinha da cabine, duas garotas deram de cara comigo, assustadíssimas:

Qual é, mina?! Preconceito mais besta... — falei, olhando para uma delas, e saindo do banheiro.

No saguão, ainda encontrei a matadora do banheiro. Não nos falamos. Ela foi para a fila dela, ver o Brad Pitt e eu fui para a minha, ver o Billy Bob Thorton.

Cada um tem o superstar que merece.

 
 
 

 

 

 

EMANUELE BEART COM O RABO CHEIO DE CACHAÇA

 

Último trem. Meia-noite e cinco, começo de madrugada, estação Brás.

As portas já estavam se fechando, quando ela, esbaforida, cambaleante, conseguiu embarcar. Em seguida o trem partiu.

Naquele vagão, além de mim que voltava do cinesesc — fui ver um filme do Dusan Makavejev — havia uns moleques fazendo barulho e dividindo uma garrafa de alguma coisa. Mais alguns trabalhadores e estudantes, podres de cansaço creio eu.

Ela sentou-se ao meu lado. Talvez, por estar mais perto. Em seguida, começou a abrir apostilas e fazer anotações com um lápis preto nº 2, enquanto eu devorava Dostoievski pela "centésima vez". Numa das anotações estava escrito: "pesquisar Luckacs", e eu não agüentei.

Perguntei-lhe o que ela queria com o Luckacs e descobri que além de morena, linda, de olhos castanhos, corpinho tentador, sorriso largo e simpático, ela também queria ser socióloga. Eu respondi que queria ser menino, ela riu. Falei bem do Florestan Fernandes e do Max Weber, ela concordou. Disse que o The Who era do caralho, ela cantarolou "Magic Bus". Então, apresentei-me como basco e anarquista e ela quis me bater.

Chamou-me de pequeno burguês, mimado, playboy, filho de uma classe média decadente e eu respondi, dizendo que ela tinha pintinhas lindas no rosto. Ela mandou eu ir me fuder e eu convidei: "Vamos juntos". E nós dois rimos dessa vez.

Quando chegamos em Santo André já não havia ônibus para nenhum de nós ir embora. Ela, então, me convidou para beber alguma coisa. Sugeri o "Enio's", na área chique da cidade, e ela decidiu que nós iríamos ao bar das putas, que ficava em frente ao terminal rodoviário.

Tomamos todas!

Falamos merda, discutimos política e ela disse que como ateu eu era um fracasso. Daí eu falei que em quase tudo eu era um fracasso e que, além do mais, ela tinha cara de vendedora da Daslu e ela enfureceu-se. Levantou-se e foi até a máquina de música, colocou um som do Tim Maia. Eu também fui lá e coloquei dezoito fichas, para que nós pudéssemos ouvir "Live At BBC", do Led Zeppelin inteiro. Quando o cd acabou, o dia clareou e nós já estávamos chapados. Pagamos a conta.

Na calçada ela devolveu a minha jaqueta, beijou minha boca, disse que me ligava e nós nos despedimos.

Agora são oito e quarenta da manhã de quinta-feira. Às três da tarde começo a trabalhar e antes preciso resolver algo com a minha "eterna ex-namorada", rica, judia e mimada. Mas, por ora, a única coisa que tenho que fazer é correr até o banheiro: preciso vomitar!

Com licença.

 
 
 

 

 

 

NEM BOLCHEVICK NEM NEOLIBERAL: APENAS PAGANDO AS CONTAS. E UMA PAUSA PARA UM CÉREBRO EM POSSÍVEL LIQUIDAÇÃO

 

Enquanto eu terminava de escrever um artigo sobre a obra do Carlos Saura, o James Woods chicoteava um aparelho de tv em uma clássica cena do ótimo "Videodrome". Vi de relance. Continuei concentrado no que estava fazendo. Ainda assim, eu observei quando ela se levantou do sofá, para desligar o televisor. Depois, foi até a minha estante e entre discos, fitas vhs, cassetes, dvds e cds, escolheu um cd: o primeiro do Bad Company. Eu adorava. Colocou o cd, escolheu a faixa "Ready for Love" e apertou a tecla de repetição, alegando que precisava ouvir aquela música várias vezes.

Depois, pegou um disco do Blue Oyster Cult. Sentou-se no sofá, em posição de ioga, tirou uma muca de fumo e o dechavou em cima da capa do disco que ela usava de apoio, em seu colo. Terminou.

