
É
meu pai este homem, esse homem que monta o quebra-cabeça. A desgraça
recaiu sobre ele numa tarde (é sempre à tarde que sobra espaço) lá
depois daquele dia, e agora desperdiça peça ante peça. Como descrevê-lo
se estou a 3000 peças de distância? Não sei se seus olhos são verdes ou
azuis — suas mãos são grandes — nem sei se usa bigode, mas no desenho da
caixa há verde e azul e também uma montanha. A cada movimento das mãos,
o encaixe é procurado nos pequenos espaços da incerteza de achar ali o
lá antes daquele dia. E os dias seguem roendo os anos, sem nenhuma fruta
para ser mastigada; apenas um copo que é levado lentamente até a boca
(não sei se há bigode) e seu líquido transparente queima opaco. Entre a
dificuldade da cena e a persistência do homem vai se refazendo a imagem
do tempo perdido à beira de um abismo; abismo ou montanha, cercados de
árvores e riachos, mas sem frutos ou animais. Distante, é meu pai que
bebe e constrói, que permanece procurando quando não acha o lugar
adequado de uma peça. Cabeça baixa, mesa marrom e um silêncio agudo — a
desgraça deixou-o assim, montando a figura esquecida. As possibilidades
são muitas e as horas limam os dias e esculpem a imagem; é tudo uma
questão de encaixe, das mãos e das peças, reencontrando por acaso. Só
resta aguardar que a mesa se torne quadro e meu pai, pintor sem mãos.
Ainda assim, há esperança enquanto houver morte. Pois desde aquele dia
ele conheceu o fim: desceu a ladeira e se deparou com a menininha
dizendo séria que era Deus e insistindo que na imagem do espelho estava
a origem das coisas; refletidos, ele era a mulher-atriz e ela, a
adolescente, sua filha, de mãos dadas sobre o abismo; era o brinquedo do
mundo que se lhe oferecia sem solução. Foi isso o que ele me contou
antes do quebra-cabeça. Agora seu rosto é pedaço de escultura antiga
encontrada em partes sobre o tabuleiro. Mas o jogo não acaba, embora meu
pai já conheça o fim; se as peças certas preencherem os espaços
adequados, a montanha surgirá e os riachos passarão a correr em volta
dela, como antes, umedecendo as raízes das árvores sem frutos, como
antes, sem cantos de pássaros, como antes, sem esperar que a vida se
complete na mais completa imperfeição. Cada espaço, perfeito, tem sua
peça, que somente existe para seu espaço naquele preciso momento da
descoberta do encaixe; não mais que o tempo de um nariz comprido, que
talvez carregue uns óculos, se curvar para farejar a figura na mesa.
Este é meu pai, sentado na cadeira, apoiado numa das mãos e mexendo nas
peças com a outra; se a dificuldade aumenta, ele se levanta e busca na
parede branca o desfecho do enigma. Sou seu espelho que, incapaz de
refletir, refrata a imagem perdida, como uma explosão de luz muito acima
da montanha ou muito abaixo do abismo. Sou incapaz de ouvi-lo, ainda que
ele dissesse algo, pois o cala meu noturno Chopin, como uma
incompreensão de sons muito além de sentidos, mesmo aquele do
quebra-cabeça. E o que resta é peça ante peça, desperdiçada ou não; por
isso há sobriedade neste desmontar o desfeito até que se desate algo da
mesa — um buraco se abre, ao lado do copo, e logo surge altiva uma
árvore. Porém, é nos riachos que se esquece a dor, no alto da montanha
que se perde o medo e no plano que se amontoam as peças. Precisamente no
amontoar-se das peças, esperando sempre o artífice, está a beleza do
desenho, informe sob os poucos cabelos; talvez seja o cansaço do homem
ao se deparar com a inútil máquina do mundo, desmontada por mãos de
criança — ángel fieramente humano sem setas. Apenas a
criança dorme debaixo da água, coberta de penas de patos selvagens
abatidos por arqueiros do exército de Sebastião. Não há patos no
quebra-cabeça e a criança se escondeu no abismo depois do fim da
ladeira. Lá antes daquele dia eu nasci, mas não podia falar, porque
