
GILDA
Não ponha o nome de Gilda
na sua filha, coitada,
Se tem filha pra nascer
Ou filha pra
batizar.
Minha mãe se chama Gilda,
Não se casou com meu
pai.
Sempre lhe sobra desgraça,
Não tem tempo de
escolher.
Também eu me chamo Gilda,
E, pra dizer a verdade
Sou
pouco mais infeliz.
Sou menos do que mulher,
Sou uma mulher
qualquer.
Ando à-toa pelo mundo.
Sem força pra me matar.
Minha
filha é também Gilda,
Pro costume não perder
É casada com o
espelho
E amigada com o José.
Qualquer dia Gilda foge
Ou se
mata em Paquetá
Com José ou sem José.
Já comprei lenço de
renda
Pra chorar com mais apuro
E aos jornais telefonei.
Se
Gilda enfim não morrer,
Se Gilda tiver uma filha
Não põe o nome de
Gilda,
Na menina, que não deixo.
Quem ganha o nome de
Gilda
Vira Gilda sem querer.
Não ponha o nome de Gilda
No corpo
de uma mulher.
A MÃE DO PRIMEIRO
FILHO
Carmem fica matutando
no seu corpo já passado.
— Até à volta, meu seio
De mil
novecentos e doze.
Adeus, minha perna linda
De mil novecentos e
quinze.
Quando eu estava no colégio
Meu corpo era bem
diferente.
Quando acabei o namoro
Meu corpo era bem
diferente.
Quando um dia me casei
Meu corpo era bem
diferente.
Nunca mais eu hei de ver
Meus quadris do ano
passado...
A tarde já madurou
E Carmem fica
pensando.
INDICAÇÃO
Sim: o abismo oval atrai
meus pés.
Leopardo familiar, a manhã se aproxima.
Preciso
conhecer em que universo estou
E a que translações de estrelas me
destinam.
Em três épocas me observo sustentado:
Na pré-história,
no presente e no futuro.
Trago sempre comigo uma morte de bolso.
Assalta-me continuamente o novo enigma
E uma audácia imprevista
me pressinto.
Arrasto minha cruz aos solavancos,
Tal
qual profunda mulher amada e odiada,
Sabendo que ela condiciona
minha forma:
E o tempo do demônio me respira.
Gentilíssima dama
eternidade
Escondida nas raízes do meu ser,
Campo de
concentração onde se dança,
Beatitude cortada de fuzilamentos...
Retiram-me o véu que sei de mim.
Ontem sou, hoje serei, amanhã
fui.
PERSPECTIVA DA SALA DE
JANTAR
A filha do modesto
funcionário público
dá um bruto interesse à natureza morta
da
sala pobre no súburbio.
O vestido amarelo de organdi
distribui
cheiros apetitosos de carne morena
saindo do banho com sabonete
barato.
O ambiente parado esperava mesmo aquela
vibração:
papel ordinário representando florestas com tigres,
uma ceia onde os persongens não comem nada,
a mesa com a toalha
furada
a folhinha da qual a dona da casa segue o conselho
e o
piano que eles não têm sala de visitas.
A menina olha longamente pro corpo dela
como se ele hoje estivesse diferente,
depois senta-se ao piano
comprado a prestações
e o cachorro malandro do vizinho
toma nota
dos sons com atenção.
A TENTAÇÃO
Diante do crucifixo
Eu paro pálido tremendo
"Já que és o verdadeiro filho de Deus
Desprega a humanidade desta cruz".
O RATO E A
COMUNIDADE
1
O rato
apareceu
Num ângulo da sala.
Um homem e uma mulher
Apareceram
também,
Trocaram palavras comigo,
Fizeram diversos gestos
E
depois foram-se embora.
? Que sabe esse rato de mim.
E
esse homem e essa mulher
Sabem pouco mais que o rato.
2
Passam
meses e anos perto de nós,
Rodeiam-nos, sentam-se com a gente à
mesa,
Comentam a guerra, os telegramas,
Discutem planos políticos
e econômicos,
Promovem arbitrariamente a felicidade
coletiva.
Conhecem nosso paletó, camisa e gravata,
Nosso sorriso e
o gesto de mover o copo.
Têm medo de nos tocar, não conhecem nossas
lágrimas.
? Que sabem do nosso coração, do nosso desespero, da nossa
[comunicabilidade.
Que sabem do centro da nossa pessoa, de que são
participantes.
...Subúrbios longínquos, esses homens.
3
Entretanto cada um deve beber
no coração do outro.
Todos somos amassados, triturados:
O outro
deve nos ajudar a reconstituir nossa forma.
O homem que não viu seu
amigo chorar
Ainda não chegou ao centro da experiência do
amor.
Para o amigo não existe nenhum sofrimento abstrato.
Todo o
sofrimento é pressentido, trocado, comunicado.
? Quem sabe conviver o
outro, quem sabe transferir o coração.
Ninguém mais sabe tocar na
chaga aberta:
Entretanto todos têm uma chaga aberta.
4
Desconhecido que atravessas a
rua,
? Que há de comum entre mim e ti.