Na falta de uma seda apropriada, rasgou uma página de "Panamérica" e, com um belo trecho do Agrippino, bolou um baseado enorme. Acendeu, tragou e, enquanto o Paul Rodgers rasgava a garganta naquela balada maravilhosa, a Érica deixava escorrer a primeira lágrima rosto abaixo.

Nessa hora eu já tinha parado de escrever o artigo. Apesar de estar num cômodo separado e distante do resto da casa (o quarto da casa dos fundos que eu tinha improvisado como escritório), aquela maconha era da boa e então, um incenso se fez necessário. Fui acendê-lo, mas me mantive em silêncio.

Abri a minha geladeira velha, peguei uma garrafa de vodca que há meses estava lá, um copo grande e um lenço. Entreguei tudo a ela, que me agradeceu e voltei para a frente do computador. Era foda pra mim...

Eu estava limpo fazia uns quatro meses. Não estava mais bebendo, cheirando, tinha largado as anfetaminas, e só continuei fumando meus cigarros Camel, para não correr o risco de ir para o céu. Ou seja, eu não estava mais naquelas paradas. As coisas estavam começando a clarear um pouco. Estava pintando trabalho, eu estava ganhando um troco e começava a entender a importância de se ter juízo. Porque só quem tem juízo sabe o quanto é bom perdê-lo.

Uma coisa que eu prometi para mim mesmo, que jamais faria na vida, seria fechar as portas da minha casa para os meus amigos. Estivessem eles no estado que fosse. Caretas, chatos, lúcidos, doidos ou agradáveis, não importa. Nenhum estado alterado, seja de consciência ou de idiotice, jamais faria eu mudar meus sentimentos em relação aos meus amigos. Com a Érica não seria diferente.

Ela estava numas de horror. Cismou que estava apaixonada por um playboizinho burro, careta, chato pra caralho, que curtia mais o carburador do carro dele, que a buceta dela. E olha que a Érica é um puta de um bucetão. Como era linda a minha amiga!

Enquanto comentava "Cria Cuervos", desviei o olhar do computador e a vi chorando, descabelada, fumando maconha e bebendo vodca, ao som de Bad Company. Mesmo assim, aquela morena alta, de cabelos pretos e corpo escultural, era simplesmente divina. Maravilhosa!

Era impossível, portanto não pensar: "Que diabo uma mulher dessa vê num bosta daqueles?".

"Hiram..."

"Oi, Érica."

"Eu tô atrapalhando você?"

"Deixa de ser besta, Érica."

Continuei digitando. Ela insistiu:

"Então, dá para você olhar pra mim, quando eu falo com você?!"

"Fala" — respondi, virando-me para ela.

"Você pode sentar aqui um pouquinho?" — pediu-me, apontando para o lugar em que eu deveria me sentar.

Fui lá. Ela aposentou o copo no chão, o baseado no cinzeiro, e deitou a cabeça no meu colo. Automaticamente, levei minha mão até os seus cabelos, iniciando um afago. A outra, coloquei na testa, para pensar algo tipo: "Puta que pariu, agora fudeu...". Quando ela começou a chorar baixinho, vi que fudeu mesmo. Permaneci em silêncio. Isso a intrigou:

"O que você tem, Hiram?"

"Eu? Nada..."

"Então, por que você tá aí, calado, petrificado? Parece que eu não estou aqui e você tá longe. Já te perguntei se estou te incomodando e você disse que não. Então, que..."

"ÉRICA! Érica, eu já te falei que você não tá me incomodando. Fica tranqüila, se você começar a me incomodar, eu prometo que te jogo pela janela, tá bom?" — falei, acariciando os belos cabelos pretos dela. Pouco depois ela, que estava deitada de lado, virou-se de frente para mim. E disse:

"Então, por que você não fala nada?"

"Porque você não veio até aqui para me ouvir falar nada, Érica. Você veio, procurando alguém que te ouça. Eu sou seu amigo e se você quiser, pode falar a noite toda que eu..."

"Merda! Você está pensando igual a todos eles. Por que não fala logo de uma vez..."

"Porque eu sou seu amigo. E o que eu penso, o que eu acho ou deixo de achar, é o que menos importa. O que importa é o que você sente. Eu respeito isso."

"Que papo é esse, Hiram?"

"É verdade, Érica. Não sou eu quem está apaixonado, não sou eu quem gosta do cara, então não sou eu que..."

