Viapurú

 

nylon ou fibra tensa sobre a claridade impossível do dia

 

                             quem nos advertiu a insensatez do vôo

                       quem a fúria gelada do outro mundo que é este

 

barco que devém olho no transbordamento de todos os cadeados

 

cego urdimento

 

— crescem membranas na vigília dos meus dedos —

 

                                  as horas inauguram velhas tramas

                                               sob o mesmo sol

 

 

 

 

 

 

Criaturas do ar

 

"serão as novas criaturas do ar

que manam o sangue novo pela escuridão inextinguível"

— federico garcía lorca

 

 

quem pretende acariciar

só crava as unhas numa parede mofada

toda gratuidade foi vedada

rodar — como sísifo — interminavelmente no vazio

 

outros céus esperam o olhar mais claro

— um rumor de grilos ou pétalas que se abrem à urgência do orvalho —

a vida aí lá fora nos esperando

as cores vivas do sangue

um adejo antigo

vai revelar viajantes de sendas

não tão diferentes

 

fazer alvo em costuras alheias soma miséria

tijolos para um muro insalvável

 

toda barreira é ilusória

em caminhos paralelos

 

 

 

 

 

 

Germinal

 

tudo pode estar germinando

germinando-se

gerando-se

girando

se

sim

gira

geo

g

gritando-me

agrisalhando-me

tudo pode estar girando

greta

greda

grrr

sim

gira

sigilo

gira

sim

 

 

 

 

 

 

Labrys

 

Um labirinto não é uma casa.

Uma casa alça a suas paredes defendendo o território, as fixações cotidianas onde se instalam as nossas angústias.

Uma casa é a cultura do sacrifício, o cheiro da comida, os passos ranços da avó arrastando a bengala.

 

Cachorro que levanta a sua pata sobre os velhos móveis (as poltronas manqueiam, o passado tem uma pata frouxa e um atapetamento corroído por esperas noturnas e mudanças)

 

A casa é nos livros de leitura uma mãe que tece, um pai que lê contos junto ao fogão e um gato enrolado sobre o tapete. Mas os felinos não são de muita confiança e nada diziam os silabários sobre o urdimento de quem tecia desespero e tédio nessa tarde de bucólica estampa.

 

Uma casa não é um labirinto, porém pode desenvolver velozes ramificações invisíveis que impeçam o afastamento em demasia. E terá que despedaçar as vozes sem piedade alguma, pintar a geladeira de fúcsia, se espoliar, se limpar com vinagre.

 

Aos sem casa tivemos que mentir em tudo, tirar o brilho da nossa estirpe, prometer horas extras para ser merecedores desses respiradouros que convidavam ao suicídio. Pagamos caro a ousadia da errância, a brevidade das nossas decisões.

 

Uma casa é a maquete de vidros esmaltados pagada com estilhaços de carne.

 

O resto é labirinto.

 

 

 
 
 

Noite de ciranda

 

um olhar leve

duas frases oportunas

e a noite lava as misérias

vai decantar o mistério

à luz das primeiras claridades

 

toda carruagem cabaça amarga

 

mas

 

um ligeiro deslocamento

 

— estar escrevendo quando todos dançam —

pode ser chave perdida

 

débil rasto

 

o fio que

 

e por enquanto

 

 

 

 

 

 

In-corpóreas

 

corpos com nós rezo de cara pra parede um catecismo de santinhos com

 

seria soneub erbos aces avuhc sadaifa salertse etion atse sanepa oãn

 

 

rebordo dourado essa tia frígida vestida de crisântemos brancos não de vermelho não de

 

uèc o è oãn ocovorp et sahlo em ram ednarg od augèl uo augníl amu à

 

 

verde assim não se pega o garfo as costas retas que deuzinho está te olhando

e daí vê por acaso espiona deus acreditará que sim vai optar pelas cores pastel

 

somsem sòn ed soga-rfuàn ojesed on sodahlugrem avilas moc ecet es

 

 

botões costurados aos olhos a magra concupiscência de uma taça de licor antes

 

euq eder elep avon amu otnevni

 

 

de dormir

 

 

 

 

 

 

Em estado de chuva

 

I

 

um espasmo branco o enjôo um chumbo que aparece jaqueta descosturada 91 por corrales1  o que cê vai fazer agora o que cê vai ser quando a inocência for uma tara eterna peste maldição de ter estado em mau lugar num mal momento vê se consegue um guarda-pó um professor gordinho resignado sem espinhas embrutecimento persistente estraneidade desamparo as grades crescem antropófagas fagocitam esparadrapos latas pasto queimado mingau plástico um giz chia contra a parede pintada de preto os livros que mandou o ministério tem cheiro de papel de jornal velho falam da grécia os herois a glória procurem na biblioteca dizem recortem do jornal dizem cinquenta centavos o quilo

 

 

1Linha de transporte urbano que percorre os subúrbios mais pobres de Buenos Aires

 

 

 

 

 

 

Fragmentos da sede

 

I

 

céu líquido por detrás dos sentidos embotados a língua que apenas pode sustentar as fricativas o discurso encriptado se desmoronando se desinfetando cada corpo que gira sobre pistas de neon ajusta a sua máscara morna rabisca com o fio de uma unha pintada de verde limão esse oco a vertigem inescrutável que intui chave ou porta saída ao mar mas já são as três e o rímel avança no seu ofício de corrosão a fivela da sandália deixa a sua pegada outro sábado que passa  continuar procurando as moedas para o táxi

 

 

II

 

outra cor na garganta o desenho do mundo se transforma esquecemos a inércia dos corpos o fio da faca respira em sonhos quebrados pelos habitantes da noite não dormir rastejamos na sujeira extenuada desvanecida em garrafas persistência feroz chegar tarde à língua partida às plataformas de estação tarde à agulha do toca-discos que volta ao mesmo sulco sem semear não vai ter espigas nem pães nem santa comunhão — o branco engorda dizia barby enquanto penteava papéis prateados bailarinas ou grous que nunca iriam voar

 

 

 

Tradução do espanhol de Martin Palacio Gamboa

 

 

 

(imagens ©atilaj)

 

 

 

  

 

Marisa Negri (Buenos Aires, Argentina, 1971). Publicou Caballos de arena (poesía, Ed. Nuestra América, 2003), El hombre que inventó el universo (dossiê sobre o poeta chileno Pablo de Rokha, para a revista Línea Imaginaria de Ecuador y La Guacha /Argentina), Hacia un análisis crítico de la publicidad en el aula (tese realizada junto a Adriana Lavagna y Graciela Nocetti. Premiada e publicada nas atas do X Congresso Nacional do Jornal na Escola, novembro de 1996), Los chicos escriben en el cielo (compilação de diferentes laboratórios literários infantis). Em colaboração: Objeto e identidade (tese em atas das II Jornadas do Patrimonio Intangível, Governo da Cidade de Buenos Aires, 2002). Escreveu a coluna de crítica de poesia para o Suplemento Cultural do Jornal El Pueblo de Zárate durante vários anos. É professora de Castelhano, Latim, Literatura e colaborou com diversos livros didáticos. Edita o blogue Labrys — Poética Del Agua.