minha língua ainda não era de fogo roubado; vivi mudo até o
quebra-cabeça, até meu pai se calar; desde então, canto cegamente e ouço
a música dos famintos, sussurrada por uma miscelânea de pessoas. Assim é
que foi que o palco se armou com coro e cortina, e sem tragédia para ser
encenada. A máscara de meu pai são os óculos (agora posso ver: ele usa
óculos) que escondem a cor de seus olhos; sua boca é pequena e sobre ela
não há bigode, somente uns duros fiapos que se misturam com a penugem do
comprido nariz. Tarefa heróica para um homem, inábil deus ex machina, é construir seu
teatro; montar, peça por peça, é trabalho árduo, mesmo para mãos
grandes; por isso meu pai sua e bebe — numa confusão de cristais, os
riachos correm e já umedecem as raízes das árvores, mas ainda distantes
da montanha. Saber que há fim é o que reanima a esperança; no entreato,
a angústia adolesce; só no cimo da montanha é que o remate se desnovela
para refazer do novelo renovada mortalha. A ordem está nos fios de
cabelo caídos; nos raros que resistem, prevalece o desalinho. Com
cuidado, movem-se as peças para que escapem do redemoinho infernal e se
alinhem em novo Parnaso, onde se prediz o passado inscrito nas tripas
dos patos — não há patos, apenas suas tripas; e o conhecido se mostra em
meio ao sangue, que se confunde com o óleo derramado pelos fragmentos da
máquina do mundo. Os pedaços parecem ser todos iguais e seus encaixes
tão diferentes, tudo se unindo para calar o abismo ou espicaçar a
montanha; mudo ou instigado, é o sentido que aguarda a solução, inútil
que seja, temporária ou fingida, que resolva o problema da luz débil da
sala em que meu pai monta o quebra-cabeça. No quase-breu me perco à
procura da desordem do semi-caos e temo que a vela, já fraca, se apague;
porém, logo ao meu lado, está o interruptor; agora é o medo que se perde
na busca surda de um canto meio sombrio. No alto da montanha não existe
medo; lá, ele se dissipa no vento e queima no sol; aqui, sopra frouxo e
ferve opaco, mesmo perto da janela ou debaixo da lâmpada. É lá que tudo
falta sentido, como no tempo remoto de então, embalado pelo silêncio do
noturno Chopin tocado no cravo colhido com a ponta dos dedos. São coisas
construídas que brotam do chão, como esta casa com janelas e lâmpadas;
mas as coisas construídas se desfazem com os anos e a imagem flutua no
plano; é lógico, portanto, ter medo do vento das janelas e da luz das
lâmpadas; ainda mais lógico, portanto, é observar, em segredo, o corpo
da deusa nua boiando no líquido do copo; ilógico apenas é não montar.
Nada é mais belo do que a figura da caixa, nada é mais belo do que meu
pai sem mãos. Eu só descrevo o que não vi no espelho. A desgraça é comum
e recai sobre todos, todos que viram a imagem no espelho, fim único que
permanece sempre, e que silencia qualquer outro som. Não me calo porque
não vejo que roupa descobre meu pai, muito menos a cor dos olhos; vejo
que é função deste homem montar, encargo de pedras muito mais leves que
penas de patos. Questão de escolha ou de sorte, enfim, é a mesma diversa
desgraça pesando sob uns muitos poucos eleitos. Arrumar a bagunça é uma
necessidade de reorganizar o nunca feito, como o pastor que conta seu
rebanho de grifos; antes, são as coisas que assim se fazem a despeito da
ordem e em respeito à posterior prefiguração. Cada peça deixa sua marca
na memória do sentido encaixado; cada passo dado poupa areia da
ampulheta; e meu pai ergue a montanha no tempo perdido; sua cabeça se
esconde entre as orelhas, paredes com buracos em que minha voz se
desperdiça. As peças foram lançadas e alguém tem que juntá-las, sendo o
desenho da caixa modelo esquecido na descida do abismo ou buscado na
subida da montanha, o que dá no mesmo desencontro de mãos — esperança de
arremate. Enquanto espero, corto o mato das minhas pernas à procura da