A mesma solidão e a mesma
roupa.
Procuras consolo, mas não podes parar.
És o servo da
máquina e do tempo.
Mal sabes teu nome, nem o que desejas neste
mundo.
Procuras a comunidade de uma pessoa,
Mas não a encontras na
massa-leviatã.
Procuras alguém que seja obscuro e mínimo,
Que
possa de novo te apresentar a ti mesmo.
5
A
mulher que escolhemos, a única e não outra
Dentre tantas que habitam
a terra triste,
Esta mesma, frágil e indefesa, bela ou feia,
Eis o
mundo que nos é de novo apresentado
Por intermédio de uma só
pessoa.
Esta é a que rompe as grades do nosso coração,
Esta é a
que possuímos mais pela ternura que pelo sexo.
E nada será restaurado
no seu genuíno sentido
Se a mulher não retornar ao seu
princípio:
É a máquina instalada dentro dela que deveremos
vencer,
Quando esta mulher se tornar de novo submissa e doce,
Os
homens pela mão da antiga mediadora
Abrirão outra vez um ao outro os
corações que sangram.
DATAS
Os magos janeiram dia
6
Os peixes abrilam dia 1
A Virgem setembra dia 8
Os mortos
novembram dia 2.
POEMA DA
TARDE
A tarde move-se entre os
galhos das minhas mãos.
Uma estrela aparece no fim do meu
sangue,
Minha nuca recebeu o hálito fino de uma rosa branca.
Todas
as formas servem-se mutuamente,
Umas em pé, outras se ajoelhando,
outras sentadas,
Regando o coração e a cabeça do
homem:
E dentre os primeiros véus surge Maria da
Saudade
Que, sem querer, canta.
POEMA
ESSENCIALISTA
A madrugada de amor do
primeiro homem
O retrato da minha mãe com um ano de idade
O filme
descritivo do meu nascimento
A tarde da morte da última mulher
O
desabamento das montanhas, o estancar dos rios
O descerrar das
cortinas da eternidade
O encontro com Eva penteando os cabelos
O
aperto de mão aos meus ascendentes
O fim da idéia de propriedade,
carne, tempo
E a permanência no absoluto e no imutável.
MUROS
1. O pintor de olho
vertical
Olha fixamente para o muro
Descobre pouco a pouco
Uma perna um braço um
tronco
A cara de uma mulher
Uma
floresta um peixe uma cidade
Uma constelação um
navio
Muro, nuvem do
pintor.
2. O muro é um álbum em
pé
Política poesia
Desordem
sonhos projetos
Anseios e
desabafos
Um coração atravessado por uma
flecha
"Gravo aqui neste
muro
O amor de João Ventania por
Madalena"
Datas de crimes, de encontros e de
idílios
VIVA O
COMONISMO
3. (escrito na parede de uma
igreja)
Pedra
úmida
Altar frio imagens
ignóbeis
Flores de papel ímãs de
moscas
Ó lugar triste e
árido
O contrário do
arco-íris
Baixará o Cristo
aqui?
Ele baixou num
estábulo
Baixou mesmo até em mim.
AS NÚPCIAS
FALHAS
Catarina comia bife a
cavalo, eu comia bife a pé. Catarina andava de bicicleta, eu andava a
pé. Catarina dispunha de um enorme armário onde
arrumava todos os seus pertences, eu dispunha de uma
cômoda anã. Catarina depilava a axila com uma lâmina gilete, eu fazia a
barba no salão Veneza. Catarina torcia pelo
Botafogo, eu não torcia por clube nenhum. Catarina era Tom Mix,
eu era Greta Garbo. Catarina tinha um amigo
sobressalente, eu não tinha amiga sobressalente nenhuma. Catarina babava-se por doce de leite, eu, por compota de
caju. Catarina gostava de farda, eu gostava de
short. Catarina jogava tênis, eu jogava bilboquê. Catarina sonhava
tecnicolor, eu sonhava em preto e branco.
.
Depois de onze meses de
agridoce convivência, persuadidos da diversidade de nossos gostos e
temperamentos, ajudados por uma cartomante
resolvemos destruir o noivado. Consolei-me pensando
no caso de Kierkegaard que, embora por outros motivos, resolveu também
destruir o seu.
NOTURNO
RESUMIDO
A noite suspende na bruta
mão
que trabalhou no circo das idades anteriores
as casas que o
pessoal dorme comportadinho
atravessado na cama
comprada no turco
a prestações.
A lua e os manifestos de arte
moderna
brigam no poema em branco.
A vizinha sestrosa da janela em
frente
tem na vida um camarada
que se atirou dum quinto
andar.
Todos têm a vidinha deles.
As namoradas não namoram mais
porque
nós agora somos civilizados,
andamos no automóvel gostoso pensando nu
cubismo.
A noite é uma soma de sambas
que eu
ando ouvindo há muitos anos.
O tinteiro caindo me suja os dedos
e me
aborrece tanto:
não posso escrever a obra-prima
que todos esperam
do meu talento.
(imagens ©meta pinto)