minha saliva é um gato
meu olfato, um rato

não faço idéia
do silêncio aceso
no raio da noite

meus olhos são corujas
minhas pernas, grilos

não imagino tempestades
resigno-me nesta distância

 

 

 

 

 

ontem devorei duas estrelas
arrotei o luar

bebi cinco sóis
vomitei o mar

travei a derradeira batalha
com o céu sob o olhar

perdi todas as lutas
e a fome continua

a sede não é a mesma
cega o que vê

como nada vejo
tateio de mãos vazias

um corpo seminu
na última ceia do pôr-do-sol

 

 

 

 

na margem do rio
uma face

distorcida

água revela
pedras

sempre se apanha
um peixe
no olhar do pescador

 

 

 

 

a linha alcança
onde olhar descansa

na busca da paz
busca-se mais
do que o peixe

na ponta da linha
ninguém adivinha

o que virá
o que será
dessa pesca

o que se fisga
é a própria alma
de quem lança a isca

 

©jean marctin gaud

 
 

 

 

ferrovia

o coração verde
da centopéia
não palpita

trilhos

caminha
sem dar ouvidos
aos gritos do trem

 

 

 

 

anos esculpidos
nos paralelepípedos

ruas avulsas

a traça escolhe
madeira sem lei

o templo vence o tempo

 

 

 

 

ser esta régua
que mede passos
sem conhecer medidas

ser esta coisa silenciosa
que guarda segredos
desvendando escritas

ser este esterco
disperso e bruto
que obra despedidas

ser este ser absurdo
que nada fez
metendo-se em tudo

 

 

 

 

o tempo voa
não chora
por nada

exceto
o velho relógio
que permanece

sempre
na mesma hora

não tem ponteiros
somente marca

não tenha pressa

 

 

 

Do livro de poemas, inédito: As coisas de João Flôres.

 

 

 

 

Marco Aurélio Cremasco - Natural de Guaraci, Paraná. Reside em Campinas, onde é professor na Faculdade de Engenharia Química da Unicamp. Possui A Criação, livro de poemas, editado pela Cone Sul (São Paulo: 1997), com o qual obteve o Prêmio Xerox do Brasil & Revista Livro Aberto. Teve o romance Santo Reis da Luz Divina, publicado pela Editora Record (Rio de Janeiro: 2004), premiado no I Prêmio Sesc de Literatura. É co-editor da Revista Babel, revista de poesia, tradução e crítica. Os poemas de sua autoria estão presentes em As coisas de João Flôres, livro inédito de poemas. Traduziu Langston Hughes, Robert Lowell, Enrique Linh, Oscar Wilde, Mário Benedetti, entre outros.