relva desfeita pelo ruído da chuva lá fora. Aqui é sempre à tarde, e a
luz não basta para preencher os espaços nem falta para engolir a mesa;
noturno é só meu Chopin, que contrasta com as paredes brancas, ainda
mais brancas à tarde. Antes fosse noite e o problema das mãos estaria
resolvido, como num sonho acordado, tão nítido como a tarde indecisa,
tão precisa como o sono inventado pelo vento desperto. O animal só pode
ser morto para ser comido, a culpa é o resto; isso se aprende numa boa
caçada. Peça ante peça, os dentes, embora gastos, enchem a boca, que
sopra cinzas. O copo se esvazia aos poucos, pois o homem não tem pressa
— bebe e constrói; e a base da montanha, subindo em direção ao abismo,
toma o plano, cheio de árvores, riachos e relva. Subir é cansativo e
animador, calmo, como a caminhada dos aposentados, retiro com objetivo
sem fim ou do fim à esperança. Meu pai conheceu o limite da ladeira, por
isso agora escala as peças e tenta ignorar o segredo da menininha à
tarde, que nem revela nem esconde o que não se vê em espelho e o que não
se escuta em Chopin. O dedo toca a peça que desliza sobre a mesa, num
ato sereno de cobrir espaço e de montar o drama, aguardando que a trama
se arremate com as tesouras cegas das Parcas. Exausto e tranqüilo, o
homem insiste, sem pressa, no trabalho altivo, quase desumano trabalho
de balistas na guerra. A desnecessidade disso tudo é o que deixa tudo
isso tão perfeito e preciso, como a beleza inútil da atriz com máscara,
ainda mais bela quando o lençol a cobre e a luz se apaga, ou como o
filho na barriga da adolescente nua que chora diante do espelho. E a
harmonia disso tudo está na folha solta que voa na rua. Na sala, só a
imagem, incompleta, paira na mesa; o copo, praticamente vazio, é
conduzido, mais uma vez, até a boca; no adensar-se da barba, o tempo se
conta no número de pêlos. Os espaços são inacessíveis às peças; eles
subsistem, elas preenchem, e a montanha está na metade do caminho da
mesa. As pás do ventilador giram sobre a cabeça e, em volta dos pés,
giram círculos concêntricos. Meu pai faz movimentos circulares com as
peças até que encontrem o repouso do encaixe, para descanso das mãos,
que logo voltam a trabalhar em nova roda sem fortuna; assim, vai se
erguendo a montanha e é apenas montando que a roda não pára. A imagem
prometida está a poucas peças de distância; mesmo um homem como este,
agita-se um pouco com a proximidade do fim, enquanto descem, aos poucos,
as parcas cortinas da janela. O frio na barriga adolescente é razoável
neste momento de expectativa, até para meu pai, que constrói constante
há tantos pêlos. Em mim se funde o gelo, nas minhas mãos pequenas, que
nunca caçaram patos nem antes nem depois daquele dia; durante, não vivo,
somente descrevo o que não vi; o que vejo é um homem, cujos olhos não
têm cor, cujos olhos são dois abismos, protegidos por espelhos que não
refletem coisa alguma, alguém que não se vê face a face. Só é possível
se encarar com a voz, embora ressoe instrumento alheio. Meu pai sua e
seca o copo, onde o líquido agora é eco, repercutindo os sentidos que o
ventilador destrói. Quieto, ele monta o quebra-cabeça. Peça ante peça,
cresce a montanha e a imagem plana, mas ainda falta o desfecho. A falta
que se sente do que nunca foi possuído é melhor que a presença do que
sempre foi desejado; pior é a ausência de sentido, verdadeiro mal
almejável. A cortina grossa vela a mulher na cama; se a mulher não
estiver ali, então o desejo se prolongará. Já meu pai se revela nos
pêlos da barba e tenta construir o sentido completo, verdadeiro bem
detestável, objetivo único após a desgraça. Eticamente, a moral é
desperdício de peças e a verdade, encaixes bem-sucedidos. Antes de
agora, houve uma mulher que gerou um filho — barriga redonda, giro do
mundo; a partir daí, a desgraça rolou ladeira abaixo e montanha acima.
