Soberania


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O tempo remoto, tempo das princesas. Existiu, existe? Outras princesas aprisionadas acenam de torres de areia. "Você está bem?", pergunta a Princesa do Leste quando vê meus olhos encaixados nas grades da janela. "Eu estou bem", respondo, jogando o fio do novelo de minha voz em sua direção. Ela se anima com a resposta e começamos juntas a tecer a malha de nossas vidas ridículas. Esquecemos o vazio de um mundo imenso coberto pela loucura, esmerando nos dedos minúcias que facilmente aborreceriam os construtores e guerreiros intrépidos do mundo. Enquanto o mundo opera e luta, lamentamos a perda de fortuna da família e relembramos os bailes a que comparecíamos, alegres e constrangidas. "Eu tinha um cetim preto cintura de vespa...". "Eu, um par de luvas de seda com rico bordado de pérolas...". Descobrimos ter tido ambas a mesma estranha felicidade do deslumbre diante do salão iluminado, a felicidade de ser a dona de sorrisos desacostumados a sorrir, a alegria de possuir lustres cujos pingentes espargiam nos quatro cantos da terra, resplandecendo até as pontas da coroa do rei. Descobrimos que ninguém compreendeu esta felicidade, os guerreiros nos acharam tolas, os construtores nos condenaram, os súditos nos odiaram. Ó mundo tão desigual. Na época do auge não nos sabíamos tão tolas, não sabíamos encasteladas num reino de futilidades. Os que nos serviam com o coração duro mentiam sorrisos para apaziguar os filhos do rei. Não sabíamos que além do jardim algumas casas jamais haviam visto um lustre. No entanto sua felicidade era maior que simplesmente possuir um polvo iluminado pendendo avesso do teto. Jamais imaginaríamos que em outros lugares havia pessoas que em vez de ficarem felizes por possuírem um lustre ficavam satisfeitas em ter apenas um teto. Um teto que não reluzia, mas aquecia corações amargurados pela luta. Um teto frágil para suportar o brilho de um lustre, mas suficientemente prático para perfurar o céu e abrigar das tempestades. Sufocadas pelo brilho excessivo jamais tivemos coragem de imaginar como seria a vida sem um lustre. Hoje mais amargas mas ainda estultas percebermos o que nos fazia amar o lustre. Agora quando avisto outra princesa reduzida a escrava, com ela continuo a sonhar que um dia fui dona de um lustre, mas sei que estou apenas enganando a imensidão, fugindo dos dentes do Tempo para que não venha me pedir para morar definitivamente com Ele e sucumbamos no Infinito.
O Reino do Super-Homem


Penso em nuvens e em viagens. Penso em sair de casa e nunca saio. Minha irmã vem em casa, entrega a compra do mercado. É fascinante a vida de quem sai, não simplesmente por sair. Mas sai com o coração cheio, sabendo que pode não voltar à noite. E mesmo assim, o coração repleto até a boca pois para a alegria fomos feitos. Para a esperança fomos feitos, para a ilusão. O sonho do indestrutível.

Penso em viagens que nunca farei. Minha irmã traz postais e revistas. Tão longe a Tailândia, Filipinas, a África, longe como a banca de revistas na esquina. Tão longe, tão perto, distância sempre igual - 50 metros, 500 Km, 5.000 anos-luz. Igual.

Como sou igual à menina que desenhava na folha de papel casas que nunca habitaria. Casas comuns, não castelos, o que importava eram detalhes, não a forma, o espaço. O tapete, as cortinas, o vaso de flores sobre a mesa, os retratos, o cachorro dormindo. Casas que minha irmã também desenhava. Aproveitou bem o jogo da infância, formando-se arquiteta.

Desisti de desenhar casas quando descobri os livros. As histórias foram minha perdição. Quanto mais crescia menos importava o espaço ao redor. Uma cidade se erguia à noite, destruída de dia. Cidade feita de histórias. História de gente comum, histórias que poderiam ser contadas por qualquer um, se qualquer um tivesse tempo de parar e contar histórias. Mas ninguém tem.

Cedo aprendi que ninguém tem tempo de contar histórias. Nem de ouvi-las. Por isto os livros abrigam histórias que serão lidas no fim do dia, quando a tarefa de construir a cidadela está vencida. As fortalezas de cada um.

Super-homem reconstrói a memória na Fortaleza da Solidão. Este sempre foi um lugar impressionante, mais que a batcaverna. A batcaverna é um esconderijo high-tech. A Fortaleza da Solidão, um museu que guarda não só a origem do super-herói como suas fraquezas. Outra palavra impressionante na história do super-homem é invulnerabilidade. A invulnerabilidade do homem de aço é destroçada por um pedaço de pedra radioativa vinda do espaço, todo mundo sabe, até seus inimigos mortais. O importante é perceber que até o homem de aço é vulnerável.

Quando foi que descobri este mundo espesso, vulnerável ao toque de kryptonita? Kryptonita é o mal secreto que tememos. Kryptonita é a pedra de gelo no fundo de cada olhar. Kryptonita é a pedra que abala a Fortaleza da Solidão. A pedra radioativa que atravessa o aço e revela a nossa vulnerabilidade. Kryptonita, meus inimigos sabem, é a pedra que cultivo, entregue a seu poder mortal.

Os heróis salvam o mundo todos os dias. Reconheço eles, suas identidades secretas. Observando os heróis voarem rumo a missões impossíveis, sei que haverá uma hora em que, atraídos pelo brilho da kryptonita, um relâmpago faiscará em seus olhos. Eles terão medo, muito medo, enclausurados na Fortaleza da Solidão. Felizmente o ruído da TV ligada, a criança chorando ou uma briga entre vizinhos dispersará a atenção. E estarão salvos do transe de kryptonita.

Marília Kubota sob a chuva: se há algo que possa ser dito a meu respeito é que sou distraída e não consigo lembrar a maioria das coisas que faço. Por exemplo, este minicurrículo é a respeito de quê mesmo? Num currículo sofisticado eu diria que tenho uma espécie de inteligência "fuzzy", embora tenha impressão que minha memória é continuamente testada pelo detergente que lava mais branco. As falhas neuróticas podem vir do trabalho como jornalista, com o qual me torturo há treze anos. Publiquei em jornais e revistas, até numa antologia brasileira selecionada por uma publicação argentina e isto foi meu guiness. Nunca publiquei livro individual ou comercial, então não vale a pena perder tempo enumerando meus chás literários. Graças aos grupos literários, aliás, cada vez menos gosto de conversar sobre literatura ou escrever poesia. Espero não ser apedrejada em público por isto, mas a cena literária contemporânea é muito chata. Salva-se quem não quer aparecer nos cadernos culturais ou fundar revistas e sites e apenas beberica na sua canequinha água de fontes reservadas. Micropolis.