Ela se levantou bruscamente e, de pé, encarou-me, dizendo:

"Que merda de papo proselitista é esse, Hiram? Conversinha de jesuíta! Tá querendo enganar quem? Você não é assim. Que diabos está acontecendo com você?!"

"Ai, porra..."  — resmunguei, pegando o cinzeiro para limpar.

"E não me dá as costas!"

"Érica, o que você quer que eu te diga? Que aquele moleque é um merda? Que não te merece? Que você é mulher demais pra ele? Que você é uma pessoa bem melhor que aquele filho da puta? Redundância! Você sabe de tudo isso. E por que está sofrendo pelo cara? Porque gosta dele. É algo que foge à razão. Coisas do coração. Eu não costumo condenar aqueles que ouvem o coração... Caralho! Me diga você, alguma coisa nova. Porque se eu repetir tudo aquilo que todo mundo já te disse, você só vai ficar mais irritada e não vai adiantar nada..."

"É aquela mulher..."

"Hã..."

"Aquela judiazinha rica! A patricinha de Moema..."

"... Pronto, já tá bêbada..."

"Como não é ela, Hiram? Depois que você voltou com ela, você parou de beber, largou a cocaína, sumiu das paradas... Olha pra isso: um computador! Aposto que foi ela que te arrumou o trabalho e o computador. Foi ou não foi?"

"Érica... você tá louca."

"RESPONDE! Foi ela ou não?!"

"Tá! Suponhamos que sim,  que essas sandices que você acabou de dizer sejam verdadeiras. Será que é tão ruim assim?"

"Sabia..."

"Caralho! Que mal que tem, largar daquele inferno todo, parar de vez em quando, dormir uma noite ou outra..."

"VOCÊ TÁ VENDIDO, HIRAM!"

"PÁRA! Chega! Não diz isso nem de brincadeira, Érica."

"Hiram, você tá completamente diferente. Nós estamos aqui há quase quatro horas e você nem sequer tentou transar comigo. Eu não quero amigo, eu quero é me afogar na putaria! Você sabe disso. No entanto, fica aí, posando de bom samaritano. Gentleman. Coisa que você não é! E esse tal trabalho — falou, enquanto virava o monitor do computador para ela — CRÍTICA! Você virou crítico! Crítico de cinema, e dos piores que existem, Hiram!"

"Érica, eu só estou pagando as contas..."

"Essa é a diferença: você antes pagava as contas com poesia. Agora é só mais um burguês acomodado, encostado, mofando num "bom" emprego e apodrecendo dentro de um belo carro importado, com bússola e itinerário — Santo André/ Moema. Você não é nem um pouco diferente do "moleque" por quem eu me apaixonei...”

Falou, enquanto cambaleava pelo escritório, pegando a bolsa e as chaves do carro.

"Aonde você vai?" — perguntei.

"Vou embora! Quando você voltar a ser poeta, escreva alguma coisa pra mim. Yupie do caralho!!!" — gritou da porta.

Bêbada daquele jeito, com o cu cheio de maconha, totalmente transvirada, obviamente, a Érica nem passou do meio do corredor do quintal. Estava tombando. Lindamente alucinada. Quase que eu acatei a sugestão dela, de transar até o resto daquela madrugada acabar. Mas naquele estado, achei que seria mais prudente levá-la até o sofá do escritório, deitá-la, cobri-la e voltar para o computador. Precisava terminar o maldito texto. Enquanto escrevia, olhava a Érica dormindo. Parecia um anjo. Sono tranqüilo. Tranqüilidade que só a embriaguez é capaz de trazer. "Que inveja" — pensei.

Depois, até que não fiquei tão puto com a minha insônia naquela noite. Aproveitei para pensar em tudo o que a Érica me disse. É claro que eu não tinha me vendido, nem me transformado em absolutamente porra nenhuma. Mas também não questionei nada do que a Érica me disse. Como disse, de vez em quando, a gente precisa mesmo falar. Não importa o quê. Faz-se necessário falar. Botar pra fora, desengasgar, vomitar tudo aquilo que sufoca a gente. Pode ser a gota d'água do Chico Buarque. Pode ser "Dirty" ou "Loser" dos Stooges.

Ou também pode ser apenas um cara cansado de guerra, preocupado em pagar a porra da conta luz.

Seja como for, eu não sou yuppie.

 

 

(imagens ©will connell)

 

 

 

 
 

Marcelo Mendez (05/10/1971, Santo André-SP). Escritor inédito, prepara a publicação de seu primeiro livro, um romance, para 2007.