Esse filho dorme imerso numa cama de penas que balançam leves enquanto o
peito se esvazia e os patos voam; a mãe se maquia ante o espelho com o
óleo derramado pela máquina. Assim escorregam os dias. Olho para meu pai
e vejo que sua barba cresceu, mas não o bastante para ser barbante
seguro no labirinto. Depois de agora, haverá a asa negra do pato imóvel
girando sobre todo o construído; o vento desarranjará as peças em
infinitas possibilidades; e a figura será fuligem. Porém, noto que a
imagem está quase completa — este homem é muito forte, suas mãos são
enormes, sua dedicação é incansável e sua esperança, ilimitada. Ele
pára; talvez para apreciar o trabalho, como quem sobe na pedra para
vislumbrar a recém-cortada grama do jardim. Meu pai parece querer
escalar a montanha, embora ainda faltem algumas pedras. Orgulho igual,
só mesmo o daquela mulher ao gerar seu filho, comovida com a imagem
brotada de seu próprio corpo. Montar quebra-cabeça é ofício desumano,
trabalho divino de criança cega. Mas talvez pare para não terminar, pois
os espaços estarão repletos e continuarão vazios, as peças estarão
unidas e continuarão isoladas, a figura estará completa e continuará
fragmentada, pois à tarde sempre sobra espaço, não sobeja nem falta luz,
não dá coragem nem medo (os dois se perdem em busca surda de
claro-escuro), é sempre à tarde que não se vê nada direito, que não há
verdade ou segredo, que o dia já foi e a noite não chega. O homem retoma
a montagem, sem copo, seu suor é o único líquido. Nada mais pode
distraí-lo. Sentido único, preencher a mesa, aprofundar os olhos,
construir a imagem. Peça ante peça, relva, riachos, árvores,
quase-montanha. Então, acabam as peças e ainda não vejo a cor dos olhos.
Sem desespero, falta uma peça no alto da montanha. A procura é cega e o
abismo na mesa eloqüente. Meu pai não se mexe, eu não me mexo; nossa
ausência de movimento é o sentido ileso, é o castelo do conde Westwest
que desaba intocável. Ninguém desmonta nada; o homem poderia construir a
peça perdida, mas a imagem jamais ficaria igual ao desenho na caixa. A
caixa se fecha e o abismo aberto reflete a imagem no espelho, absorve a
figura na mesa. Não me calo, pois só aprendi a narrar a desgraça, foi
meu pai que me ensinou ao se emudecer. É fim de tarde — a tarde não
acaba nunca; o quebra-cabeça se encerrou, incompleto, perfeito guia na
floresta alheia que nenhum homem desbravou, onde a mulher gerou sua
filha já grávida diante do espelho. Descerra-se a cortina para que não
entre a luz nem fique escuro, para que nada aconteça e seja visto, para
que a atriz represente coberta sobre a cama. Teatro mundo, atriz menina,
personagem Deus. Minha voz não chega ao enredo, som ante som se perde
surda, se reencontra muda, se satisfaz no eco. Meu pai é enigma, eu sou
irresolução. As pás do ventilador aceleram cada vez mais seu giro e nós
não nos movemos cada vez mais lentos; também sob meus pés giram círculos
concêntricos. A mulher está nua e inacessível debaixo do lençol,
vespertina deusa sem roupa. Eu estou coberto, ainda que não faça frio
neste fim de tarde; meu pai se descobre. Este homem percebeu que os
pêlos o acobertam do sentido negado ao menino imerso na lagoa dos patos,
mas os pêlos caem e os patos restam; as penas voam sobre a lagoa e o
corpo afunda. A mesa é abismo que recobre a imagem, é buraco que suga os
fios de cabelo. O fogo queima lá embaixo, lá está todo o conhecido, no
fogão que aquece o pato assado, despenado por mãos seguras. Aqui, apenas
sinto o cheiro que repercute branco, como o barulho do trovão que
sinaliza a chuva lá na altura das nuvens cinzas. Dentro, tudo desconheço
que ocorre durante e, aqui, não vivo, somente vejo e descrevo que é meu
pai este homem sob o ventilador que gira, cujos olhos perdi a cor, esse
homem que coloca a cadeira sobre a mesa, que sobe e senta, sozinho, com
as mãos abandonadas entre as pernas e que olha, sem óculos, para a
parede branca, esperando que o corpo se cubra de peças.
(imagem @amx)

Marcelo Lachat
(Campinas-SP, 1981). Formou-se em Direito na PUC-Campinas e em Letras na
Unicamp. Atualmente, faz mestrado em Literatura Portuguesa na USP. Além
de teoria e crítica literárias, gosta também de escrever suas próprias
ficções. Vive em Campinas.